Sessão de Encerramento do XI Congresso da Associação Nacional de Municípios Portugueses

Vilamoura
28 de Março de 1998


Tiveram V. Exas., Senhoras e Senhores Autarcas, a amabilidade de, uma vez mais, me convidarem para estar presente no vosso Congresso.
Não escondo que o vosso gesto me sensibiliza. Sabem como é para mim gratificante acompanhar as vossas preocupações e expectativas, conhecer as vossas realizações e o balanço da vossa actividade. Seja-me permitido que, por um momento, afinal relembre a experiência autárquica a que me dediquei durante seis anos e actualizar as novas dimensões que através dela adquiri quanto à visão da vida pública do nosso País.
Este XI Congresso da ANMP decorre das eleições autárquicas de Dezembro de 1997.
Tive já ocasião de referir a forma como os portugueses então souberam valorizar a importância das escolhas democráticas ao nível local.
Quero, hoje, felicitar todos os autarcas eleitos, tanto aqueles que viram os seus mandatos renovados com nova legitimidade, como aqueles que, pela primeira vez, estão agora a iniciar funções nas respectivas autarquias. A todos desejo o melhor sucesso no desempenho dos cargos em que foram investidos.
A Associação Nacional dos Municípios Portugueses elegeu neste Congresso os seus órgãos directivos. Quero saudar de forma especial os autarcas que assumiram também estes cargos de representação e coordenação, num outro plano de responsabilidade onde o seu sentido de serviço ao País é posto à prova. Merecem a nossa homenagem por isso, dando continuidade a um património herdado de trabalho incansável e exigente pela dignificação dos autarcas e da actividade autárquica em Portugal.
Senhoras e Senhores Autarcas,
0 poder local consolidou-se em Portugal na base de um modelo que, na sua estrutura essencial, permaneceu inalterado desde a aprovação da Constituição democrática de 1976. Após mais de 20 anos de exercício do governo autárquico por órgãos democraticamente legitimados, há hoje um consenso muito alargado na sociedade portuguesa quanto às virtualidades do aprofundamento dos princípios constitucionais da autonomia local e da descentralização administrativa.
Um tal consenso, quaisquer que sejam os pontos de partida de cada um, constitui um capital que tem de aproveitar à realização das reformas que, também no domínio do municipalismo, nos são exigidas pelo tempo em que vivemos.
Este tempo é marcado por uma crescente exigência de proximidade dos cidadãos em relação àqueles a quem confiaram, pela eleição, a responsabilidade de resolver os problemas do seu bem-estar e qualidade de vida. É o tempo de uma nova ambição de participação das populações nas decisões que mais directamente as afectam, no quadro democrático.
E, também, por isso mesmo, um tempo em que se reclama aos poderes públicos que se organizem efectivamente, aos diversos níveis, de acordo com o princípio da subsidiariedade, entendido no sentido de que, "o exercício das responsabilidades públicas deve incumbir, de preferência, às autoridades mais próximas dos cidadãos", tendo em conta a natureza das tarefas a desempenhar e as exigências de eficácia e economia, conforme prescreve a Carta Europeia da Autonomia Local.
Assim o souberam interpretar os legisladores constituintes na recente revisão da Lei Fundamental, ao incluírem a subsidiariedade entre os princípios fundamentais pelos quais se deve reger, na sua organização e funcionamento, o Estado unitário que é o nosso.
Minhas Senhoras e meus Senhores,
Portugal tem ainda hoje uma Administração Pública das mais centralizadas da Europa. Serenamente, deve dizer-se que ninguém está isento dessa responsabilidade.
Para dar o clássico exemplo que se conhece: a delimitação de actuações da administração central e local em matéria de investimentos públicos é profundamente desequilibrada em prejuízo das entidades locais.
Estas continuam a debater-se com insuficiência de meios financeiros para assegurar a prossecução das atribuições e competências que lhes estão actualmente cometidas. Sobretudo nos grandes centros urbanos, as autarquias portuguesas não dispõem dos instrumentos adequados à actuação que lhes é exigida em novos domínios, como o da exclusão social, da droga e da segurança, entre outros. As perspectivas anunciadas neste Congresso pelo Governo abrem para uma nova e necessária fase nesta matéria.
A sobreposição de competências entre os diferentes níveis da administração pública, a par de uma legislação anacrónica em muitos aspectos, são fonte da multiplicação de burocracias que tanto dificultam a vida aos cidadãos e aos agentes económicos, desmobilizam vontades e geram disfunções naquilo que, todos concordarão, deveria ser um sistema transparente de responsabilização democrática dos eleitos pelos seus actos de gestão.
Este diagnóstico não é novo. Baseio-o num conhecimento directo dos problemas que afectam a administração local em Portugal.
Como Presidente da República, é bem sabido, não me compete propor o conteúdo das mudanças nem tomar partido nos debates em curso noutras sedes institucionais.
Mas certamente que me cabe, fiel aos compromissos que assumi, apontar os caminhos que julgo necessários ao reforço da coesão nacional e da solidariedade entre as regiões do País, no quadro estrito dos princípios consagrados na Constituição da República. Entendo que é meu dever auscultar as opiniões em confronto, assegurar o livre curso do debate democrático e, quando necessário, procurar contribuir para facilitar os consensos úteis à concretização de reformas que melhor sirvam os portugueses.
No que respeita directamente aos municípios, creio que o momento é de mudança, justificando-se uma palavra de optimismo quanto às perspectivas de superação, num futuro próximo, de alguns dos constrangimentos estruturais que afectam o poder local.
Minhas Senhoras e meus Senhores,
Este vosso Congresso realiza-se num momento em que se encontra em debate na Assembleia da República, com o contributo activo de todos os quadrantes partidários e do Governo, um conjunto de iniciativas legislativas da maior relevância. para a administração local.
Destaco as questões da transferência de novas atribuições e competências para as autarquias locais, da reforma das finanças locais e da lei de bases do ordenamento do território, para além de outras matérias.
Acompanho com o maior interesse e atenção esses debates. Verifico que, apesar das vicissitudes do percurso passado, existe a vontade política necessária para que essas reformas se concretizem a curto prazo, na base de consensos desejavelmente alargados.
0 sentido das mudanças preconizadas - que, nas suas linhas essenciais, acompanha muitas das preocupações justamente manifestadas ao longo dos últimos anos pela Associação Nacional dos Municípios -permitirá ao País dispor de uma administração local melhor preparada, na entrada do novo milénio, para a prossecução dos interesses das populações que representam; isto é, uma administração local modernizada no ãmbito dos seus poderes e da sua autonomia administrativa e financeira.
Haverá, por outro lado, um novo quadro para a implementação das políticas de ordenamento do território, na base de um sistema coerente de instrumentos de planeamento, de iniciativa central, regional e local. Neste domínio, o desafio que se nos coloca é agora o da qualificação do desenvolvimento, defendendo o património natural e edificado, promovendo o ambiente urbano e salvaguardando as condições de vivência face aos fenómenos demográficos e ao aumento da pressão construtiva em diversas regiões do nosso Pais.
Julgo no entanto oportuno apresentar aqui, no vosso Congresso, três reflexões e outras tantas preocupações.
Quanto à primeira: encontra-se igualmente em apreciação em sede parlamentar um conjunto de iniciativas tendentes à criação de novos municípios, na sequência da eliminação do impedimento legal que até há pouco vigorou.
0 tema, que não é novo, suscita aqui e ali acesas controvérsias e algumas abordagens mais apaixonadas, naturais sempre que se pretende mexer com a divisão administrativa do território e, consequentemente, com a identidade fisica das comunidades locais.
Nesta matéria, como se costuma dizer, "cada caso é um caso», com as suas especificidades, raízes históricas e aspirações próprias, fundadas ou não. Os órgãos competentes não deixarão, naturalmente, de apreciar criteriosamente cada uma das pretensões agora manifestadas à luz dos critérios objectivos fixados na lei em vigor.
As dinâmicas económicas e demográficas alteraram substancialmente o Pais nas últimas décadas. É compreensível que se mobilizem as expectativas de autonomia, sobretudo onde se alteraram as realidades urbanas, que hoje comandam a estruturação do território.
Sou sensível à manifestação dos legítimos anseios locais mas julgo, contudo, que haveria vantagem, também aqui, em procurar garantir as condições para um debate desapaixonado do processo agora aberto, que não prescinda de uma ponderação global das implicações do tema.
Temo que a questão geográfica ande à frente da questão institucional, e que em vez de aperfeiçoarmos o sistema de atribuições e competências de municípios e freguesias, cedamos a um impulso de atomização do sistema municipal.
Haverá que evitar os riscos de degradação da sustentabilidade dos municípios portugueses, a que uma excessiva fragmentação da sua dimensão territorial poderá conduzir.
A densidade demográfica média dos nossos municípios é reduzida, quando comparada com a de outros países europeus, mesmo daqueles que já dispõe de níveis intermédios de administração, dotados de poderes significativos, à escala regional.
Creio serem estas preocupações elementares a ter em conta, que desaconselham um tratamento casuística da questão.
Queria referir-me, em segundo lugar, à necessidade de aprofundar as modalidades de articulação entre os municípios, bem como entre as freguesias, com vista a uma mais adequada rentabilização dos recursos disponíveis e até a uma mais eficaz e harmoniosa intervenção no território.
Tem a Associação dos Municípios Portugueses reconhecido a necessidade de uma escala supramunicipal e pugnado por um novo cenário de descentralização administrativa.
Gostaria também de vos propor um balanço e uma reflexão prospectiva das expenencias das associações intermunicipais e das áreas metropolitanas.
Creio que todas as expenencias de coordenação, de economia de escala, todos os contributos para limitar alguns dos egoísmos que por vezes nos assaltam, todas as medidas que obstem à sobreposição de competências deverão ser prosseguidas e ampliadas. Do mesmo modo, tarda a aprovação de uma lei quadro com vista à criação de associações de freguesias.
Há que pensar igualmente em novos modelos de governo local, de articulação de políticas e de recursos para os municípios mais populosos e interdependentes, como os municípios metropolitanos.
Acredito que a melhoria de relacionamento entre as autarquias beneficiaria a articulação de políticas sectoriais e regionais, mas pergunto: disporão os municípios em condições de aprofundar modelos institucionais de natureza intermunicipal que assegurem sistemas eficazes de saneamento, transporte, protecção ambiental, educação, cultura, solidariedade social ou emprego, em áreas de maior densidade urbana?
A perspectiva de novas transferências de competências e de meios correspondentes para os municípios certamente sublinha a actualidade deste preocupação. Existe um largo consenso político favorável a uma crescente participação das autarquias na despesa pública. Esse incremento terá de ser acompanhado igualmente de inovações no modelo de organização das autarquias que permita maior rapidez de decisão. Implicará também que os municípios apostem ainda mais na qualidade dos serviços e da gestão dos equipamentos e no desenvolvimento de políticas de promoção económica e social das populações.
Nesse sentido, há que questionar igualmente - e creio que neste ponto o contributo da Associação Nacional de Municípios é essencial - o modelo uniforme de governo municipal. A presente igualdade teórica de responsabilidades, consagrada na lei em termos rígidos, esconde profundas desigualdades na prática.
Sei que o poder local está pronto a aceitar novas responsabilidades e projectar novos contributos para o desenvolvimento, numa perspectiva integrada.
Nos grandes desafios com que nos defrontamos a este nível -humanizar o território e a cidade, qualificar o espaço, os equipamentos e o meio ambiente - as autarquias detêm um capital de experiência que não pode deixar de ser valorizado.
É tempo, por isso, de apostar cada vez mais em novas fórmulas de actuação que potenciem a promoção do tecido económico e social das diversas regiões do Pais, a fixação e formação das respectivas populações e a projecção das suas identidades-culturais, no quadro nacional.
Finalmente, uma terceira ordem de considerações, que tem em conta o facto de Portugal entrar, no limiar do novo milénio, numa nova e mais exigente etapa da sua integração europeia, com a concretização da última fase da união económica e monetária, e a redefinição das políticas de coesão e de desenvolvimento regional no quadro da Europa.
A generalidade dos nossos parceiros europeus alcançou o seu desenvolvimento, com níveis elevados de bem-estar e qualidade de vida das suas populações, com base em modelos de organização administrativa que, assentando numa descentralização de poderes para as entidades locais, pressupõem, como referi, uma participação das autarquias na realização de investimentos públicos em níveis muito superiores aos nossos.
É bem tempo, pois, de Portugal caminhar nesse sentido. Devemos fazê-lo, como disse, preservando uma administração central do Estado forte e sobretudo mais eficaz nas suas tarefas indelegáveis. E é essencial que sejam assegurados sempre os mecanismos necessários para que a evolução se faça em beneficio da coesão nacional e da correcção das assimetrias regionais, e nunca o seu contrário.
A par do reforço da descentralização e da modernização da administração local, afigura-se da maior importãncia que seja reequacionada a organização dos serviços periféricos do Estado. Temos ai, permita-se-me que o diga, um largo campo de irracionalidade e ineficiência administrativa, que foi sendo acumulado ao longo dos anos por razões históricas as mais diversas. Importa corrigir esse estado de coisas, de forma naturalmente ponderada e adequada a evitar rupturas na máquina da Administração Pública portuguesa.
Senhoras e Senhores autarcas,
0 sistema autãrquico local tem ainda um caminho exigente a percorrer. Exigente em coerência e em rigor, isto é, em articulação de novas competências e recursos e em qualidade de organização e gestão.
Em larga medida este caminho depende dos instrumentos legislativos e financeiros que forem criados e postos à disposição das autarquias. Mas também depende do empenhamento, da capacidade, da ousadia, do espírito de diálogo dos autarcas.
Estou convencido de que temos hoje no horizonte uma nova etapa da história do municipalismo.
Adquiridos que estão os contributos das autarquias para a consolidação da democracia e para a melhoria das condições de vida das populações, os municípios serão chamados a colaborar numa reforma do Estado que o torne mais apto a responder aos desafios do desenvolvimento de Portugal no contexto europeu.
Se essa reforma, contra o imobilismo, não pode ser feita sem a decisão e o acompanhamento dos órgãos de soberania, é também certo que não pode prescindir do impulso vindo de baixo, do movimento animado pelos municípios portugueses.
Para isso os portugueses confiaram e confiam em V. Exas..