Sessão Comemorativa Dia Nacional da Segurança Social

Lisboa
08 de Maio de 1998


Foi com muito gosto que aceitei o convite para presidir a esta sessão comemorativa do Dia Nacional da Segurança Social.
Para além do prazer de me encontrar com os principais responsáveis pela definição e aplicação das políticas de protecção e segurança social - o que já seria, em si mesmo, gratificante -, o meu gosto em aqui estar radica numa outra razão, tão ou mesmo mais importante.
Tenho dito repetidas vezes ao longo da minha vida política, e em particular desde o início do meu mandato como Presidente da República, que atribuo a maior importância à questão social, que considero um dos problemas políticos mais importantes dos nossos dias.
Quero, na presença de pessoas que têm a noção clara de que o seu labor se prende directamente com a concepção, a aplicação e a avaliação dos instrumentos da igualdade de oportunidades e da solidariedade social, explicitar os motivos porque assim penso.
Abordarei, brevemente embora, duas questões: primeiro, o modo como entendo a questão social; depois, os motivos porque julgo que a situação social portuguesa tem características particulares que nos obrigam a encontrar, no plano nacional como no plano europeu, soluções adequadas para podermos almejar o êxito na resolução dos problemas.
Permitam-me quanto à primeira questão, que explicite o meu entendimento: a questão social é o nome que atribuímos ao problema da universalidade da cidadania nas sociedades democráticas desenvolvidas.
Dir-me-ão, com razão, que há muito que assim é e que a Europa é precisamente um espaço em que, desde o pós-guerra, tal foi mais nítido.
Creio, porém, que é hoje necessário reafirmar que o exercício de direitos sociais não é um luxo que deva ser guardado para épocas de desafogo económico.
Durante décadas, nas democracias europeias e num contexto de pleno emprego masculino, a absorção relativamente fácil do trabalho pouco qualificado pela indústria, tornou a repartição entre a remuneração do investimento e do trabalho assalariado o principal ponto da conflitualidade laboral e levou a que a protecção social visasse, sobretudo, garantir os rendimentos das famílias quando o trabalho dos homens adultos não lograva esse objectivo.
Embora estejamos ainda demasiado habituados a pensar a questão social em geral e os problemas da segurança social nesses mesmos termos, os especialistas mostraram que ambas as questões têm de ser colocados de modo diferente.
Primeiro, porque a globalização dos mercados financeiros e o desenvolvimento da indústria em países antes subdesenvolvidos, retirou às sociedades europeias muita da capacidade que estas tinham para criar e manter empregos estáveis e crescentemente bem remunerados de baixa qualificação.
Em segundo lugar, porque, face à crise do emprego e ao crescimento do desemprego de longa duração, alguns estudiosos e líderes de opinião sustentaram a tese de que as sociedades europeias desenvolvidas não teriam, quer por razões de competitividade empresarial, quer por razões fiscais, outra alternativa senão aceitar a redução dos níveis de protecção social e a desregulamentação dos mercados de trabalho.
O rigor e o respeito pelos factos obrigam-nos reconhecer que Portugal tem, como as outras sociedades europeias, um problema de emprego, que se traduz no desemprego de longa duração, no aumento do emprego precário e na vulnerabilidade de muitos empregos existentes.
Está, pois, posta em causa a lógica do pacto social tradicional.
Mas não creio que a desregulamentação e a redução da protecção social constituam as fronteiras de um caminho sem alternativas que haveria que prosseguir para garantir às empresas e à maioria dos trabalhadores a justa paga pelo seu esforço.
Na verdade há mais a fazer e é indispensável que o façamos.
Em meu entender, o verdadeiro desafio e a nossa responsabilidade colectiva estão, pelo contrário, em metermos ombros à tarefa de reconstruir, a partir dos problemas concretos, os instrumentos da solidariedade social.
Perante o desajustamento ou a insustentabilidade das soluções tradicionais, estamos confrontados com o dever de repensar e de pôr a funcionar novos modos de regular os mercados de trabalho e de garantir o exercício dos direitos sociais.
Não o fazer, seria condenar ao desemprego, à pobreza e à marginalização social uma parte dos nossos concidadãos.
Seria fertilizar o terreno do populismo e convidar à desmotivação política os cidadãos que a sociedade declara iguais perante a lei mas a quem a democracia não assegura os meios de que carecem para enfrentarem com êxito a desigualdade social de oportunidades induzida pelo mercado.
No meu entender, a reinvenção dum modelo social adaptado aos problemas dos nossos dias não é apenas – e já não seria pouco! – um problema económico e social fundamental.
É, em sentido estrito, um problema político, de cuja solução, depende a garantia e o desenvolvimento da cidadania.
Por isso, me venho batendo para que lhe seja reconhecido o lugar que lhe pertence: o de questão essencial da agenda política, que envolve todos os que têm a responsabilidade de representar interesses e, por maioria de razão, todos aqueles a quem o voto atribuiu a legitimidade de decidir em nome do interesse comum e do bem público.
É nestes termos que abordarei a segunda questão, isto é, a dos problemas especiais que se põem neste domínio em Portugal.
Há quase um quarto de século, Portugal optou por uma república democrática, fechou o ciclo do império e ligou o seu futuro ao da Europa.
Ao fazê-lo, escolheu um caminho exigente que obrigou os dirigentes políticos a opções difíceis, que impôs sacrifícios mas deu novas oportunidades aos cidadãos em geral, e aos empresários e trabalhadores em particular.
A existência, evidentemente legítima, de expressivos movimentos de opinião críticos de algumas opções não impediu que se verificasse um alto grau de consenso social e político ao longo deste caminho de mudança política, social e económica que vimos percorrendo.
A presença de Portugal entre os fundadores da moeda única europeia, mostra que o nosso País é capaz de enfrentar os desafios da modernização económica e social.
Importa, pois, que o orgulho pelos sucessos alcançados nos motive a enfrentar, com igual resolução, os problemas com que a nova fase da construção do nosso futuro colectivo nos confronta na União Europeia.
Trata-se de uma tarefa exigente, que ninguém realizará por nós: a de criar condições favoráveis para que Portugal possa trilhar, numa Europa monetariamente unificada e em vias de alargamento, os caminhos da convergência real das economias e das sociedades europeias.
Devo, por isso, usar de total franqueza: não creio que seja possível levar a bom porto tal tarefa sem custos sociais insuportáveis sem que se melhore a capacidade nacional de responder, de forma inovadora, aos desafios sociais com que a sociedade portuguesa se confronta.
A meu ver, Portugal não pode ignorar que tem um dos mais baixos níveis de protecção social da Europa, que é um País com altos níveis de pobreza, com altos graus de incumprimento da lei vigente em domínios tão relevantes como a fiscalidade, a segurança social e a legislação laboral.
É certamente verdade que o País disporá de tanto mais recursos e poderá fazer tanto melhor uso deles quanto mais rigorosa e socialmente equitativa for a aplicação da lei. Por isso me congratulo com os progressos já realizados.
Mas, se devemos prosseguir nessa via, não creio que possamos enfrentar os desafios da coesão social em Portugal se concebermos a questão social como um simples problema de cumprimento da lei ou de mero atraso em relação aos padrões médios europeus.
A meu ver, precisamos de identificar bem os nossos problemas específicos, precisamos de tornar compreensíveis essa singularidade e precisamos de encontrar para eles, no plano nacional como no plano europeu, respostas adequadas.
Sei bem que a tarefa é imensa e que ela põe em causa hábitos, privilégios e interesses, que ela motivará divergências, talvez conflitos.
Mas estou igualmente certo que o progresso económico sustentado e a solidariedade social exigem de todos nós, quaisquer que sejam as responsabilidades que cabem a cada um, que enfrentemos o desafio de debater e de decidir sobre as alternativas que permitam a construção de mais e melhores pontes entre a baixa e a alta qualificação, entre o desemprego, a precariedade e o emprego protegido, entre a pobreza e a independência económica.
Portugal precisa de continuar a melhorar as possibilidades de acesso dos jovens à educação, à formação profissional e ao emprego. Mas precisamos também, talvez ainda mais, de fazer tudo o que o conhecimento científico e os recursos humanos e financeiros nos permitirem para oferecer aos adultos de baixa qualificação novas oportunidades para manterem ou voltarem a ter um emprego socialmente útil que lhes assegure, tanto quanto possível, a independência económica.
E precisamos, seguramente, de garantir que as dificuldades de percurso que alguns grupos de cidadãos enfrentam não se prolongam no tempo ou, pior ainda, se transmitem aos seus descendentes.
A meu ver, estamos, como afirmei recentemente perante a Assembleia da República, diante da necessidade de debater e de estabelecer um compromisso em que o Estado e as instituições se vinculam no que chamei um "contrato de gerações".
Refiro-me a um compromisso, certamente baseado no conhecimento e na avaliação dos estudos disponíveis, mas, sobretudo, assente no debate, até público, das decisões políticas já tomadas e das alternativas políticas que venham a estar disponíveis, dos respectivos objectivos e dos meios que pressupõem.
Dispomos hoje, em virtude dos estudos realizados e da experiência acumulada na aplicação de políticas sociais inovadoras, que saúdo, de melhores condições para metermos ombros à tarefa de decidir sobre as prioridades, os métodos e os recursos necessários para conjugar melhor o desenvolvimento económico com a qualidade das condições de trabalho e de protecção social.
Uma democracia de cidadãos não pode ignorar os seus deveres perante aqueles a quem o passado negou as oportunidades de acederem à qualificação de que eles e o País carecem. Nem pode sacrificar o futuro das gerações vindouras com o fardo das responsabilidades que as gerações no poder não assumiram.
Uma democracia de cidadãos não pode ignorar que, no domínio da segurança social, há certamente decisões com impacto imediato mas há, também, decisões que envolvem compromissos se que prolongam para além dos ciclos eleitorais e, por isso, recomendam especiais cuidados.
Uma democracia de cidadãos exige, também, que saibamos definir novas fronteiras entre o espaço público e o espaço privado, entre a legitimidade eleitoral e o reforço da participação das organizações de interesses na preparação e na execução das políticas públicas.
Uma democracia de cidadãos exige, por último, o desenvolvimento de uma cultura da responsabilidade social assente na responsabilidade individual e colectiva perante o futuro comum.
Portugal tem que conseguir congregar inteligências, saberes, vontades e meios para desenvolver a cultura da responsabilidade social, para alargar as vias do desenvolvimento social solidário.
Porque há no nosso País pessoas cujo exemplo de dedicação ao bem comum merece o apreço de todos, decidi distinguir, de entre os cidadãos a quem Portugal deve um reconhecimento público, algumas personalidades que agraciarei a seguir.