Sessão Solene comemorativa do 24º Aniversário do 25 de Abril

Assembleia da República
25 de Abril de 1998


Comemoramos a liberdade e celebramos a democracia, no 25 de Abril, lembrando, em primeiro lugar, todos aqueles que participaram na sua construção.
Das inúmeras atitudes de protesto e de revolta contra a opressão se alimentou um imenso património de resistência ao autoritarismo durante décadas e décadas de ditadura. Quando, a 25 de Abril de 1974, os militares do Movimento das Forças Armadas derrubaram o Estado Novo, esse legado das gerações anteriores legitimou o seu acto de coragem e de responsabilidade.
O sentido que a ruptura do 25 de Abril tomou é pois indissociável das aspirações da Resistência e da determinação dos Militares de Abril.
Mas é igualmente indissociável do movimento social de apoio, e do desejo de mudança que ele exprimiu, sob as mais diversas formas, desde as primeiras horas do dia 25 de Abril. A acção popular, por vezes tumultuosa, por vezes contraditória, mas com espontaneidade, precipitou o desmantelamento do Estado Novo e exigiu a rápida criação de novas instituições.
Coube aos partidos políticos interpretar a vontade popular, expressa em eleições livres, e definir um regime constitucional assente na representação plural da sociedade portuguesa e na legitimação eleitoral do poder político.
Envolvemos nesta homenagem, feita também de memória, que é porventura a mais sentida forma de reconhecimento, os combatentes contra a Ditadura, os capitães de Abril que a derrubaram, o movimento popular que abraçou de imediato a causa da Liberdade, os partidos políticos que, com a sua pluralidade, ergueram a Democracia no nosso país.
A democracia trouxe consigo transformações profundas à sociedade e mudou o quadro das políticas nacionais. Destacarei, entre outros, três aspectos dessas mudanças em curso: a relação com os Países de Língua Oficial Portuguesa, a integração europeia, a modernização das Forças Armadas.
O 25 de Abril representou um virar de página na nossa história, um fim de ciclo. Com ele surgiram novos Estados, livres para seguirem o seu próprio caminho, e um novo conceito de relação entre Portugal e os outros países de língua portuguesa.
Os laços de fraternidade forjados numa história partilhada, baseados em vínculos culturais singulares e numa língua comum, passaram a constituir o elemento agregador de uma vastíssima comunidade reunindo países de três continentes.
A nossa política externa tem valorizado este conjunto de relações, quer no plano bilateral quer no plano da Comunidade de Países de Língua Oficial Portuguesa.
A CPLP é um projecto tão pertinente quanto ambicioso. Há um lugar, no sistema de relações internacionais, para instituições com vocação interregional, como é o caso, desenvolverem novos domínios de cooperação e aprofundarem identidades específicas.
Temos aqui um longo caminho à nossa frente.
A Liberdade, porém, não chegou ao povo mártir de Timor-Leste, de cuja luta e sofrimento sou solidário, com todos os portugueses.
Quero dirigir neste momento uma especial saudação à Convenção Timorense, apostada em discutir um quadro de acção política consensual, e manifestar esperança nos esforços do Secretário Geral das Nações Unidas para encontrar uma solução justa da questão de Timor-Leste.
Portugal não esquece Timor e os timorenses, e continua determinado a defender intransigentemente os seus direitos, designadamente o direito fundamental de poderem escolher o seu destino.
A nova república portuguesa associou o seu destino à Europa. A integração europeia, que a democracia projectou e conduziu, foi, por seu turno, um factor de estabilização democrática. Contribuíu para a racionalização e o enquadramento das estratégias de modernização económica e social do país. Permitiu que Portugal definisse, de forma clara e consistente, uma nova posição internacional, abandonando um largo período de isolamento. Constituíu, por tudo isto, uma oportunidade para sublinhar os traços históricos da identidade nacional numa dimensão de abertura e de diálogo, onde se exprime a nossa vocação universalista.
Foi árduo o caminho do nosso reencontro com a Europa. Os obstáculos foram vencidos graças à lucidez dos responsáveis políticos que souberam definir uma orientação firme, e preservar os consensos internos indispensáveis para manter uma linha de rumo coerente, antes e depois da adesão efectiva de Portugal às Comunidades Europeias.
Esse percurso era obrigatório para que a nossa visão sobre a evolução da Europa e as nossas posições acerca das políticas comunitárias ganhassem a autoridade e a relevância indispensáveis, tanto para a defesa efectiva dos nossos interesses nacionais, como para garantir uma participação plena na edificação comum da Europa das democracias.
A presença de Portugal entre os fundadores da moeda única marca uma viragem histórica. Pela primeira vez, Portugal está na primeira linha, num momento decisivo, quando se inicia uma nova etapa, fundamental para o futuro de uma Europa livre e unida.
Há por isso boas razões para ter orgulho em Portugal e nos Portugueses, que souberam reconhecer a importância deste desígnio nacional, e se empenharam na sua realização, com um profundo espírito de responsabilidade.
Do mesmo modo, merecem reconhecimento os esforços continuados de sucessivos Governos na preparação das condições indispensáveis para passarmos à terceira fase da União Económica e Monetária, num quadro de continuidade do consenso em que foram envolvidos parceiros económicos e sociais. A manifestação de legítimas correntes de opinião mais críticas não impediu que todos compreendessem os sacrifícios indispensáveis à modernização e o alcance nacional dos objectivos prosseguidos.
O mérito deste resultado deve ser sublinhado por dois motivos adicionais. Primeiro, por contrariar algumas expectativas mais pessimistas que prevaleciam interna e externamente sobre a nossa capacidade para cumprir, em tempo, os critérios de convergência que determinam o acesso à moeda única. Depois, porque Portugal alcançou os objectivos fixados pelo Tratado de União com uma margem muito respeitável, do ponto de vista macroeconómico.
Há pois razões para ter confiança. Sem cair em voluntarismos deslocados, vale a pena insistir na importância do espírito de confiança como uma condição de sucesso, sobretudo quando se trata de fazer face a processos de mudança profundos. Por outro lado, os factores positivos na situação económica e social são cruciais para se poder avançar rapidamente, nas mudanças prioritárias, com empenhamento generalizado de todos. Elas tornam-se ainda mais urgentes, tanto pela própria moeda única, como pelo próximo alargamento da União Europeia.
A integração europeia pôs á prova a democracia, a capacidade de resolver politicamente um grande desafio nacional, e pôs á prova a capacidade colectiva de realizar e absorver mudanças estruturais a um ritmo acelerado.
Perante a exigente negociação que está à nossa frente na União Europeia, e que nenhum dos nosso parceiros facilitará, será necessária uma assumida frente externa, da responsabilidade de todos os agentes políticos, económicos e sociais, sem prejuízo, claro está, das responsabilidades próprias do Governo. Mas em boa verdade ninguém poderá ser mero espectador perante desafio nacional desta importância, nem capitalizar sobre as dificuldades que encontraremos.
As mudanças não incidiram apenas nos planos económico e social. No plano institucional, as Forças Armadas enfrentaram, desde o fim da guerra colonial, desafios muito complexos. As opções estratégicas do país em matéria de defesa e segurança foram objecto de novas conceptualizações. Iniciou-se um debate sobre o modelo organizacional e a reestruturação das Forças Armadas portuguesas.
É importante aprofundar o debate sobre tais opções, visando um consenso nacional, condição que permitirá concretizar um corpo coerente de conceitos e princípios orientadores. A defesa nacional, em democracia, sublinho, em democracia, constitui uma tarefa essencial do Estado que deve ser partilhada por todos os portugueses. Daí que o debate e a reflexão sobre as grandes questões estratégicas que lhes estão associadas não possam ser restringidas a um pequeno núcleo de especialistas, devendo envolver os diversos sectores da sociedade portuguesa.
Entretanto, as Forças Armadas portuguesas passaram a estar presentes em importantes missões internacionais, nomeadamente na Bósnia, em Angola e em Moçambique, desenvolvendo acções de cooperação militar, como expressão da política externa do Estado português. E fizeram-no de forma exemplar, com eficácia, disciplina e empenho, prestigiando-se e prestigiando Portugal.
As reformas em curso constituirão, estou certo, um estímulo crescente para a carreira militar e para as verdadeiras consagração e assunção das finalidades nacionais das Forças Armadas numa República democrática moderna.
O exemplo das adaptações institucionais conseguidas e das realizações bem sucedidas defende-nos do cepticismo, e transmite confiança para continuar a vencer dificuldades e resistências à mudança.
Muitas dessas dificuldades e resistências correspondem a atrasos acumulados, não só de recursos como de práticas. A integração europeia acelerou algumas das transformações estruturais, mas subsistem debilidades que seria perigoso negligenciar. Não me refiro apenas ás fragilidades do aparelho produtivo, mas principalmente às que respeitam ao nosso sistema social e institucional.
Uma cidadania plena não se alcança apenas através do reconhecimento de direitos, mas sobretudo pela afirmação e pela generalização das práticas sociais que reforçam a igualdade de oportunidades, a participação cívica, a autonomia individual.
Os processos de tomada de decisão, cada vez mais implicados num mundo global, exigem crescentemente exactidão, eficácia e informação. Neste ponto, muito há a mudar nos padrões e nas rotinas dos portugueses. Impõe-se uma cultura de rigor, metodologias de exigência, debates qualificados e decisões sustentadas.
Gostaria a este propósito de me referir a uma grande realização nacional, que nos pôs à prova, a Expo 98, e a um desafio que nos convoca a todos, que é o do combate á droga.
A capacidade nacional de conceber e executar projectos com largo alcance internacional ficou mais uma vez demonstrada com a organização da Exposição Mundial em Lisboa.
Expo 98 constitui um ensejo para valorizar os temas culturais e científicos ligados ao mar, e deste forma sublinhar o espírito humanista dos descobrimentos portugueses, que foram um contributo decisivo para a unificação de um mundo fragmentado, nos alvores da Época Moderna.
Mas é como grande realização, exemplar não só nos propósitos como nos meios que convocou e na integração de múltiplas disciplinas de intervenção, que pretendo apontá-la. É certamente um motivo de orgulho, dada a complexidade dos problemas que houve a resolver e a qualidade das soluções encontradas.
A Expo não fez, por um golpe de mágica, desaparecer os problemas nacionais, apesar de ter implicado acréscimo significativo das capacidades de criação e de produção.
Mas é uma grande realização nacional, integradora, renovadora, inovadora, um marco na consolidação do prestígio internacional de Portugal. Estou certo de que todos o compreenderam e saberão, nessa medida, valorizar, agora e até ao sue termo.
As mudanças, tanto institucionais e políticas como sociais e culturais, têm de suscitar previsão e adaptação. Há um conjunto de domínios em que a estabilidade e coesão sociais, sem prejuízo do confronto de políticas, deverá caminhar para a formulação de grandes consensos que assegurem uma solidariedade entre gerações.
O caso da droga, uma das realidades mais dramáticas e complexas das sociedades modernas, constitui uma situação paradigmática.
Existe hoje uma consciência, diria que espontânea, de que estamos perante um problema de dimensões globais que afecta o conjunto da vida social.
O problema das drogas já não está associado apenas às consequências físicas e psíquicas sofridas pelo consumidor e à criminalidade associada ao tráfico e à pressão do consumo. É de facto uma verdadeira ameaça a interesses fundamentais, que vão do desenvolvimento económico ao exercício da cidadania.

Trata-se de um problema para o qual não há uma resposta única. Requer pois uma concertação de recursos e de parceiros, uma cooperação entre instituições e Estados, uma atenção e um estudo permanentes e multidisplinares.
Estamos perante uma questão que impõe um compromisso amplo, entre o Estado e a sociedade através das suas instituições, um contrato de gerações que comprometa aqueles que agora detêm a responsabilidade com a qualidade da vida dos que virão a seguir.
Esta é uma oportunidade rara que não podemos desperdiçar.
Os contratos de geração dignificam a função reguladora do Estado, tanto quanto dignificam as organizações sociais neles implicadas. Há também outros domínios, como por exemplo os da segurança social, da saúde ou da justiça, em que o diagnóstico de situação foi efectuado, o estudo e o debate das soluções está adiantado. As parcerias sociais estão disponíveis e o acordo certamente agregará vontades e criará sinergias.
Os instrumentos da solidariedade valem para os problemas concretos da sociedade portuguesa. Uma democracia de cidadãos tem de ser capaz de corrigir o que os mecanismos económicos e sociais de mercado desequilibram e repôr a equidade e a igualdade de oportunidades onde elas foram rompidas.
Não é uma responsabilidade de uns, apenas, que possa acomodar-se a privilégios corporativos ou a egoísmos de grupos instalados. Sem solidariedade não há cidadania.
Quero finalmente referir-me a duas ocasiões importantes para a democracia portuguesa. o próximo referendo nacional e as celebrações do 25 de Abril de 1999.
A democracia não é um regime imutável. A representação política tem sido questionada por novas formas de participação directa dos cidadãos. Tem reconhecido a pertinência de uma maior aproximação entre eleitores e eleitos. A democracia enriquece-se e reforça-se com as reformas que abrem a possibilidade de novas modalidades de intervenção e participação política.
Temos agora, perante nós, a oportunidade de dar concretização prática aos novos mecanismos da dimensão participativa da nossa democracia, no quadro constitucional, com a próxima realização do primeiro referendo nacional.
A circunstância de o recurso ao referendo ocorrer pela primeira vez na prática constitucional da nossa democracia não deve conferir ao acto qualquer dramatismo, seja qual for a natureza das opções a tomar pelo povo soberano.
A democracia representativa garante o quadro essencial de estabilidade política e institucional. A participação directa dos cidadãos tem de ser um factor complementar que reforce a legitimidade das escolhas e a coesão nacional.
Mas é por se tratar de um experiência nova entre nós que a realização de referendos nacionais impõe a todos uma responsabilidade acrescida, que é a de conduzir o debate no respeito integral pelas regras da tolerância, no confronto das opiniões, e com a maior clareza de argumentos, prevenindo a formação de fracturas susceptíveis de minar a coesão social.
Estou certo de que o referendo será uma demonstração da maturidade da democracia portuguesa.
O 25 de Abril é certamente um dos acontecimentos mais marcantes da nossa história contemporânea. Introduziu grandes e profundas transformações na sociedade portuguesa. Nele teve origem um regime democrático que tem sabido acolher essas transformações.
No próximo ano, comemorar-se-ão os 25 anos do 25 de Abril. Desejo o empenhamento de todos os órgãos de soberania nesse acto evocativo a que devemos associar especialmente as mais jovens gerações, que já se formaram no regime democrático, e são o futuro da nossa democracia.
Essa passagem de testemunho é decisiva. O legado mais valioso que oferecemos ao próximo século é precisamente a Liberdade!
O 25 de Abril de 1974 foi um sinal de esperança. O seu futuro será realização da nova geração, a geração da Liberdade.