Conferência Comemorativa dos 50 Anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem e dos 20 Anos do Estatuto do Ministério Público

Lisboa
12 de Dezembro de 1998


Bem hajam os promotores do ciclo de conferências agora iniciado, sob os auspícios de um tema que, pelas efemérides convocadas, é, simultaneamente, História e projecto.
História milenar e conturbada, a dos direitos humanos, porventura iniciada nesse momento singular em que se passou do facto à norma, do arbítrio da vontade à regra estabelecida, abrindo caminho à magnífica proclamação de Hamurabi, 1700 anos antes de Cristo:
“(...) fazer brilhar a justiça para impedir o poderoso de fazer mal ao fraco”.
Foi longo o percurso, desde então, balizado por marcos que a memória de todos acarinha e exalta, ora nascidos dos ardores da Fé, como em Paulo de Tarso ou em Agostinho de Hipona, ora feitos bandeira da construção dos Povos - Bill of Rights para uns, Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão para outros, mas sempre na trincheira da emancipação do homem e das comunidades em que se completa.
É a esta luz que a proclamação de Paris, cujas bodas de ouro continuaremos a comemorar, se reveste de exemplar significado.
Terminada uma das mais sangrentas guerras a que a Humanidade foi sujeita, com o seu cortejo de barbáries e de holocaustos, a Assembleia Geral das Nações Unidas, na veste representativa de forum universal, veio afirmar à cidade e ao mundo, nesse Palácio de Chaillot recém inaugurado, e fronteiro - qual coincidência provocatória - ao campo de Marte e à Escola Militar, que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”, que “são dotados de razão e de consciência e devem agir uns para com os outros com um espírito de fraternidade”.
Era apenas uma proclamação, em que se vertiam direitos civis e políticos, económicos e culturais, e ainda os que ao homem são devidos como ser social.
Mas quando a Senhora Roosevelt, cuja militância e sentido da dignidade humana merece a nossa gratidão, exclamava que esta é a Magna Carta de todos os homens, em toda a parte, irmanava, assim e naquele momento, História e projecto, e com isso convocava todos para o combate que continua longe de ser cumprido.
Na verdade, os genocídios no Camboja, na ex-Jugoslávia, no Ruanda e em Timor; os massacres na Argélia; as torturas e os desaparecidos nos regimes policiais da América Latina; os acontecimentos de Tian An Men; as violências às mulheres no Irão e no Afganistão, ou o trabalho forçado de crianças na Índia, são momentos de angustiante repúdio desta Declaração Universal de Direitos do Homem.
É que a voz poderosa dos grandes deste mundo se serviu para proclamar os direitos de todos, ainda não foi capaz de os garantir a todos.
E por isso continuaremos a ser interpelados. Interpelados pela morte, em cada dia, por subnutrição, de 35.000 crianças; interpelados pelos mil e trezentos milhões de seres humanos que vivem com menos de um dólar por dia; interpelados pelos mil milhões de homens e mulheres que não sabem ler nem escrever; interpelados ainda pelos quatro quintos da humanidade que não ultrapassaram o limiar da miséria. E tudo isto quando apenas 4% da riqueza acumulada das 225 maiores fortunas mundiais seria suficiente para satisfazer as necessidades básicas de alimentação, saúde e educação, de toda a população do globo.
As frentes que nestes cinquenta anos se abriram e as vitórias nelas alcançadas constituem, porém, um estímulo à esperança e à vontade.
Se a Declaração Universal dos Direitos do Homem venceu nas lutas contra o colonialismo e contra o apartheid, contra a discriminação racial e sexual, contra a escravatura e contra a pena de morte; se pela OIT e pela UNESCO se alargaram os horizontes do trabalho digno e se ampliou o universo da cultura partilhada; se as Ligas dos Direitos do Homem e a Amnistia Internacional continuam a velar em toda a parte pelas liberdades públicas, prossigamos, então, na caminhada para um tempo em que todos os direitos de qualquer homem, em qualquer parte, conheçam, finalmente, um modo suficiente de satisfação e de guarida.
E nem nos deixemos perturbar pela inesperada reedição da controvérsia das liberdades formais e das liberdades materiais, agora enroupadas de direitos civis e políticos, de um lado, versus direitos económicos, sociais e culturais, do outro, controvérsia quase sempre acompanhada da invocação de especificidades regionais e de diferentes estádios de desenvolvimento.
É óbvio que tudo isso tem de ser respeitado; e que na História de cada Povo, os direitos do homem terão de ter em conta aquelas realidades. Mas a sua invocação só deixará de ser mero pretexto para a conservação de situações de poder e de opressão, quando as leis e as práticas derem tutela à integralidade dos direitos do homem, com a configuração que o tempo, o lugar e a cultura aconselhem, sem dúvida, mas em que a regulamentação assim estabelecida ou as práticas implantadas não descaracterizem o que constitua o núcleo essencial que em cada direito do homem se contem.
Portugal, apesar dos níveis apreciáveis de fruição dos direitos humanos que o derrube da ditadura e a reinstauração da democracia vieram propiciar, tem ainda um longo percurso a percorrer.
A Revolução de Abril, cujo vigésimo quinto aniversário nos preparamos para festejar, também aqui numa irrecusável perspectiva de História e de projecto, representou para nós a proclamação sem reservas da Declaração Universal dos Direitos do Homem, sempre desdenhados pela ditadura, que confinava os padrões de comportamento societário às necessidades de uma comunidade mantida fora da História. E porque assim era, as relações interindividuais plasmavam-se em matriz e regras que constituiam um espartilho insuportável quer para as aspirações das pessoas e das famílias, quer para as exigências de disciplina dos bens e do seu comércio.
Contra esse estado de coisas, militavam os anseios de justiça e de progresso de várias gerações à espera de uma vontade.
A vontade cumpriu-se; e com ela, abriram-se para Portugal as vias da modernidade e do reencontro com a História.
Nesse reencontro, assume particular relevância a introdução na Constituição da República de tudo quanto se contem na proclamação de Paris, com os aperfeiçoamentos e a densificação que, entretanto, lhe foram sendo introduzidos pelo labor da comunidade internacional.
É neste quadro de reconhecimento e aplicação de direitos que o Ministério Público, até então parente pobre e vestibular das magistraturas, assume a função de defensor da legalidade e da independência dos tribunais, promovendo a defesa da sociedade contra o crime e a realização do princípio da igualdade no acesso ao direito e à Justiça. E tudo isto com um estatuto de autonomia e de mera vinculação a critérios de legalidade estrita e de objectividade.
Decorridos vinte anos sobre a definição legal de tal estatuto e função, impõe-se sublinhar o contributo decisivo do Ministério Público para a promoção e tutela dos direitos humanos.
Na verdade, quando o magistrado do Ministério Público, sem qualquer subordinação aos outros poderes, promove a defesa da legalidade, em que estão inscritos todos os direitos do homem; quando usa os meios de impugnação que nas várias jurisdições lhe estão atribuídos; quando exerce a acção penal de harmonia com critérios de estrita legalidade, objectividade e isenção; ou quando assume o patrocínio dos trabalhadores e suas famílias, dos incertos, dos ausentes e dos incapazes, em cumprimento desse magnífico dever orfanológico geral que sobre ele impende, é os direitos humanos que está a promover e a garantir, porque só o homem e a tutela dos seus direitos são fundamento e última razão da lei e do Estado.
É sabido que a realização do Estado de Direito não se confina, porém, a um único modelo de organização e de intervenção do Ministério Público, sempre dependente, na sua formulação, das experiências históricas de cada comunidade e dos modos de assegurar, aí, em concreto, o equilíbrio dos poderes e a eficácia ética e pragmática das soluções.
O modelo consagrado entre nós em 1978 tem provado bem; e algumas deficiências de funcionamento que se lhe poderão apontar dificilmente se reconduzirão ao estatuto e funções do Ministério Público na formulação que vem tendo entre nós.
É que a chamada crise da Justiça nada tem que ver com os princípios informadores das magistraturas, seja a judicial, seja a do Ministério Público, nem a eles se reconduz.
E se entendo não ser este o momento de fazer uma avaliação global do estado da Justiça, as efemérides que hoje nos convocam levam-me, todavia, a sublinhar que a adequada tutela dos direitos do homem passa por uma administração da Justiça pronta, serena e eficaz.
E se é irrecusável a indispensabilidade de aperfeiçoamento do sistema, as vias que para o efeito terão de ser percorridas tenderão a ficar obstruídas se todos os agentes da Justiça não revelarem sempre, nas palavras e nos actos, uma exaustiva consciência do conteúdo e limites da função que servem, ou se a legítima crítica dos cidadãos a decisões concretas tiver como eixo fundamental circunstâncias adjectivas de tais decisões, deixando de lado a serena apreciação do bem ou mal fundado das soluções de fundo em cada caso proferidas.
O Ministério Público tem uma função essencial na defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos; e nestes vinte anos, têm-na exercido com assinalável sentido ético e de serviço à comunidade. Mas porque assim é, deve continuar atento à crítica dos seus concidadãos, com a serenidade e com a humildade que tem evidenciado, para que, com todos, seja sujeito das vias de aperfeiçoamento que a administração da Justiça terá de percorrer.
Nesta dupla efeméride que hoje nos reúne, saibamos reconhecer nela o traço que lhe é comum - a luta pela liberdade e pela dignificação do homem.
Só seremos dignos da História, se porfiarmos no projecto de libertação que a justifica e a exalta.