Sessão de Abertura das Comemorações do 40º Aniversário do Edifício da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Lisboa
04 de Novembro de 1997


É com muito prazer que me associo a esta cerimónia, que marca o início das Comemorações do 40º Aniversário do Edifício da Faculdade de Letras. Todos conhecem os laços que me ligam a esta Universidade. E a importância que ela teve no meu percurso de vida. É sempre com emoção que regresso a esta “cidade universitária” na qual vivi alguns dos melhores anos da minha juventude.
Foram anos muito importantes para mim. E para a minha geração. Mas os tempos são outros. Irremediavelmente outros. E entre a “minha” Universidade e a Universidade de hoje há mais diferenças do que parecenças. Em menos de quatro décadas — e muito em especial nas duas últimas — a dimensão das mudanças foi muito para além do que podíamos imaginar.
Quando penso na Universidade do meu tempo, em que quase todos nos conhecíamos, constituindo um grupo à parte no seio da sociedade portuguesa; quando penso que naquela altura havia cerca de 20.000 alunos em todo o ensino superior e que hoje este número ronda os 350.000 (quase vinte vezes mais!).percebo que hoje tudo é bem diferente. E que precisamos de novos olhares para compreender um fenómeno que adquiriu uma enorme complexidade.
A expansão e a democratização do ensino superior respondem a grandes desígnios históricos e a processos sociais que têm vindo a aproximar Portugal dos restantes países europeus. Muito se fez no sentido de uma maior abertura social no acesso ao ensino superior, de uma redução das desigualdades regionais ou de uma presença mais significativa das mulheres no espaço universitário. São movimentos que é preciso continuar.
Mas, apesar das transformações recentes, Portugal possui ainda taxas relativamente baixas de escolarização no ensino superior. Não tem fundamento, pois, a ideia tantas vezes divulgada de que haveria “doutores a mais” no nosso país. Inscrita no imaginário português desde o século XIX, é uma ideia que não tem razão de ser. Bem pelo contrário.
Portugal continua a ter “doutores a menos”. Ou, dito de outro modo, continua a ter um défice grave de qualificação académica da população trabalhadora. Mesmo que consideremos unicamente os jovens, por exemplo na faixa etária dos 30 anos, constatamos que há apenas 13% dos portugueses que obtiveram um diploma do ensino superior, ao passo que a média europeia é quase o dobro, isto é, 22%.
Importa, por isso, prolongar um esforço nacional de investimento e de expansão do ensino superior, politécnico e universitário. Assim sendo, seria muito prejudicial adoptar em Portugal políticas neoliberais, que contribuíssem, de algum modo, para uma menor responsabilização do Estado em matéria de ensino superior.
Mas a referência à existência de “doutores a mais” pode ter uma outra leitura, que não é meramente estatística. Pode querer dizer que as formações oferecidas não correspondem às necessidades económicas e sociais do país. Neste plano, o debate é mais difícil.
A pressão da mudança tem sido tão forte que nem sempre existe a tranquilidade necessária a uma reflexão desta envergadura. Há sinais preocupantes sobre a forma como tem evoluído a relação entre as instituições públicas e privadas. Há situações difíceis na definição das redes do ensino politécnico e do ensino universitário. Há uma pulverização de cursos (cerca de 2000), o que acarreta problemas complicados aos estudantes e aos empregadores. Há aspectos graves no exercício da docência universitária, nomeadamente no que diz respeito à acumulação de funções em várias instituições.
Algumas destas evoluções têm facilitado uma expansão da rede do ensino superior sem critérios claros e pertinentes. E têm contribuído para uma menor identidade de muitas instituições, nomeadamente por via de uma diluição dos compromissos académicos dos seus docentes. A Universidade não é, apenas, um lugar onde se dão e onde se recebem aulas. É uma comunidade de trabalho e de pensamento. O que implica um tempo de presença, de diálogo e de convívio, de pesquisa e de investigação, que não se compadece com o modo como muitas instituições e muitos docentes organizam o seu dia-a-dia.
Não é este o momento azado para um diagnóstico do ensino superior e universitário. Conheço e aprecio os esforços que têm sido feitos pelo Governo e pelas Universidades.
Mas não posso deixar de vos confessar a minha preocupação e de vos convidar a uma reflexão de fundo sobre o sentido do trabalho universitário:
- Como é que hoje, ultrapassada a tendência para perfis escolares demasiado especializados, se assegura uma formação global, de alto nível cultural e científico, aos jovens que frequentam a Universidade?
- Como é que se concretiza o princípio da Universidade como espaço de cidadania, de pluralismo, de cooperação e de partilha de saberes?
- Como é que se reforçam as dimensões de investigação e de produção de conhecimento, numa altura em que o quotidiano universitário está invadido por um frenesim de tarefas e de actividades?
- Como é que se reforçam as lógicas de estudo individual, de trabalho colectivo, de acompanhamento pedagógico, de acesso e de transformação do conhecimento dentro do espaço universitário?
- Como é que se pode conceber de forma inovadora o funcionamento da instituição universitária e os seus modos de trabalho pedagógico, adaptando-os ao aumento do número de alunos e às características das novas populações estudantis?
- Como é que se harmonizam as relações entre a Universidade e o mundo do trabalho, sem cair num puro “economicismo”, o que obriga a mudanças no plano universitário mas também a alterações de fundo na organização das empresas e da vida económica?
Eis apenas enunciadas algumas questões, entre tantas outras que é urgente lançar para o debate.
Eu sei que o aviso de Miller Guerra está na memória de todos. Disse ele que as Universidades não se auto-reformam. O aviso ganha maior acuidade a partir do momento em que a autonomia universitária foi decretada. Tratou-se de uma decisão histórica, que tem permitido importantes evoluções nos últimos dez anos. Mas, agora, chegou um tempo de balanço. E não podemos deixar que o aviso de Miller Guerra se transforme numa profecia.
É um debate que deve ser travado com frontalidade. Sem desculpas. Uma das mais frequentes procura assacar as culpas aos níveis de ensino precedentes: “Quando aqui chegam os estudantes não sabem nada!”, diz-se frequentemente.
É verdade que há muitos problemas no ensino básico e secundário. E que, também estes, devem ser encarados de frente. Mas que tal não impeça cada um de assumir as suas responsabilidades próprias.
A este propósito, permitam-me que vos lembre um pequeno episódio. Episódio que é, aliás, cíclico na Universidade portuguesa.
Ao fazer o relatório das cadeiras que regeu no primeiro triénio da Faculdade de Letras (1911 a 1914), um dos mais notáveis professores desta casa, José Leite de Vasconcelos afirma que não foi possível fazer mais devido à “falta de preparação liceal dos estudantes”, à incapacidade que eles revelam no domínio das línguas e da gramática, à falta de hábitos de trabalho e de leitura, etc. etc. tudo imputado às deficiências do ensino secundário. E sempre assim se foram desculpando as insuficiências próprias da acção universitária.
Ao afirmar o princípio da responsabilidade, quero também chamar a atenção para a necessidade de consolidar práticas de avaliação das Universidades. Todos sabemos que em Portugal não há uma cultura de avaliação solidamente firmada.
Tradicionalmente, o controlo era exercido de forma administrativa ou burocrática por um poder estatal centralizado. No nosso país, sempre foram frágeis as regulações sociais, institucionais ou económicas. Hoje em dia, com a emergência da autonomia universitária, é urgente criar dispositivos de avaliação e de regulação que substituam os tradicionais controlos administrativos. E que criem condições para uma avaliação participada, interna e externa, das Universidades.
Sob pena de o desenvolvimento da rede do ensino superior se fazer ao sabor de interesses corporativos, locais ou económicos sem qualquer relação directa com estratégias de desenvolvimento económico, cultural e social do país.
Não basta dizer que o futuro de Portugal e da Europa passa pela produção de conhecimento, que a sociedade do século XXI terá como referências principais a informação e a inteligência. É preciso criar dinâmicas que concretizem, na prática, estas intenções. Que dêem um sentido novo à aposta nas Humanidades e na formação cultural dos estudantes universitários.
Que promovam o ensino e a investigação em torno da Língua Portuguesa, enquanto espaço de identidade, de cooperação e de afirmação plural da nossa cultura. Disse-o na recente Feira de Frankfurt e repito-o agora:
“Portugal é um país antigo, com uma história e uma cultura abertas ao Mundo, com uma língua que é falada por povos de vários países e continentes. É uma Nação - talvez a única - que fez de um poeta, Camões, o seu símbolo.
A literatura portuguesa é um meio único e insubstituível de nos conhecermos e de os outros nos conhecerem.
O próximo século terá de ser o século do encontro, da comunicação - não apenas técnica, mas humana - do diálogo universal. A língua e a cultura portuguesas são lugares de encontro, de comunicação e de diálogo. E são também a medida da nossa liberdade”.
Como Presidente da República é meu dever cuidar da Língua Portuguesa, zelando para que ela seja “a língua viva de um país vivo”. Sei que posso contar com a vossa colaboração. Como bem se demonstra com o acto que se agora se realiza e com o projecto da nova Biblioteca.
Para além da insígnia latina, Ad Lucem (“até à luz”), a medalha da vossa Universidade contém o galeão da cidade de Lisboa com os seus dois corvos, suspenso no espaço cósmico do saber, delimitado por duas colunas que sugerem a obra construtiva e a acção civilizadora das universidades. Temos aqui representada a cidade e o saber, isto é, o sentido social do trabalho universitário e a importância da cultura e da ciência. Cidade e Saber que se encontram ao serviço do desenvolvimento do país e de uma “sociedade do conhecimento”.
Eis os dois pólos em torno dos quais gira uma nova ideia de Universidade. Que mergulhada nas raízes do seu passado saiba encontrar respostas novas para o tempo presente. O futuro de Portugal depende, em grande parte, da “sua” Universidade.
E permitam-me que termine citando Adolfo Coelho, um dos primeiros professores desta Faculdade:
“Aqui é o vosso posto, até que todas as esperanças estejam perdidas; não para ficar na resignação quieta dos que se crêem perseguidos por um destino inexorável, mas para lutar até ao último momento.
Lutar com as armas da ciência e da consciência — eis o que devemos fazer.”