Cerimónia de Inauguração da Exposição Nacional de Municipios

Santa Maria da Feira
20 de Maio de 1997


As comemorações dos 20 anos de poder local democrático permitiram amadurecer uma vasta reflexão sobre o percurso percorrido ao longo das duas últimas décadas.
Não querendo, naturalmente, revisitar nem sumariar essa interessantíssima reflexão, permito-me, todavia, sublinhar hoje, aqui, um aspecto que me parece merecer particular destaque.
As eleições autárquicas de 1976 marcaram um momento importante de consolidação do regime democrático por três ordens de razões. Porque representaram o primeiro momento de descentralização administrativa democrática do Estado. Porque permitiram a participação directa das populações, não apenas na eleição mas na gestão dos órgãos autárquicos, envolvendo dezenas de milhares de cidadãos, assegurando assim um precioso instrumento de exercício dos princípios democráticos. Porque a lei eleitoral autárquica ao permitir a participação das minorias nos executivos forneceu, numa fase decisiva do processo, um valioso instrumento integrador das diversas correntes de opinião na participação e gestão autárquicas.
Proximidade dos eleitores, participação dos cidadãos e representação de minorias foram três instrumentos decisivos para o arranque da descentralização do Estado, para a vitalidade permanente da actuação da administração local ao longo de duas décadas e para a consolidação do novo regime democrático.
Do longo percurso já percorrido sobraram importantes lições. Aliás, o essencial da reflexão produzida tem sido justamente feita em torno das reformas que importa introduzir para aprofundar o caminho já desenvolvido. Mas essas reformas prendem-se, todavia, com o problema central da relação entre o cidadão e o Estado.
Foi o exercício do sufrágio universal - sem fraude - e o poder local democrático que alteraram substancialmente em Portugal, após a Revolução, a relação tradicional entre o cidadão e o Estado.
É certo que a ditadura tinha feito perdurar um modelo de Estado - refiro-me agora apenas à natureza das suas funções e não, claro está, à legitimidade do seu poder - que nos anos setenta estava já a passar por uma reforma na restante Europa, com a introdução de experiências descentralizadoras. Esse processo acentuou-se na década de oitenta, com o debate sobre a extensão das funções sociais do Estado. A década de noventa veio acentuar a necessidade de reformas e tornar evidente a insatisfação dos cidadãos quanto ao desempenho de muitas das suas funções tradicionais.
É indiscutível que a imagem, e mesmo as funções do Estado estão em profunda mudança. As pessoas sentem-no e inquietam-se, dominados pela incerteza quanto ao futuro modelo que, no meio de um debate cerrado, por toda a parte, se vai progressivamente desenvolvendo. Os governos procuram novas opções, reformulando funções e competências, trilhando o estreito caminho entre o desenvolvimento de novos limiares de subsidiariedades - quer em relação às instâncias comunitárias quer em relação às administrações locais ou regionais - e o debate, aliás tenso, sobre o desinvestimento do Estado em funções sociais que lhe estavam confiadas.
A questão do Estado é uma das questões centrais das democracias europeias. Elas levarão ainda muito tempo até formularem um novo modelo que, tal como o anterior, seja capaz de assegurar consensualmente a mediação efectiva, e não puramente simbólica, entre o cidadão e a Nação.
O Estado liberal e republicano, de que o nosso é directamente herdeiro, é um modelo estatal que exprime uma concepção unitária da nação, construída por afirmação contra a prevalência de um sistema de privilégios, contra a desigualdade perante a lei, contra os poderes periféricos e a insuficiência de representação nacional.
O modelo de Estado sobre o qual impendem hoje tantas criticas e que gera uma tão ampla - e reconheço que absolutamente necessária - reflexão é, também o Estado que encarna, como valores, a defesa do interesse geral dos cidadãos e não a soma dos interesses corporativos e, portanto, particulares, que defende o caracter geral e abstracto das leis, a igualdade de direitos e deveres, a solidariedade nacional, e que garante também a protecção na necessidade e o exercício da autoridade e da Lei por oposição às justiças privadas. O fundamental das suas características e valores, que hoje ainda consideramos fundadores e essenciais foi, todavia, construído, historicamente, através de um exercício progressivo de centralização de poderes e competências.
A progressiva centralização política e administrativa foi condição necessária à construção dos Estados-Nação modernos baseados no princípio da igualdade do indivíduo perante a lei. Mas a sua consolidação - e legitimidade - ficou a dever-se ao desenvolvimento do sufrágio universal. Reforma do Estado e modelo de representação nacional são, por isso, elementos indissociáveis.
Consolidado o Estado moderno na suas funções garantísticas da Igualdade perante a lei, das liberdades fundamentais e da solidariedade nacional, a tendência das últimas duas décadas, na Europa, tem sido descentralizadora. Os cidadãos exigem hoje, cada vez mais, maior proximidade e maior participação no controle do processo de decisão executiva. Onde antes participar na escolha do governo era uma proximidade - e um poder - inovador, hoje esse poder é claramente insuficiente e a proximidade considerada distância inaceitável.
Mas na ânsia de dar justa e justificada resposta à necessidade de descentralização administrativa, e como tal proceder à reforma das funções do Estado, exigidas alias, com igual vigor pela demografia, que coloca novos desafios ao principio da Solidariedade e da economia, que estimula críticos ao princípio da Igualdade, é ainda importante não perder de vista que muitas das características do Estado são essenciais, que elas mantêm a sua validade e não devem ser postas em causa. Algumas carecem mesmo de ser reforçadas.
A desconcentração e a descentralização administrativa não são a reforma do Estado. É uma das reformas possíveis e necessárias. E é apenas como tal que devem ser consideradas. A reflexão e a problemática em que se insere é mais vasta, mais profunda e resulta das grandes transformações civilizacionais das últimas duas décadas.
Permitam-me, aliás, neste momento de balanço de 20 anos de poder local, que sublinhe a importância das recentes propostas, ainda em debate, no sentido da transferência de maiores competências e recursos do poder central para as autarquias. O ambiente positivo ou consensual com que essas propostas me parecem ter sido recebidas demonstra, em minha opinião, que o desenvolvimento do processo de descentralização deve ser gradualista, baseado na consolidação de experiências que provaram a sua validade. E demonstra também que esse processo deve ser contratualizado, de modo a garantir o consenso quanto ao equilíbrio das competências e recursos a transferir e aqueles que se devem manter, e mesmo reforçar, porque naturalmente há casos em que isso não deixará de ser necessário, no poder central.
Se a desconcentração e a descentralização me parecem necessárias, por razões que me dispenso de referir, por sobejamente debatidas, igualmente me parece necessário garantir o exercício de um Estado forte, capaz de assegurar a coesão nacional e de definir as grandes prioridades de desenvolvimento do país. Este é o equilíbrio por onde passará uma das vertentes da reforma da Estado moderno. Qualquer um dos extremos, centralização excessiva ou descentralização desnecessária, me parecem inconvenientes para o país. Gradualismo e concertação parecem ser a chave para uma reforma equilibrada dos poderes.
É, alias, importante que as populações se revejam na progressiva evolução do modelo, que o consolidem, garantindo a sua constante e necessária participação democrática. È aconselhável, portanto, que todas as reformas mantenham sistemas de representação que consolidem e se possível ampliem os actuais mecanismos de integração dos cidadãos no processo democrático.
Minhas Senhoras e Meus Senhores
No conjunto destas comemorações dos 20 anos de poder local foi feito o balanço da obra realizada e iniciado o debate sobre as reformas a introduzir. Ao longo destas últimas décadas muito do que foi conseguido foi-o em confronto, ou pelo menos em tensão, entre o poder local e o poder central. Hoje, o caminho que importa continuar a percorrer tem, necessariamente, de assentar na importância do diálogo institucional entre as autarquias e o governo. Diálogo e concertação são os dois pilares em que assentará o desenvolvimento do esforço de descentralização administrativa.
Conheço a disponibilidade, quer do governo, quer da Associação Nacional de Municípios para continuar esse diálogo. Por isso é com uma nota de optimismo e confiança em relação a este importante aspecto da reforma do Estado que termino estas palavras.
É do diálogo institucional que poderá nascer a solidez das reformas e o consenso das populações em torno delas. Populações que, no fundo, olham para esse diálogo como garantia de estabilidade e clareza quanto ao sentido das reformas a levar a cabo.
A confiança dos cidadãos no poder local, construída ao longo de anos, é um dos factores de estabilidade do regime político. A manutenção dessa confiança na evolução da repartição de competências administrativas é por isso essencial.
Portugal conta com o reforço do poder local como um factor de desenvolvimento e de aprofundamento da Democracia. Tal como espera o exercício de um Estado forte como factor de Coesão Nacional.