Sessão de Abertura do Seminário promovido pelo Presidente da República "Droga - Situações e Novas Estratégicas"

Centro Cultural de Belém - Lisboa
19 de Junho de 1997


Começo por agradecer a participação de V.Exªs neste Seminário que promovo e, em especial, dos conferencistas, nacionais e estrangeiros, que aceitaram debater connosco o problema da droga.
Os portugueses conhecem a minha concepção sobre a função presidencial como exercício de uma magistratura que defenda, garanta e reforce a coesão nacional.
Não tenho dúvidas em afirmar que a droga é um dos mais importantes problemas com que, hoje em dia, as famílias portuguesas são confrontadas e que provoca fenómenos dramáticos de exclusão e de marginalização sociais, insegurança, conflitualidade, intolerância, em áreas urbanas e rurais do nosso país.
A minha preocupação com o problema da droga não é recente e levou-me, enquanto Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, a criar um Plano Municipal de Prevenção da Toxicodependência, que dinamizou milhares de jovens, da quase totalidade das freguesias de Lisboa, em programas de prevenção inteiramente imaginados por eles e devidamente enquadrados.
A organização deste Seminário significa exactamente a medida da importância que o Presidente da República confere a este problema. Não tenho a ilusão de que encontraremos neste dia a solução para o problema da droga. Mas espero que as variadas contribuições que aqui iremos ouvir nos possibilitem conhecer melhor os caminhos que teremos de percorrer.
Sabe-se que a toxicodependência - como, aliás, acontece com outros fenómenos de exclusão social - é o produto de uma conjugação, sempre singular, de acidentes biográficos. Isso não impede que possamos e devamos tentar identificar os principais factores de vulnerabilização presentes nas nossas sociedades, já que a acentuação da sua incidência em certos grupos sociais promove maior tendência ao consumo de drogas.
Concentrando a atenção no universo juvenil, impõe-se começar por sublinhar alguns aspectos relacionados com a crise dos mecanismos de integração social associados à família e às redes de solidariedade de vizinhança. O seu papel protector e socializador não pode deixar de ser, por isso, abalado.
São cada vez em maior número os agregados familiares em que por força de ritmos profissionais acelerados, o tempo de partilha de experiências e de vivências intergeracionais está reduzido ao mínimo ou mesmo virtualmente anulado.
Muitas outras famílias vêem-se afectadas, nos equilíbrios económicos e nas dinâmicas relacionais e afectivas quotidianas, pelas consequências do desemprego, da precarização do emprego, do endividamento ou da pobreza - o que, em contextos sociais que apelam insistentemente, junto dos mais jovens, à intensificação dos consumos e ao alargamento da esfera do lazer não pode deixar de criar tensões e conflitos de alguma intensidade.
As redes de solidariedade e as sociabilidades de vizinhança actuaram muitas vezes, no passado, como amortecedor de dificuldades pessoais geradas noutros contextos, e em particular na família.
A verdade é que, quer os fenómenos de suburbanização massiva incidindo, sobretudo, nas grandes áreas metropolitanas, quer a heterogeneidade cultural não integrada de concentrações habitacionais destituídas de equipamentos sociais e de enquadramentos urbanísticos humanizados - tudo isto tem contribuído para esvaziar as unidades de vizinhança do seu papel equilibrador em termos de socialização das gerações mais novas.
Certos estilos de vida que, como é normal, emergem neste quadro, tendem então a desligar-se, porventura de modo irreversível, do contacto com outras experiências, valores e padrões normativos, enquistando-se em grupos que, quanto mais se automarginalizam, mais são marginalizados.
Os disfuncionamentos e contradições relativos ao par escolarização-sistema de emprego estão na base de outros processos de vulnerabilização social com repercussão na propensão à toxicodependência.
Abandono e insucesso escolares são, como é bem sabido, sanções que se abatem principalmente sobre crianças e jovens provenientes de meios sociais desfavorecidos, embora o fenómeno possa verificar-se, sobretudo em fases mais avançadas do percurso escolar, noutros segmentos da população.
Para além das dificuldades específicas que existem em termos de acesso ao mercado de emprego e, portanto, aos mecanismos de integração social propiciados pelo trabalho, tanto o abandono precoce do sistema de ensino, como o insucesso escolar acumulado conduzem a estigmatizações muito dolorosas para os mais jovens. Em sociedades que colocam a valorização dos recursos humanos como um dos pólos centrais da realização e sucesso pessoais, a exclusão do sistema de ensino e formação não pode, então, deixar de ser vivido com sentimentos de mal estar mais ou menos assumido.
Acontece ainda que a passagem pela escola, quer pelo alargamento de perspectivas culturais que sempre permite, quer pelo contacto com grupos diversos grupos sociais, contribui para ampliar significativamente o leque de aspirações e expectativas de largas camadas de jovens. Ora, não existindo, em muito casos, oportunidades de inserção no sistema emprego e de efectiva promoção social, estão à vista os potenciais de frustração que deste modo poderão emergir.
A ausência de participação social mobilizadora, por vezes emergente das sociedades actuais, também merece referência.
Nada mais favorável a uma aproximação conformista aos falsos valores de “redenção” pela droga do que a perda de confiança na resolução individual, mas sobretudo colectiva, dos problemas e das causas sociais do sofrimento.
Uma referência à cultura mediática dominante parece-me ser, nesta matéria, inteiramente pertinente.
Pertence-lhe, como é sabido, um papel importante na indução de necessidades e de aspirações consumistas, contribuindo à sua maneira, por razões que atrás já sugeri, para fomentar margens de frustração social de alguma envergadura.
Mas, ao participarem também, como é inegável, na construção das imagens sociais da toxicodependência, aos meios de comunicação social cabe ainda uma significativa responsabilidade no evoluir dos próprios meios utilizados para a prevenir e combater.
A última década, como sabemos, caracterizou-se por um dramático aumento do problema da droga que não poupa, praticamente, país nenhum do mundo. Se o número de países produtores de drogas ilícitas é relativamente pequeno, o tráfico e o consumo constituem hoje um problema mundial.
A produção e o tráfico de droga transformaram-se de um âmbito restrito numa poderosa indústria e comércio transnacionais envolvendo dinheiros em montantes incalculáveis, nas mãos de organizações criminosas, que utilizam todas as armas, incluindo a corrupção.
Nenhum Estado está imune aos seus efeitos, pelo que a cooperação intergovernamental é determinante e deve envolver toda a sociedade, nomeadamente, as organizações não-governamentais.
O problema deixou, assim, de ser apenas de cumprimento da lei e da criminalidade induzida pela pressão do consumo e dos danos físicos e psíquicos associados ao consumo de drogas para pôr em jogo interesses vitais dos Estados e das Sociedades, como o desenvolvimento económico, a estabilidade política e a própria democracia.
Mas as forças em presença são tão poderosas que as nossas expectativas devem ser realistas: não vamos poder acabar no curto prazo com o problema das drogas, mas devemos tudo fazer para reduzir os efeitos mais dramáticos que elas provocam nos indivíduos e nas sociedades.
Neste caminho passos importantes foram já dados pela Comunidade Internacional e pelos Governos:
O trabalho desenvolvido pela Organização Mundial de Saúde, que recolhe e analisa os dados sobre a saúde nos Estados-membros, utilizando um sistema de recolha de informação próprio em matéria de drogas; pelo Grupo Pompidou, a que Portugal actualmente preside, no âmbito do Conselho da Europa, que apoia a definição de políticas nacionais em matéria de consumo de droga; pela Unidade Droga da Europol, no âmbito da União Europeia, que visa uma intervenção comum em matéria de acção policial; pela Interpol que, na década de 70 criou uma Subdivisão para a Droga e publica relatórios regulares sobre o tráfico de droga.
Na década de 90 foi dado corpo a duas importantes intervenções:
O Programa das Nações Unidas de Controlo Internacional da Droga que tem permitido identificar novos princípios, novas estratégias, para reduzir a procura e a oferta de drogas ilícitas. Desde os objectivos a curto prazo de ganhar cada vez mais parceiros na sociedade civil - comunidades locais, empresas, famílias, sindicatos - até aos objectivos de médio e longo prazo que passam por uma mais estreita cooperação Norte-Sul, compreendendo os problemas de cada país e contribuindo para as alterações sociais que permitam reduzir a produção de drogas.
Por isso aguardo com expectativa a sessão especial, em 1998, da Assembleia Geral das Nações Unidas, para a qual Portugal foi eleito presidente do grupo preparatório, dedicada ao problema da droga, que espero vir a constituir uma ocasião para um debate plural sobre diferentes modelos, experiências e estratégias que visem o mesmo objectivo.
E como agência de informação europeia, o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, com sede em Lisboa, que recolhe e analisa dados, promove a melhoria dos métodos de comparação de dados, difunde essa informação e coopera com outros organismos internacionais e com outros países.
Registo com muita satisfação e orgulho o relevante papel que Portugal tem sido chamado a representar nestas várias instâncias internacionais, que nos prestigia e nos confere especiais responsabilidades.
Nesta matéria de tão forte complexidade não pode haver uma boa decisão política assente em dados incompletos ou grosseiros. Os dados epidemiológicos recolhidos sobre a procura de drogas, nomeadamente a prevalência do consumo, as formas de consumo, a caracterização sociológica dos indivíduos e dos grupos, as circunstâncias temporais e geográficas, devem ser de grande rigor.
As políticas que foram desenhadas e aplicadas para conter os efeitos do problema das drogas têm conduzido a resultados insatisfatórios, por vezes até perversos, que levam a supor não existir uma rigorosa compreensão das características multisectoriais do problema.
A proibição é o princípio fundamental que tem inspirado as políticas em relação às drogas, mas as dúvidas sobre a sua eficácia reflectem-se, antes de mais, nos resultados.
A política proibicionista não conseguiu deter o consumo de drogas, existe uma criminalidade que é sua consequência, existe mortalidade associada, muitas vezes, à impureza das substâncias, a SIDA e outras doenças transmissíveis aumentaram, também, na sua relação com a droga.
Mesmo os Estados mais acerrimamente proibicionistas desenvolvem hoje políticas de redução dos riscos, como as campanhas de trocas de seringas ou os tratamentos de substituição com metadona.
O debate na comunidade científica e na sociedade portuguesa, em geral, deve procurar o modelo que possibilite a redução da nocividade do consumo de drogas, nos indivíduos e na sociedade.
O debate deve reconhecer a dimensão ética e multidisciplinar do problema não redutível a posições tecnocráticas nem a saberes únicos.
Deve reconhecer que a marginalização e crítica sistemática dos cidadãos dependentes de substâncias só contribui para o agravamento do problema e que, pelo contrário, uma política de droga deve também ter como preocupação a audição organizada das experiências pessoais dos utilizadores de drogas.
Como já afirmei anteriormente não posso aceitar que a guerra à droga se transforme na guerra aos utilizadores de drogas.
O debate deve ter ainda em conta a história de sucessos e insucessos das políticas desenvolvidas nas últimas décadas, as experiências ocorridas em certas comunidades locais, aqui e em outros países, e a procura de consensos nacionais numa matéria que é reconhecidamente melindrosa.
O equilíbrio entre as diversas perspectivas sérias sobre esta matéria é difícil de determinar. Tenho consciência que os dados actualmente disponíveis não nos permitem antecipar, com rigor, as consequências de uma política alternativa. O que significa, minhas senhoras e meus senhores, que há seguramente, um deficit na investigação e no estudo multidisciplinar, como já acentuei.
Que este Seminário permita debater e, também, incentivar, ainda mais, a investigação, são os meus propósitos.
Penso que a experiência nos mostra já que a prevenção primária é e será um dos pontos chave de uma estratégia de redução do consumo das drogas.
E se pretendermos tornar mais efectiva a prevenção primária ela deve ter lugar nos primeiros anos do ensino obrigatório.
A inclusão de informação sobre a droga no currículo escolar será uma forma de as crianças e os adolescentes adquirirem gradualmente conhecimentos e atitudes na relação com a droga. Acções preventivas nas comunidades locais e em grupos específicos da população, a formação dos pais e a sensibilização de agentes sociais determinantes, deverão também ser considerados.
Nas políticas de redução do risco conseguimos já alguns progressos, desde o programa de troca de seringas até às experiências com drogas de substituição, que devem ser permanentemente monitorizadas e avaliadas na sua eficácia clínica, social e económica.
O crescimento do número de unidades oferecendo um conjunto de programas - tratamento, terapia familiar, programas de redução de risco - constitui, provavelmente, o eixo da estratégia da intervenção dos cuidados de saúde, mas a avaliação das variadas intervenções deve também ser permanente: os gastos tiveram um crescimento tão acentuado que se exige uma especial atenção à utilidade, à eficiência e à equidade na utilização dos recursos.
Os problemas relacionados com o consumo de drogas devem ser estudados e tratados por uma variedade de profissionais: professores, médicos, psicólogos, técnicos de serviço social, juristas, epidemiologistas, economistas, sociólogos, jornalistas, que necessitam de uma formação acrescida nesta área visando uma compreensão multidisciplinar.
Uma nota final para todos aqueles que diariamente lutam contra este problema. Têm à vossa frente um trabalho gigantesco na prevenção junto das famílias, na escola, na comunidade em geral, no tratamento ambulatório e no internamento, na reinserção, no incentivo à reconquista da auto-estima.
O êxito ou inêxito de uma qualquer política depende do vosso estudo, do vosso empenhamento e da vossa confiança na resolução colectiva deste problema.
Desejo-vos um bom trabalho.