Cerimónia de Entrega do Prémio Camões

Palácio de Itamaraty - Brasília
07 de Setembro de 1997


O acto que aqui nos reúne para a entrega do Prémio Camões tem um grande significado e é uma boa ocasião para reafirmarmos a nossa vontade comum de fazermos da língua que pertence a 200 milhões de seres humanos um meio eficaz de cooperação entre os nossos povos e um instrumento de projecção dos nossos países num mundo em que é crescente a valorização dos grandes conjuntos linguísticos.
Esta cerimónia realiza-se no Dia Nacional do Brasil e na presença do seu Presidente Fernando Henrique Cardoso, intelectual ilustríssimo e homem de larga visão cultural. Fico muito feliz por ter oportunidade de a ela poder assistir e agradeço-lhe muito, Senhor Presidente, o empenhamento que nela pôs. Quero testemunhar, nesta ocasião, também o grande empenhamento de Portugal na defesa, divulgação e valorização da língua em que dizemos uns aos outros o afecto que nos une e o interesse que temos em dar-lhe um conteúdo moderno, positivo, prático, que se traduza em maior intercâmbio e cooperação.
Se, como diz o provérbio, é a falar que a gente se entende, temos muitas razões para falarmos e muitos motivos para nos entendermos. Todos temos consciência de que é preciso substituir uma atitude passiva e fatalista por uma outra dinâmica e vigorosa. Não nos entendemos apenas porque a isso estamos condenados por falarmos a mesma língua. Entendemo-nos porque falamos a mesma língua e porque queremos esse entendimento, sabendo que ele é necessário, útil e proveitoso para todos.
A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, de que o Prémio Camões é um dos símbolos, é um projecto de acção que terá o alcance que lhe der a nossa vontade e a nossa ambição conjunta. É um projecto político, económico, cultural e linguístico, assente em valores, meios e objectivos partilhados. Pressupõe a definição de propósitos e a realização de iniciativas, entre as quais se conta uma política de língua, concertada e consequente.
Num mundo e num tempo em que a comunicação universal e instantânea é a mais poderosa causa de transformação e progresso, originando uma revolução radical nos nossos quadros mentais e nos comportamentos práticos, torna-se indispensável que se reforcem os laços culturais e linguísticos, pois são eles que nos defendem da massificação indiferenciadora e tornam compatível e mesmo complementar a identidade e a comunicação, o universal e o particular, a técnica e o humanismo, a unidade e a diversidade.
O universo linguístico que constituímos - e a que, de algum modo, podemos associar ainda o vasto conjunto de língua espanhola - tem um enorme peso demográfico e uma grande relevância geo-política. A língua portuguesa une continentes, países e povos muito distantes. É nela que esses povos de várias geografias expressam as suas culturas, as suas diversas visões do Mundo, as suas experiências plurais, enriquecendo, alargando e renovando a língua.
Uma língua é o rosto com que nos apresentamos, um sistema vivo que nos permite compreender e agir sobre a realidade, que torna possível que nos aproximemos e nos distanciemos de nós mesmos. Uma língua é uma comunidade e uma comunicação de símbolos, de valores, de usos, de perguntas, de respostas, de memórias, de aspirações. Quando usamos uma língua falamos com o presente, mas também com o passado e com o futuro. Uma língua nunca se encontra no mesmo ponto. A melhor maneira de a defendermos é recriá-la incessantemente. É o que os escritores fazem, dando individualidade à voz colectiva e tornando colectiva a voz individual. É, por isso, que os escritores são, ao mesmo tempo, anteriores e posteriores a si mesmos. Se a língua é uma Pátria, os livros são os seus caminhos, as suas rotas, as suas cidades. É deles que se avista o horizonte da língua.
O Prémio Camões, que se entrega pela nona vez e que já distinguiu escritores brasileiros, moçambicanos, portugueses, distingue, este ano, um escritor angolano. A Miguel Torga, João Cabral de Mello Neto, José Craveirinha, Vergílio Ferreira, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, José Saramago, Eduardo Lourenço, junta-se agora Pepetela que na sua obra vasta e rica transmite a sensibilidade tão intensa do seu povo e testemunha uma experiência pessoal e colectiva marcada por tempos difíceis.
Ao felicitá-lo, quero fazer votos de que Angola prossiga a busca difícil da paz e da reconciliação nacional, único caminho que lhe permite reconstruir-se como grande País, assegurando a todos os angolanos a concórdia, a solidariedade, a tolerância, a prosperidade e a liberdade.
Símbolo de uma língua e de uma Comunidade, o Prémio Camões entra assim, para o ano, na sua décima edição. É a altura talvez - e peço vénia para o dizer - de fazermos um balanço, ajustando o que se mostrou necessário ajustar, de modo a dar-lhe ainda maior visibilidade e consequência.
Nesta data de Festa Nacional do Brasil, país que dá à língua que nos é comum uma dimensão e uma renovação excepcionais, lembremos uma frase da grande escritora Clarice Lispector: “Eu penso e sinto em português e só esta língua me satisfaria”. Creio que ela diz o que, em português, pensamos e sentimos, reafirmando-o neste dia e neste acto que é de responsabilidade e de júbilo.