Sessão Comemorativa do XXV Aniversário da Universidade de Aveiro

Aveiro
15 de Dezembro de 1998


É para mim um grato prazer participar nesta sessão comemorativa dos 25 anos da Universidade de Aveiro. O Sr. Reitor e a academia aveirense sabem o apreço que tenho por esta instituição. É ainda credora do meu reconhecimento pelo apoio que têm dado a iniciativas da Presidência da República, em particular durante a Semana da Educação.
25 anos é o tempo de uma geração. É o tempo certo para um balanço, para uma reflexão, não só sobre a vossa Universidade, mas sobre o Ensino Superior no seu conjunto.
Permitam-me que recue, por um momento, ao ano de 1968.
No mundo inteiro, discutia-se o sentido da Universidade. Todos conhecem os acontecimentos.
Mas deixem-me recordar que datam desse ano algumas das páginas mais lúcidas escritas sobre o tema de “A Universidade na vida portuguesa”.
Na revista Análise Social, Adérito Sedas Nunes, Miller Guerra, Jacinto Nunes, Nuno Portas, e tantos outros, não hesitam no diagnóstico que traçam da crise da Universidade, tema que será retomado em plena Assembleia Nacional.
Ao reler estes documentos, somos surpreendidos pelo espírito reformador que os anima, pela frontalidade da crítica ao ensino tradicional, pelo desejo de Universidades de "outro estilo", de "outro tipo institucional".
Neles se fala de muitos catedráticos e professores para quem o tempo ocupado na Universidade é um mero acidente, da premência das instituições se adaptarem de forma flexível ao mundo e à vida, de uma adequada formação pedagógica e científica dos seus docentes, da importância de uma investigação autêntica sem a qual não há ensino superior, de uma efectiva participação dos estudantes na vida académica, de uma mudança dos métodos de ensino e dos processos de avaliação...
Não é este o lugar para uma análise aprofundada destes textos. Mas quero partilhar convosco três exigências de que esta geração era portadora:
1º Em primeiro lugar, da necessidade de uma maior abertura e expansão do ensino superior.
2º Em segundo lugar, da urgência de pôr fim à rigidez das estruturas universitárias.
3º Em terceiro lugar, da reivindicação de uma efectiva autonomia das Universidades.
No final da década de sessenta o número de estudantes do ensino superior não ultrapassava os 40.000, concentrados nas cidades de Coimbra, Lisboa e Porto. As previsões mais radicais apontavam a possibilidade – considerada irrealista – de duplicar este número e de criar três ou quatro novas Universidades.
Hoje, este número não foi duplicado, foi multiplicado várias vezes: passou de 40.000 para cerca de 350.000 estudantes do ensino público e privado. Hoje, não existem mais três ou quatro Universidades.
Existem 14 Universidades públicas, algumas delas integrando escolas universitárias e escolas politécnicas (como sucede com Aveiro), 15 Institutos Politécnicos e mais de uma centena de instituições do ensino superior particular e cooperativo. É uma mudança de enorme significado. Nos últimos dez anos, Portugal foi, de longe, o país da OCDE que teve maior crescimento em número de alunos e de estabelecimentos do ensino superior. A população do ensino superior em Portugal corresponde hoje a perto de 30% da população portuguesa com idades compreendidas entre os 18 e os 24 anos.Houve uma abertura notável do ensino superior a alunos provenientes de camadas sociais e regiões desfavorecidas, e às mulheres.
Todos estaremos de acordo na afirmação de que esta expansão era necessária. Mas todos reconheceremos, também, que ela trouxe problemas e dificuldades novos que é preciso agora enfrentar
Uma Universidade não surge do nada, não se estabelece através de uma mera conjugação de vontades pessoais, de interesses económicos e de apoios locais. A fundação de uma Universidade exige um tempo longo de preparação, de formação dos seus docentes, de consolidação de uma cultura científica e de um espírito académico, de projectos de formação cívica e cultural.
Neste sentido, a história da Universidade de Aveiro é exemplar, até porque se desenvolveu no contexto e um crescimento planificado do ensino superior da própria instituição.
Mas, infelizmente, não podemos dizer o mesmo de outras instituições, públicas e privadas, que foram sendo criadas no nosso país nos últimos dez anos. É minha obrigação alertar para este facto. Ao fazê-lo, quero deixar um apelo a todos os responsáveis para que promovam uma reflexão sobre o ensino universitário, no sentido de fortalecer o princípio de uma rede integrada de instituições – públicas e privadas, universitárias e politécnicas – que se articulam e se completam nas suas funções.
Uma rede que valorize experiências e especificidades e se desenvolva com base numa análise realista dos recursos humanos e materiais existentes.
Neste sentido há que avaliar sem preconceitos o sistema binário existente hoje no nosso país, bem como o papel dos diferentes tipos de instituições universitárias e politécnicas.
Não será compreensível nem aceitável que se enverede pelo caminho de criação "avulsa" de novas instituições, como resposta pontual às mais diversas solicitações. E certamente que a solução não passa pela proliferação de pólos ou de extensões, um pouco por todo o lado, ao sabor de reivindicações locais ou de interesses institucionais.
A formação de um estudante não se faz apenas nas aulas. Implica uma vivência pessoal e colectiva que só pode ter lugar no seio de verdadeiras comunidades académicas e científicas. Caso contrário, estaremos a reproduzir uma visão estreita e redutora, que põe em causa a dimensão cultural da vida universitária.
Não gostaria de ser mal entendido. Parece-me indispensável continuar o esforço nacional de investimento no ensino superior. Não me ouvirão repetir um dos pensamentos que o Estado Novo obrigava a afixar nas escolas e que rezava assim:
"Advogados sem causas, médicos sem clientela, arquitectos sem trabalho, a vossa instrução nem sempre vos servirá para combater a adversidade, ao passo que um bom ofício salvou sempre o operário corajoso, permitindo-lhe afrontar a inclemência da sorte."
Não. Não é esta a minha perspectiva.
É oportuno citá-lo, Prof. Júlio Pedrosa, quando afirmou que "seria um gravíssimo erro se Portugal tivesse algum receio de que o aumento da formação das pessoas ao mais alto nível gerasse problemas de desemprego". Antes pelo contrário, o nosso problema é ainda a existência de um défice de formação superior na população.
Mas, hoje, exige-se a todos uma reflexão continuada e corajosa sobre o ensino superior, de forma a que se encontrem os caminhos certos para um desenvolvimento integrado e harmonioso, no plano nacional, da rede de instituições públicas e privadas.
A segunda crítica que se ouviu há 30 anos era dirigida à "rigidez das estruturas universitárias perante o dinamismo e a rapidez da evolução social". A desconfiança destes autores era tal, que não se coibiram de afirmar que as Universidades não se auto-reformam. E, por isso, clamaram alto e bom som "que não era possível empreender a reforma das Universidades existentes se não se fundassem novas Universidades". Foi com este espírito que se iniciou um processo de criação de várias instituições, entre as quais a vossa própria Universidade.
Hoje, sabemos que as Universidades novas nem sempre foram novas Universidades. E que, apesar de tantas mudanças, as estruturas universitárias conservam uma grande rigidez.
Desde logo, nos modelos de gestão e de funcionamento. Por isso, parece-me essencial imaginar soluções criativas, que respondam às exigências do tempo presente e que permitam o desenvolvimento de novas funções do ensino superior. Pela minha parte, gostaria de incentivar experiências inovadoras — e muitas têm sido levadas a cabo nesta Universidade — que contribuam para uma melhoria do ensino.
Mas a rigidez manifesta-se, igualmente, na incapacidade para conceber e pôr em prática cursos com características diferentes, organizados de forma flexível e inovadora, por exemplo através da associação ao mundo da ciência, da arte e das empresas.
Finalmente, gostaria de chamar a atenção para a importância de adaptar as estruturas universitárias ao acolhimento de novos públicos. Para além dos alunos jovens, que seguem um processo de formação inicial, as instituições terão de se abrir a adultos que procuram uma segunda oportunidade educativa, a profissionais que buscam uma actualização dos seus conhecimentos, a pessoas que querem valorizar-se culturalmente, isto é, a uma série de grupos que não se enquadram no perfil tradicional do estudante.
O país necessita desse apoio do ensino superior para o seu desenvolvimento e equilíbrio social.
Ora, para responder a estas novas missões, parecem estar esgotadas as modalidades tradicionais de organização e de funcionamento.
Pede-se às Universidades que sejam capazes de abandonar uma "pedagogia da torre de marfim" e que adoptem uma "pedagogia do terreno", como escreveu o Prof. João Evangelista Loureiro, vice-reitor desta Universidade, que agraciei em 1996, manifestando assim o meu apreço pelo trabalho aqui realizado.
O futuro das Universidades depende, em larga medida, da capacidade de renovação que demonstrarem, da compreensão de que as suas finalidades só serão cumpridas se adoptarem novos meios e métodos de acção.
Uma terceira reivindicação surgiu no final da década de 60: mais autonomia para as instituições universitárias. Mas acrescentou-se, quase em jeito de profecia: "só a instituições inovadoras a autonomia servirá como instrumento de inovação".
Hoje, possuímos uma experiência de autonomia de grande significado.
E podemos confirmar que ela, por si só, não resolve todos os problemas, contribuindo mesmo, nalguns casos, para agravar erros e defeitos. É tempo, pois, de juntar ao conceito de autonomia uma cultura de avaliação, que dote as instituições, os alunos, as comunidades científicas, o Estado e a sociedade em geral de instrumentos de aferição, de regulação e de controlo das instituições de ensino superior.
A autonomia é um meio, não é um fim. Não deve servir para que as instituições fiquem reféns de interesses particulares. Deve servir, sim, para consolidar um compromisso de todos na dignificação do ensino superior, com base em critérios de exigência científica e de qualidade pedagógica.
A autonomia é indissociável da responsabilidade, da prestação de contas, de um conhecimento mais exacto dos mecanismos de organização e de funcionamento das instituições universitárias. É por isso que se torna essencial desenvolver práticas de avaliação que não sejam meramente "retóricas" ou "corporativas" e que revelem uma nova atitude face à Universidade. A participação, a clareza e a transparência, o rigor e a divulgação pública dos resultados são condições necessárias para que os processos de avaliação contribuam, de facto, para a melhoria científica e pedagógica.
Quando Miller Guerra interveio na Assembleia Nacional, Pinto Machado levantou-se e disse: "O nosso ensino superior não se distingue do nosso ensino liceal.
O método de ensino é o mesmo – repetitivo –, a demonstração de aproveitamento, a mesma – recitativa – e o resultado, igual – atrofia da razão crítica, metamorfose do cérebro em ficheiro... desarrumado".
Seria injusto estender até aos nossos dias uma crítica tão dura para o ensino secundário e para o ensino superior. Houve mudanças muito importantes na pedagogia universitária. Mas seria estultícia ignorar os anacronismos que subsistem em muitas Escolas do nosso país.
Em Viseu, há cerca de um mês, tive a oportunidade de chamar a atenção para os fenómenos de repetência e de abandono na Universidade portuguesa.
Infelizmente, indicadores acabados de publicar pela OCDE confirmam a minha análise. Temos de pôr fim ao desperdício de dinheiro e de energias pessoais que vai pautando a vida de muitas instituições. Torna-se imprescindível estimular formas inovadoras de ensino, designadamente através da utilização das tecnologias de informação e de comunicação e do recurso a práticas de tutoria e de orientação académica dos alunos.
O Superior está colocado perante uma questão de fundo: Como conceber uma formação de elevado nível científico e profissional, que tenha em conta os interesses e a diversidade cultural de um número cada vez maior de estudantes?
Mais do que nunca, precisamos de um ensino superior de grande qualidade, actualizado e exigente, em ligação constante com a produção do saber e do conhecimento. Precisamos de professores dedicados e competentes, de escolas que contribuam para a formação integral dos jovens, no plano científico, cultural e cívico.
Quis partilhar convosco algumas preocupações, que adquirem novos sentidos nos dias de hoje. Este deve ser um tempo de reflexão para a Universidade portuguesa. Necessitamos de estudos que dêem a conhecer a situação concreta do ensino superior, que tracem um diagnóstico das instituições e da sua evolução, que forneçam uma base sólida para a tomada de decisões no plano pessoal, institucional e político.
Temos de estabelecer critérios claros para a organização da rede de escolas públicas e privadas, consolidando dispositivos de regulação das instituições e formas de discussão (interna e externa) dos resultados da avaliação.
O respeito que tenho pelo vosso trabalho levou-me a falar-vos de forma aberta.
Em 1970, Miller Guerra escreveu: "Desagradam-me as vozes conformistas por temor ou sistema; as concordâncias passivas ou atormentadas; os embaraços causados à manifestação dos anseios, das ideias ou dos credos. Agrada-me o debate franco" - mas viu algumas destas frases cortadas pela Censura.
Apetece repetir as suas palavras, tanto mais que hoje temos pelo nosso lado a liberdade de expressão.
E para esta liberdade muito contribuiu a democratização do ensino em Portugal, nomeadamente do ensino universitário. Porque a educação é condição da liberdade, é condição da democracia, é condição do desenvolvimento.
Mas não nos podemos acomodar. Muitos são ainda os motivos de insatisfação.
Como Presidente da República não posso, nem quero, deixar de agradecer o vosso trabalho como instituição nova, que celebra agora as suas "bodas de prata". Sei que o país pode contar convosco para a tarefa de repensar, com coragem e lucidez, a Universidade portuguesa.