Sessão de Abertura do XXII Encontro Nacional das Associações de Pais

Viana do Castelo
15 de Março de 1997


A minha presença neste Encontro Nacional da CONFAP tem um significado muito especial. Quero testemunhar-vos a importância que concedo às associações de pais, que cumprem uma função social e educativa de grande relevo. A educação é uma responsabilidade social, que exige a participação de todos, e não apenas dos técnicos e dos profissionais do ensino.
Frequentemente, os pais foram chamados à escola apenas para ouvirem críticas relacionadas com o insucesso e a indisciplina dos seus filhos ou mesmo para serem censurados por certos hábitos e comportamentos familiares. A escola pretendia-se moralizadora da sociedade e encarava os pais mais como um problema do que como parceiros da acção educativa.
Esta perspectiva é, hoje em dia, absolutamente inaceitável. Não só os pais têm o direito -e o dever -de participarem na educação dos seus filhos, como esta participação é mesmo uma condição essencial para o sucesso educativo e para a qualidade do ensino.
As escolas devem trabalhar em ligação estreita com as famílias, integrando-se nas comunidades locais e mobilizando uma rede de instituições sociais e económicas, em particular as autarquias. Simultaneamente, têm de aprender a respeitar o direito das crianças e dos jovens para tomarem decisões sobre os seus próprios percursos escolares, na linha do que está consagrado na Carta Universal dos Direitos das Crianças.
Tenho esperança nas mudanças em curso no nosso tempo, tanto no que diz respeito à formulação das políticas, como no plano concreto da acção que se realiza quotidianamente nas escolas. A ideia de um espaço local de educação, que dê sentido a projectos educativos integrados, é um dos aspectos fulcrais desta mudança. Mas para que ela aconteça, é preciso que cada um dos parceiros possua direitos próprios e detenha um poder efectivo de decisão. Sem pôr em causa as competências profissionais dos professores, torna-se cada vez mais evidente que o governo das escolas deve pautar-se por princípios de democracia social e de participação cívica.
Neste sentido, há dois aspectos que gostaria de abordar nesta mensagem: o primeiro diz respeito à necessidade de assegurar que as comunidades locais constituam espaços estimulantes do ponto de vista cultural e educativo; o segundo prende-se com a urgência de organizar as escolas como lugares propícios à aprendizagem e à formação dos alunos.
Em relação ao primeiro aspecto, parece-me importante lembrar que as aprendizagens começam nos primeiros dias de vida, período decisivo para o desenvolvimento das crianças. Inicia-se aqui a acção educativa das famílias, que se prolonga pela infância, pela adolescência e pela juventude. Seria absurdo imaginar que o tempo passado na escola constitui uma espécie de interrupção (de parêntesis) neste processo de acompanhamento educativo.
Bem pelo contrário. A escola é um dos espaços essenciais deste processo e, por isso mesmo, deve ser reconhecido aos pais um direito próprio de decisão e de intervenção. Não basta apenas consagrar a necessidade de uma melhor informação, de uma consulta mais frequente, de um apoio ao estudo ou de uma participação na orientação profissional dos jovens. Trata-se de ir mais longe; trata-se de um direito de escolha dos pais em matéria educativa e de intervenção regular na organização e no funcionamento das escolas.
Infelizmente, nem todas as comunidades constituem ambientes educativos agradáveis e estimulantes. No nosso país, a miséria, a degradação moral, a droga e a violência são ainda o dia-a-dia de muitas famílias. Para estas crianças, as oportunidades educativas estão drasticamente reduzidas e, se nada fizermos, espera-as um destino de insucesso e de marginalização. É uma ilusão pensar que a escola pode substituir as condições que não existem na sociedade, e que pode ser, ao mesmo tempo, instituição de acolhimento familiar e de serviço social, centro hospitalar e de prevenção da droga, organização de combate à violência e de luta contra a miséria, etc. etc. Mas se formos capazes de articular o conjunto das instituições sociais, promovendo uma efectiva solidariedade e responsabilidade social, então o destino destas crianças não será uma fatalidade.
As situações podem ser mudadas e têm-no sido, em muitas zonas difíceis, graças a uma coordenação de esforços entre professores, pais, autarcas, empresários e associações diversas. Como Presidente da República, quero transmitir a estes homens e a estas mulheres uma palavra de profundo reconhecimento e de enorme gratidão. Desejo que estas experiências sejam conhecidas e que se tornem uma referência para todos os educadores.
Mas, deixem-me que vos diga que, ao atingir a maioridade, um jovem não passou mais do que 15% do seu tempo na escola. Com esta observação, quero chamar a atenção para os outros 85%, passados em casa, na rua, em frente à televisão ou com os amigos. É aqui que se decide grande parte do futuro dos nossos filhos.
A escola não pode tudo. E é por isso que me parece tão importante que sejamos capazes de construir comunidades estimulantes do ponto de vista educativo. É preciso criar espaços sociais onde as aprendizagens possam ter lugar, seja na aldeia isolada do interior, que necessita de investimentos no domínio da informação e da comunicação, seja nos subúrbios das grandes metrópoles, que têm de ser transformados em cidades educativas.
A mensagem que vos quero transmitir é simples: não podemos alhear-nos do que se passa à nossa volta e não basta que cada um resolva, o melhor possível, o seu problema. Pensar a educação hoje é ser capaz de ir muito para além dos muros da escola e projectar comunidades abertas e motivadoras que dêem um suporte social ao desenvolvimento das crianças e à formação dos jovens.
Quero com isto dizer que o que se passa dentro da escola não é relevante? De modo nenhum. E esta é, justamente, a segunda reflexão que gostaria de partilhar convosco: acredito nas escolas como lugares onde dê gosto ensinar e aprender.
Infelizmente, durante várias décadas, não se investiu na recuperação e na melhoria das instalações e dos equipamentos, de modo a que as escolas sejam espaços em que as pessoas se sintam bem. O problema, aliás, não diz apenas respeito às condições físicas dos edifícios. Tem também a ver com a forma como eles são ocupados, o mesmo é dizer, com a forma como está organizada a acção escolar.
Um conhecido autor francês escreveu há tempos um ensaio muito interessante no qual explica a transformação das escolas de lugares de estudo — nos quais os alunos tinham aulas, mas também tempos de trabalho, normalmente na companhia de um tutor — num lugar onde se dão aulas. No meu contacto com os jovens, tenho sentido que há uma carga lectiva excessiva e, simultaneamente, uma ausência de momentos de estudo, de trabalho e de convívio cultural.
É uma mudança essencial, que pode contribuir para evitar algumas das novas formas de discriminação social, trazidas pela sociedade tecnológica e de comunicação. As crianças — sobretudo as crianças dos meios mais desfavorecidos — devem ter acesso aos livros, às vivências culturais, aos computadores e à internet dentro da própria escola, pois, caso contrário, não terão qualquer outra possibilidade de usufruirem destes recursos. É por isso que a reorganização dos tempos e dos espaços escolares é tão importante. O que passa, em muitos casos, por escolas com uma dimensão mais humana.
O conceito de humanização da escola é, aliás aquele que melhor traduz o meu pensamento sobre esta matéria. Quero com isto significar a necessidade de conceber a escola como um lugar de cidadania e de trabalho.
Tal como António Sérgio, defendo a necessidade de instaurar práticas e vivências democráticas, pois a educação cívica meramente teórica é um absurdo: é como um ensino de esgrima em que não se empunhasse a arma ou uma aprendizagem de piano em que os dedos não se mexessem.
Também eu advogo uma escola do trabalho, porque se conseguirmos deslocar a pedagogia do “enciclopedismo para a criação”, então o aluno terá “moldado o seu espírito à iniciativa produtora e virá a ser para a sociedade uma fonte de progresso”.
Mas hoje isto não é suficiente. É preciso considerar as escolas como um espaço por excelência para o exercício da cidadania. De uma cidadania que se alargue, também, aos pais e às comunidades.
O ano passado, no Porto, sugeri que se estimulassem práticas de voluntariado dos professores aposentados. A mesma sugestão é válida para as famílias: há um sem-número de tarefas e de actividades escolares que podem ser realizadas por voluntários, a exemplo do que acontece numa grande parte de países estrangeiros. Não se trata de atribuir aos pais uma mera função de apoio ou de ajuda, mas antes de lhes conceder um poder efectivo de intervenção e de decisão, nomeadamente no governo das escolas. Consolidar-se-iam, assim, laços de compromisso e de responsabilidade social, unindo diversos parceiros em torno de um mesmo projecto educativo.
Estudos recentes confirmam, justamente, que uma das consequências mais positivas das políticas de descentralização do ensino é a melhoria dos espaços escolares, nomeadamente no que diz respeito à resolução de problemas de segurança, de violência e de droga.
E confirmam igualmente que o esforço de partilha e de cooperação no quadro das escolas tem contribuído para melhorar a imagem social dos professores e para valorizar as suas competências profissionais.
São estas as duas mensagens que vos quis transmitir:
Não há educação sem comunidades que facilitem e estimulem as aprendizagens.
Não há educação sem uma participação activa e alargada de todos os parceiros sociais.
Estas mensagens relacionam-se directamente com a problemática dos valores, que está em debate neste Encontro.
Por um lado, é impossível afirmar um conjunto de valores dentro da escola, se eles forem diariamente postos em causa no seu exterior. Veja-se, por exemplo, o caso da violência: de que serve ter um discurso pacifista se a realidade quotidiana das crianças é a violência doméstica ou até se os filmes e os jogos de computador com que se entretêm são uma exaltação da violência? E o mesmo se poderia dizer sobre as questões ambientais, sobre o racismo e a xenofobia e ... sobre tantas outras matérias.
Por outro lado, é inútil ter uma retórica de civismo, de democracia e de liberdade se a forma de organização das escolas contradisser, na prática, estas intenções. É por isso que é tão importante que as escolas sejam ambientes sociais onde se pratica a tolerância e o pluralismo, onde se respira uma cultura de solidariedade e de participação cívica.
Estes aspectos têm directamente a ver com um debate que é preciso lançar na sociedade portuguesa sobre a qualidade do ensino, uma vez que esta não pode basear-se em modelos elitistas, que reforcem ainda mais os dispositivos de exclusão e de discriminação. O grande desafio para o século XXI é conseguir uma educação de qualidade para todos, uma escola que responda aos anseios do conjunto dos alunos e aos seus diferentes projectos escolares e profissionais.
É um desafio difícil, que exige a responsabilização e a participação de todos. Na convicção de que o esforço no sentido de uma igualdade de oportunidades e o funcionamento democrático e participado das escolas não só não impedem a eficácia e a qualidade do ensino, como são mesmo uma das suas principais condições.
Este é um dos desafios que não se podem perder. O futuro do país decide-se, em grande parte, na educação e na formação dos jovens. A sociedade educativa que queremos construir não se cumprirá sem a vossa participação activa. Aos pais e às suas associações compete um papel central no processo educativo, na consolidação de uma cidadania democrática e participativa nas escolas. Porque é aqui que o futuro se começa a imaginar, isto é, se começa a viver.