Conferência "Política Educativa: Construção da Europa e Identidade Nacional"

Lisboa
15 de Maio de 1997


É com muito agrado que participo nesta Conferência sobre “Política Educativa: Construção da Europa e Identidade Nacional”, promovida pelo Conselho Nacional de Educação. Com a minha presença, quero dar, uma vez mais, testemunho da importância que concedo às questões da Europa e da Educação, sob os auspícios, também da Assembleia da República e do Senhor Primeiro Ministro. Se há desígnios que devem unir todos os portugueses, estes são, sem dúvida, dois dos mais decisivos.
A construção europeia é um dos projectos políticos mais apaixonantes deste final de século. Era tempo de as nações se aproximarem e se juntarem na proposta de um futuro mais justo e igualitário.
Cinquenta anos de paz — imperfeita, é certo — são hoje motivo bastante para acreditar num novo entendimento entre os povos europeus. Sei que não é fácil. Conheço a outra face da Europa: o racismo, a xenofobia, a intolerância, a miséria,... E sei que as palavras não chegam para evitar as novas formas de exclusão social e para combater os riscos de uma sociedade que tende a resvalar para um perigoso dualismo. Na Europa, a liberdade tem de definir-se como responsabilidade social, a igualdade só pode ser sinónimo de diversidade.
Ao consagrar o princípio da cidadania europeia, o Tratado de Maastricht abriu um debate essencial para o futuro da Europa e da Educação. A escola desempenhou um papel fundamental na consolidação de uma identidade nacional. Agora, é chamada a trabalhar na construção de uma cidadania europeia. Há quem defenda que estas duas missões são contraditórias. Não é esta a minha opinião.
As questões da cidadania não devem ser pensadas através de um raciocínio geométrico, dividindo o espaço entre diferentes filiações: ser mais europeu significaria ser menos nacional (e vice-versa).
Estou mesmo convencido do contrário: quanto mais forte for a ligação às nossas comunidades de origem, mais forte é a nossa identidade como cidadãos europeus. Só quando cada um de nós sentir que o compromisso nacional reforça a sua identidade europeia, é que a questão da cidadania pode ser encarada sem receios. Como escreve Eduardo Lourenço: “O sonho é imaginar que o cidadão da Europa pode reconhecer no património dos outros um elemento importante da sua própria identidade”.
Proponho mesmo que falemos em cidadanias, no plural, para marcar a diversidade de filiações, desde o local ao global. O conceito não deve, porém, limitar-se a uma definição retórica. Deve antes prolongar-se no combate contra todas as formas de exclusão económica e social, na criação de condições culturais para uma ampla participação cívica.
Hoje em dia, o princípio de cidadania é portador de uma concepção multicultural dos direitos humanos — dos direitos cívicos globais —, que não se esgota no interior das fronteiras nacionais. É um problema de todos, que exige novas práticas de acção socioeconómica e de intervenção política.
A cidadania que defendo permitirá uma união europeia que não se organiza contra o resto do mundo, mas que se renova como espaço de cultura, de democracia e de justiça social.
Quando olhamos para um mapa do mundo, estamos habituados a ver a Europa situada no centro, com a Ásia de um lado e a América do outro. Mas hoje esta visão está ultrapassada e a Europa já não se posiciona como “centro do mundo”... e é mesmo nesta condição que ela pode encontrar um novo sentido para o seu futuro.
Como país medianeiro de povos e de culturas, Portugal possui excelentes condições para participar nesta aventura. Não é possível prescindir da nossa experiência de ligação e de errância. A fronteira e a descoberta são metáforas fortes da nossa cultura, que podem ajudar à construção de uma cidadania europeia que se afirme pela pluralidade das experiências no respeito da universalidade dos direitos cívicos. A diversidade tem de ser, outra vez, o trunfo maior deste continente singular.
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
Permitam-me que abra a segunda parte desta intervenção, fazendo minhas as palavras de Jean Monnet: “Se tivesse de recomeçar, construiria a Europa pela educação e pela cultura”. Os artigos 126 e 127 do Tratado de Maastricht, sobre Educação e sobre Formação profissional, são um passo importante neste debate.
“Respeitando integralmente a responsabilidade dos Estados-membros pelo conteúdo do ensino”, estes artigos estabelecem que a Comunidade contribuirá para o desenvolvimento de uma educação de qualidade e de uma política de formação profissional.
A sua articulação com o princípio da subsidiariedade permite imaginar uma organização do sistema educativo que não toma como referência única o todo nacional, mas que estabelece responsabilidades nos planos local, regional, nacional e europeu.
Esta mudança não afecta apenas as relações entre Portugal e a Europa, mas também as próprias formas de decisão no interior do país, incentivando os processos de descentralização e a participação das comunidades locais nas escolas.
A realidade europeia tem trazido importantes contributos no domínio da educação, em particular no que diz respeito a iniciativas de cooperação e de intercâmbio. Mas a abertura à Europa depende ainda, em grande medida, da classe social e cultural a que se pertence.
Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer que a referência ao princípio da competência exclusiva dos Estados-membros em matéria de educação tem justificado, por vezes, uma certa ausência de debate e de reflexão partilhada. É importante sublinhar o princípio anterior, desde que ele não dê origem, no plano europeu, a processos de decisão menos transparentes, baseados ora numa lógica de mercado, ora numa ideologia tecnocrática.
Nos últimos anos, houve a tendência para valorizar um olhar economicista, esquecendo outras dimensões importantes da educação. Creio que é preciso ir mais além, e inscrever a educação como uma prioridade europeia, atendendo desde já a três aspectos:
Primeiro - O reforço das práticas de cooperação e de mobilidade, assegurando, porém, que elas não privilegiam os grupos sociais e os países mais favorecidos.
Segundo - A criação de dispositivos de partilha da informação e de incentivo à inovação e à qualidade do ensino, procurando, no entanto, que as lógicas da eficácia e da rentabilidade não se sobreponham aos princípios da igualdade e da equidade.
Terceiro - O desenvolvimento de programas de ensino que valorizem as línguas, a história, a geografia e o debate sobre os países europeus e o mundo actual, respeitando, todavia, a diversidade das culturas e das regiões.
O que vos proponho não é muito distinto do que tem aparecido em inúmeros livros verdes e brancos produzidos nos últimos anos. Agora, é preciso criar as condições políticas para que estes documentos sejam apropriados pelas diversas comunidades educativas e não fiquem apenas como resultado do “trabalho de especialistas”. Só esta apropriação permitirá passar de uma cidadania retórica para uma cidadania que se concretiza no dia-a-dia da acção educativa dos alunos e dos professores, dos pais e dos governantes, dos autarcas e dos empresários.
A este propósito, permitam-me que me interrogue sobre o estado da educação em Portugal e manifeste alguma preocupação quanto às suas incidências no processo de integração europeia. Tenho acompanhado de perto os esforços desenvolvidos recentemente nesta área, e sei que o problema não se resolve em dois ou três anos, havendo ainda um longo caminho a percorrer. Nesta área, as evoluções são sempre muito lentas, mas temos de encontrar os meios mais adequados para mobilizar a sociedade portuguesa em torno do progresso da educação. No passado, encarámos os nossos atrasos como uma espécie de fatalidade histórica.
Chegou o momento de rompermos com esta tradição e de conseguirmos que a nossa população adquira níveis de formação idênticos aos dos países mais desenvolvidos.
No que diz respeito às qualificações escolares, a população portuguesa apresenta os índices mais baixos de entre os países da OCDE, continuando a ser o país com as taxas mais reduzidas de escolarização. Seja qual for o indicador escolhido, a nossa situação revela-se sempre difícil.
Chegamos ao limiar do ano 2000 com o mesmo sentimento de atraso em relação à Europa do que aquele que marcou a geração do final do século XIX.
Hoje, ao analisarmos as estatísticas europeias, reencontramos o dilema do século passado:
- 80% da população adulta possui um máximo de seis anos de escolaridade.
- 80% dos portugueses não ultrapassam o 2º nível de literacia, o que quer dizer que se revelam incapazes de organizar informação, de relacionar ideias contidas num texto ou de fundamentar uma conclusão.
Quer isto dizer que 4/5 da população portuguesa apresenta níveis de alfabetização e de escolarização extremamente baixos, que não respondem às necessidades de desenvolvimento económico, nem permitem uma participação cívica permanente
na vida social e cultural.
Não o digo em jeito de lamentação, mas sim de chamada de atenção para um problema que não será resolvido sem a mobilização de todos os portugueses, do Governo e das oposições. É urgente pôr fim a um “excesso de experimentalismo” e criar dinâmicas estáveis e sustentadas de desenvolvimento da educação.
Vários documentos europeus já aludiram a estes aspectos, referindo a necessidade de uma recuperação de Portugal para que não haja “dificuldades” no processo de integração europeia.
É preciso investir na expansão da rede escolar e na qualidade do ensino. Apesar de actualmente a percentagem do PIB consagrada à educação se situar em valores bastante aceitáveis, a verdade é que houve décadas de desinvestimento na área da educação e que as mudanças neste sector situam-se sempre num tempo longo. Em comparação com a Europa, são preocupantes os índices de qualidade do sistema de ensino português, desde o insucesso e o abandono escolar até aos resultados dos alunos em disciplinas como Ciências ou Matemática.
Tenho esperança no futuro e de, graças a uma acção conjugada, podermos modificar este estado de coisas. Mas o problema não é apenas do Governo — que tem tido uma acção importante neste sector —, mas sim de todos os portugueses. Nada de significativo será alterado, se não considerarmos a educação como uma questão nacional.
Os portugueses estão cansados de experimentações e ensaios sucessivos, sem os meios que uma mudança duradoura e consistente exige.
Creio, por isso, que o investimento em educação deve ser acompanhado por uma melhoria dos dispositivos de avaliação, numa óptica que não seja “proteccionista” e que conduza as instituições a confrontarem-se com as suas próprias qualidades e deficiências. As cátedras não são um passaporte para a vida. Num país como o nosso, sobretudo num sector com uma tão forte tradição burocrática, é preciso criar uma cultura de avaliação, sistemática e rigorosa: dos alunos e dos professores, das escolas e das políticas educativas. É a coragem política para tomar esta decisão que legitima uma mobilização nacional em torno da educação.
Não faz sentido apelar à responsabilidade de todos se não se desenvolverem, simultaneamente, os meios para um controlo democrático e participado dos resultados da acção empreendida.
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
A construção da Europa e a identidade nacional não se definem pela grandiloquência dos discursos, mas antes pela coerência das atitudes e das práticas concretas de exercício da cidadania. Em momentos de crise, a Europa repetiu sempre:
Não há tarefa mais urgente do que a educação
Porque é neste espaço que se podem criar as condições para uma participação de todos na vida económica, política, cultural e social.
A documentação produzida nas instâncias europeias tem procurado responder à pergunta clássica, formulada em primeira mão por Herbert Spencer: Qual é o conhecimento mais valioso? O que é mais importante ser ensinado nas escolas?
A questão não é fácil, e enganam-se os que se limitam a reproduzir os padrões culturais de 1920 ou de 1960...
Na verdade, não há uma resposta única sobre quais são os conhecimentos, as capacidades e as competências que devem ser aprendidos pelos alunos. E a cultura escolar tem de acompanhar as próprias mudanças em curso na sociedade, sob pena de se transformar num saber anacrónico.
Uma coisa é certa. Tal como se escreve no Livro Branco sobre a Educação e a Formação, é decisiva a posição de cada um no espaço do saber e da competência e existe o risco de a sociedade europeia se cindir entre os que interpretam e os que apenas utilizam, isto é, entre os que sabem e os que não sabem.
É fundamental que esta cisão não se verifique no caso português. Para que tal não aconteça, parece-me essencial abrir um debate sobre o futuro da educação.
Nesta perspectiva, saúdo a realização desta Conferência e desejo que o Conselho Nacional de Educação se afirme como um espaço de reflexão e de diálogo, de procura de consensos e de vias de inovação, tão necessário na situação presente do nosso país. À Senhora Professora Teresa Ambrósio, bem como aos restantes conselheiros, quero dizer que podem contar com a colaboração do Presidente da República.
Permitam-me que assinale — de forma breve — três preocupações principais.
Começo pelo princípio, isto é, pela necessidade de assegurar uma formação básica de qualidade ao conjunto dos cidadãos portugueses. Actualmente, há ainda cerca de 30% dos jovens portugueses que não cumprem a escolaridade obrigatória. Os níveis de insucesso e de abandono escolar são elevadíssimos, dando origem a uma situação insustentável do ponto de vista individual e colectivo.
O Governo tem tomado importantes medidas neste sector, mas nada se resolverá sem o compromisso de toda a sociedade. É aqui que se inicia o combate à exclusão social, sendo urgente reforçar os apoios educativos e as estratégias de discriminação positiva dos alunos com mais dificuldades. Contrariamente a uma ideia feita, o nosso sistema educativo é altamente selectivo, mas na pior acepção do termo. Gostaria que se desenvolvesse uma cultura de avaliação mais rigorosa, baseada num acompanhamento e numa orientação dos alunos e não numa lógica de exclusão.
O segundo aspecto prende-se com a necessidade de uma nova relação entre educação e trabalho.
Refiro-me, por um lado, à preparação dos jovens para serem activos num mundo marcado pela imprevisibilidade. Não se trata de aprender um ofício, mas antes de formar para um conjunto alargado de possibilidades profissionais. Não basta decorar a realidade; é preciso aprender a captá-la e a intervir sobre ela.
Não posso aceitar que os jovens saiam da escola — seja por abandono precoce, seja porque não querem continuar os seus estudos — sem que tenham um mínimo de preparação para a vida activa e para o desempenho de uma actividade profissional.
Refiro-me, por outro lado, à ideia da educação e da formação ao longo da vida. A escola tende a prolongar-se por todo o tempo de vida, através de um novo entendimento das relações entre os espaços da formação e do trabalho.
Para tal é preciso repensar as ideias educativas, mas também as formas de organização e o sentido social do trabalho. Sem esta mudança, é a própria possibilidade de uma cidadania participada que se encontra posta em causa.
O último aspecto diz respeito à necessidade de conceder uma maior autonomia às escolas, a partir de formas inovadoras de gestão escolar que consolidem a sua implantação local.
Trata-se de criar as condições para uma participação efectiva das comunidades na vida educativa, mas também de organizar a escola de forma mais humanizada, como um lugar propício à aprendizagem e à formação dos alunos. É aqui que se dão os primeiros passos na vivência de uma cidadania democrática. E, por isso, estou de acordo com Jacques Delors quando ele defende que uma instituição como a escola cumpre tanto melhor o seu papel no reforço da coesão social quanto mais implantada estiver no espaço local. E o mesmo se poderia dizer do papel da escola na consolidação da identidade nacional ou na abertura às realidades europeias.
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
Esta intervenção já vai longa, e é tempo de acabar. Quis deixar-vos uma ideia de cidadania marcada pela preocupação com a igualdade de direitos, com o exercício concreto da democracia, com uma nova perspectiva das relações entre a formação e o trabalho. Não há cidadania se os nossos jovens não tiverem as qualificações, as competências e os saberes, que lhes permitam usufruir das mesmas oportunidades que os jovens dos outros países. Não há cidadania se as desigualdades dentro da Europa — e dentro do nosso próprio país — aumentarem em vez de diminuírem.
Na Europa a utopia sempre exerceu uma função social insubstituível. Como país de fronteira e de comunicação, Portugal aventurou-se pelo mundo e aí descobriu-se como povo europeu. Comemoramos este ano uma efeméride de grande significado simbólico: o 3º centenário da morte do Padre António Vieira. “Imperador da língua portuguesa” — assim lhe chamou Fernando Pessoa, convidando-nos a pensar sobre a língua como elemento de identidade cultural.
Não posso terminar esta intervenção sem uma referência à importância das línguas e da sua aprendizagem para a consolidação das cidadanias europeias.
Como Presidente da República é meu dever cuidar da língua portuguesa, zelando para que ela seja “a língua viva de um país vivo” e para que possa cumprir a sua função cultural de ligação e de diálogo.
O Padre António Vieira imaginou a pedra como o elemento simbólico do Quinto Império. Na sua História do Futuro, não contou as coisas passadas, mas aquelas que estavam ainda para acontecer. A imagem da pedra faz lembrar a metáfora da construção da Europa. O cuidado com a língua portuguesa recorda-nos a identidade nacional.
Reencontramos os dois temas desta Conferência.
Sob o fundo comum de um passado que se prolonga numa ideia de futuro. O que fizermos agora só valerá a pena se formos capazes, uma vez mais, de ir para além dos “horizontes do tempo presente”.