Sessão Comemorativa do V Centenário do Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia

Assembleia da República
15 de Junho de 1998


Saúdo a Assembleia da República por ter decidido assinalar, nesta sessão, os quinhentos anos da chegada por mar dos portugueses à Índia, acontecimento de consequências e projecção universal, que fundou a Idade Moderna, como é reconhecido.
A melhor forma de comemorar um grande acontecimento histórico é torná-lo mais conhecido em todas as suas implicações. É fazê-lo mais presente pelo interesse científico que suscita, pela reflexão a que induz, pelos ensinamentos que contém, pelas novas investigações que provoca.
À luz desta concepção, comemorar o passado não nos torna passadistas nem essa comemoração é feita em conflito com as responsabilidades do presente. Pelo contrário, esclarece-nos sobre o que fomos e que somos, ajuda-nos a compreender melhor a actualidade e a preparar o futuro. Estudando o passado com espírito crítico, vemos também o que foi o futuro desse passado, avaliando os efeitos dos acontecimentos e dos actos.
A Descoberta do Caminho Marítimo para a Índia é um daqueles acontecimentos tão grandiosos e tão complexos que foi sendo interpretado com sentidos diversos. Acresce ainda que se tornou um mito e um símbolo. Faz parte do inconsciente colectivo, mexe com sentimentos e preconceitos. A história desta viagem é também a história da sua história, da sua mitologia, das suas representações culturais, da sua recepção.
Sabemos que são, naturalmente, diferentes os modos como ela foi e é vista da Europa e da Ásia. Olhá-la agora como ela foi tida em 1498 seria tão anacrónico como querer que ela, no século XV, fosse entendida como a entendemos em 1998. As leituras que a viagem teve variaram consoante as épocas, as ideologias, as filosofias da história, os valores culturais e políticos.
O Portugal livre e democrático que somos assume a sua identidade e a sua história de acordo com os valores que são os seus. Comemoramos esta viagem com espírito ecuménico e de diálogo, celebrando o encontro de culturas e de civilizações que ela representou.
Nesse sentido é justo pôr em destaque o trabalho que a Comissão para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses tem produzido. As recentes exposições que inaugurei, em Lisboa e no Porto, em resultado de uma investigação e de uma dedicação notáveis, colocam os descobrimentos em geral e a viagem do Gama em especial sob nova luz.
Estou certo que a percepção que hoje temos dos homens e das circunstâncias de há cinco séculos se enriquece com os novos elementos e perspectivas que a Comissão tem posto à disposição da comunidade. Com esse enriquecimento é a cultura portuguesa que se revigora. Esta palavra de apreço e de incentivo é-lhe devida, Senhor Comissário-Geral, Prof. António Hespanha.
Tive ocasião de dizer, recentemente, que, sendo Portugal um país democrático e moderno, o seu Estado não tem - nem quer ter - uma historiografia oficial ou uma visão homologada do passado. Quem escreve a história são os historiadores e ela faz-se de leituras plurais e, às vezes, divergentes, que se sucedem ou coexistem, se corrigem ou complementam. Mas isso não significa que, como comunidade nacional, não tenhamos identidade, memória, símbolos, referências colectivas. A viagem de Vasco da Gama é uma delas - e das maiores.
A Descoberta do Caminho Marítimo para a Índia levou a Europa ao Mundo e trouxe o Mundo à Europa. Com ela, Portugal tornou-se universal e deu ao continente europeu essa dimensão, fundando a Idade Moderna.
Essa prodigiosa viagem, de que nos orgulhamos, contém indicações para o nosso tempo que, em breves seis tópicos, gostaria de resumir:
- Em primeiro lugar, a empresa cumpriu-se com êxito, não devido a qualquer golpe de sorte imediatista, voluntarismo ocasional ou predestinação. Foi fruto de um esforço colectivo duradouro, de décadas de navegações contínuas e constituiu uma empresa persistente e organizada que se foi realizando com preparação, estudo, método, meios com audácia, inteligência e ambição.
- Em segundo lugar, representou um projecto nacional coeso e mobilizador, que contou com a participação plural e empenhada de portugueses de várias origens, condições sociais e religiões. Por isso mesmo, Luís de Camões deu aos Lusíadas, não um herói individual, como era dos cânones clássicos, mas um herói colectivo: o Povo Português.
- Em terceiro lugar, esta viagem marca o triunfo do espírito experimental, prático e de observação, representando um contributo pioneiro de maior importância para o desenvolvimento da ciência moderna e para a criação de novos saberes.
- Em quarto lugar, a viagem constituiu um acontecimento capital de comunicação de culturas, povos e civilizações. Foi um projecto de abertura, de curiosidade pelo desconhecido. Os portugueses foram encontrar um outro Mundo, com as suas culturas antigas, sofisticadas e riquíssimas. Nesse sentido, constituiu uma antecipação da era de globalização em que vivemos, como, aliás, tem sido amplamente referido.
- Em quinto lugar, importa acentuar que esta viagem modificou-nos e marcou-nos para sempre. Mudou a imagem de nós próprios e teve consequências fundamentais para o nosso futuro como Nação e como Povo, para a identidade portuguesa. A nossa cultura, a nossa literatura, a nossa língua nunca mais foram as mesmas. Tal foi sintetizado, no nosso tempo, por Vergílio Ferreira, quando disse: “Da minha língua vê-se o mar”.
- Em sexto lugar, devemos dizer que, como acontece com todas as aventuras humanas, esta teve luzes e sombras. De entre estas, não foi das menores, para nós, esse efeito perverso que teve de nos criar ilusões e fazer descansar, de nos desresponsabilizar, pensando que tudo vinha da Índia e que isso substituía o trabalho que não fazíamos. O próprio Camões fez eco desse mal em “Os Lusíadas” e Fernando Pessoa expressa a persistência dessa atitude mental nos versos “Pertenço a um género de portugueses/Que depois de estar a Índia descoberta/Ficaram sem trabalho”.
Estas comemorações contêm, pois, uma lição, que tem actualidade para o nosso tempo. Devemos meditá-la, sobretudo as gerações mais jovens, e fazer dessa meditação um meio de melhor nos conhecermos para melhor agirmos.
A chegada dos portugueses a Calecut, nesse dia do fim de Maio de 1498, abriu novos horizontes ao Mundo. Queremos, com orgulho, renovar a mensagem do universalismo português. Na história portuguesa cruzam-se povos, culturas, mares, viagens, influências, civilizações. Essa é a sua marca mais original. Neste momento e neste lugar, reafirmo a amizade secular entre Portugal e a Índia e o nosso apreço pela sua extraordinária cultura que, desde o encontro memorável que tivemos, nos marcou para sempre. Estas comemorações realizam-se neste espírito de abertura e a mensagem ecuménica que encerram sobrepõe-se a qualquer reflexo nacionalista deslocado.
Dentro de dois anos os 5 séculos que celebraremos serão os da viagem para o Brasil. Também estas comemorações nos deverão merecer um grande empenho e uma grande dedicação. Por outro lado, há especificidades a que importa dar o devido destaque.
Em primeiro lugar, de ambos os lados converge o interesse pela evocação da data, que é reconhecida pelas duas culturas, brasileira e portuguesa, como uma data fundadora. Em segundo lugar, porque há uma disponibilidade manifesta por parte, quer do poder político, quer do mundo intelectual, para fazer da celebração do 5º centenário da viagem de Cabral um ponto de viragem nas relações entre os dois países.
Não podemos desperdiçar tal ocasião, naquilo que pode representar de excepcional capacidade de mobilização, e de apelo singular ao reconhecimento mútuo de duas culturas com uma língua comum.
Para não perdemos a oportunidade, também não podemos perder tempo.
O próximo século terá de ser o tempo da comunicação e do diálogo entre países, continentes, civilizações, povos e religiões. Esta é uma condição da paz e do progresso, ao serviço de todos os seres humanos. Sem etnocentrismos, a Europa a que pertencemos e da qual fomos a vanguarda nesta aventura, terá de prestar um contributo essencial à globalização, que não pode ser apenas da economia, e terá de ser também da solidariedade, da tolerância, da liberdade, da justiça, do respeito pela diversidade cultural, da defesa do planeta, da preservação terra e dos mares
A Exposição Mundial de Lisboa é o símbolo dessa consciência, que tanto nos responsabiliza, da universalidade do ser humano, que encontrou na viagem de Vasco da Gama, há quinhentos anos, uma das suas grandes afirmações.