Sessão de Abertura do Colóquio "O Interesse Nacional e a Globalização"

Lisboa
29 de Outubro de 1998


Quero começar por agradecer o amável convite que me foi dirigido para participar neste colóquio sobre o Interesse Nacional e a Globalização, um tema cuja oportunidade me parece evidente e em torno do qual o Instituto da Defesa Nacional soube organizar um programa coerente e reunir um conjunto plural de personalidades da mais alta qualidade, como, de resto, é seu timbre. Está, pois, de parabéns, o Instituto da Defesa Nacional.
Como podem imaginar, não posso, nem devo tentar tratar uma problemática tão densa e polémica como as tendências de globalização e os seus efeitos para a posição internacional e para os interesses nacionais de Portugal.
Pela minha parte, gostaria tão só de partilhar convosco problemas que reputo relevantes na definição das prioridades nacionais, a propósito dos imperativos externos e das condições internas de cuja articulação depende uma avaliação realista das nossas possibilidades de acção numa sociedade internacional em crise desde o fim da guerra fria.
Creio ser legítimo entender o conceito de globalização de uma forma aberta, sem excessivas preocupações de rigor. Nessa perspectiva, essa tendência das relações internacionais corresponde a um conjunto de processos políticos, económicos, societários e culturais, cujo sentido geral se traduz numa redução acelerada das distâncias que separam os indivíduos, os agentes sociais, os Estados e os grandes espaços regionais, criando novas formas de interacção estratégica, de interdependência económica e de interpenetração social e cultural.
Nesse sentido, trata-se de um fenómeno complexo e pluridimensional, onde se podem incluir quer uma crescente transnacionalização dos capitais, das trocas económicas, da informação e da tecnologia, quer as transformações na divisão internacional do trabalho, quer a emergência de uma comunidade cosmo política de defesa dos direitos, de valores e de "bens comuns" universais, quer o desenvolvimento das instituições de regulação internacionais, dentro de uma dinâmica de difusão, de desconcentração e de descentralização do poder nas relações internacionais.
A controvérsia sobre as virtudes e os vícios da globalização é bem conhecida. Naturalmente, os seus efeitos podem representar benefícios para uns e malefícios para outros, embora nem sempre os mesmos. Os
movimentos de capitais, tantas vezes erráticos e súbitos, acentuam as percepções de vulnerabilidade nas economias mais expostas e os sentimentos de impotência dos Estados nacionais para se defender, sem por isso se deixar de reconhecer a importância da liberdade de circulação dos fluxos financeiros para o desenvolvimento.
As dificuldades de acesso à tecnologia contribuem para acentuar atrasos acumulados, embora as mudanças na localização das estruturas produtivas incluam numerosas oportunidades de progresso mesmo para as economias mais periféricas. Os movimentos ecológicos são um perturbador irritante para Estados permissivos e para indústrias antiquadas, se bem que a sua acção contribua para a inovação tecnológica e para a modernização económica. Os regimes despóticos detestam ser postos em causa pelas organizações internacionais de defesa dos direitos humanos, mas a pressão destas pode representar uma forma importante de acelerar os processos de abertura e reforma de estruturas políticas arcaicas e corruptas.
Mais importante, na minha opinião, é a previsão que surge, frequentemente, associada a teorias da globalização, sobre o declínio irreversível dos Estados nacionais, submetidos à dupla pressão de movimentos supra nacionais e infra nacionais, os quais tendem a fortalecer-se reciprocamente.
Por certo, a emergência e a institucionalização de uma pluralidade de pólos de poder internacionais e regionais, impõem limites à autonomia e ao predomínio dos Estados na política internacional. Todavia, não creio que as tendências de difusão e descentralização implícitas, nomeadamente, nos processos de globalização possam ou devam põr em causa a centralidade dos Estados nacionais no ordenamento internacional. Não o podem fazer, na medida em que não têm consistência como modelo alternativo de estruturação dos equilíbrios internacionais. E não o devem fazer, pois não preenchem as funções essenciais dos Estados como o modo electivo de organização dos projectos nacionais, nem como um quadro único de legitimação das instituições representativas das comunidades políticas, nem como o lugar próprio de realização do primado do direito e de defesa dos direitos, liberdades e garantias, que caracterizam as modernas sociedades civilizadas.
Nesses vários sentidos, parece-me pertinente e actual a questão posta sobre a globalização e o interesse nacional. Sem a consolidação dos Estados nacionais, as tendências de criação dos espaços regionais e de internacionalização representam riscos de instabilidade nas relações internacionais. Por outro lado, essa consolidação implica uma capacidade acrescida de definição rigorosa das prioridades nacionais, que a incerteza e a opacidade típicas da crise internacional tomam cada vez mais difícil. Além disso, os fenómenos da globalização alteram os próprios conceitos de tempo e de espaço, que são o ponto de partida natural para a formulação do interesse nacional.
Creio ser útil, neste contexto, colocar três problemas distintos.
Em primeiro lugar, gostaria de me referir aos processos de decisão internos, que são cruciais, quer para traduzir os consensos políticos sobre as prioridades nacionais, quer para garantir uma flexibilidade indispensável na sua realização, tendo em conta o ritmo de aceleração das mudanças externas.
Todos reconhecem que os mecanismos de formação da decisão na política portuguesa são por vezes excessivamente complexos, morosos e fechados e, nessas circunstâncias, resistem mal à inércia imposta pelas burocracias e são potencialmente vulneráveis à acção de grupos de pressão. A apropriação corporativa dos processos de decisão estratégica prejudica a sua racionalidade. A necessária contratualização com os agentes econõmicos e sociais para a realização das principais políticas, que devem sempre ser legitimadas pelas instituições representativas, torna mais complexa a formação da decisão.
Estes constrangimentos tendem, como se sabe, a coarctar o espírito de inovação e a reprimir a originalidade, o que se traduz, normalmente, numa perda de capacidade para reconhecer, em tempo, novas situações, novos riscos e novas oportunidades.
Do mesmo modo, aqueles constrangimentos, podem condicionar, tanto a forma como deve ser formulada a definição das prioridades nacionais numa sociedade democrática e pluralista, como a capacidade de adaptação do Estado e das estratégias nacionais às circunstãncias da crise internacional e aos efeitos da globalização.
Este é um problema que deve merecer a maior atenção por parte de todos os responsáveis e, desde logo, dos responsáveis políticos.
Em segundo lugar, quero sublinhar a importãncia decisiva das políticas externas, de segurança e defesa para uma resposta articulada às novas condições internacionais, na medida em que se pode constatar uma constante desvalorização dessas políticas, nomeadamente na opinião pública.
A centralidade das políticas externas e de defesa em nada diminuiu no post-guerra fria. Por um lado, na ausência da estabilidade imposta, no passado, pela rivalidade bipolar, as relações entre os Estados, incluindo as relações entre Portugal e os seus principais aliados e parceiros no quadro da União Europeia, da Aliança Atlântica ou da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, tendem a tornar-se cada vez mais fluídas e mesmo vulneráveis a numerosas contingências, difíceis de antecipar. Essa situação exige, obviamente, um trabalho diplomático permanente, decisivo para a defesa dos nossos interesses na política internacional, que está longe de dispor de todos os meios necessários.
Por outro lado, se bem que o fim do afrontamento bipolar tenha criado um quadro de segurança excepcional para Portugal e o conjunto das democracias europeias, não é menos certo que o fim da guerra fria significou o regresso de guerras locais na Europa, uma multiplicação de conflitos em áreas relevantes para os interesses portugueses e, paralelamente, tornou mais exigente a nossa participação plena na comunidade de defesa europeia e transatlântica.
Ninguém duvida da importãncia do desempenho exemplar das Forças Armadas portuguesas nas missões internacionais na Bósnia-Hercegovina, em Moçambique ou em Angola, ou da sua intervenção humanitária na Guiné-Bissau, que se revelaram cruciais para a projecção internacional de Portugal. Porém, a experiência dessas missões e as qualidades demonstradas pelos militares portugueses também servem para constatar e reforçar a urgência de reformas profundas na instituição militar.
0 grande desafio, neste domínio, é dar concretização ao conceito já definido ao nível político, de umas Forças Armadas progressivamente mais profissionalizadas, de dimensão adequada às nossas possibilidades, mas modernas e adaptadas às funções que, cada vez mais, as forças armadas de países democráticos e internacionalmente activos, como o nosso, têm que desempenhar no quadro internacional.
Apesar dos esforços já desenvolvidos nesse sentido, é indispensável melhorar conceitos estratégicos e actualizar doutrinas, por forma a que sirvam, de facto, como orientação e fundamentação objectiva para o dimensionamento e reequipamento da nossa componente militar. Como é igualmente óbvia a necessidade de aprofundar as acções de reorganização e redimensionamento das Forças Armadas, cuja modernização, em todos os domínios, é indispensável para assegurar uma efectiva capacidade para cumprir as suas missões nacionais e internacionais.
A modernização das Forças Armadas contribui decisivamente para a projecção internacional de Portugal. Não redimensionar nem reequipar prejudica a possibilidade de se poder contar com esse contributo e o País não pode, em circunstância alguma, prescindir dele.
Como Comandante Supremo das Forças Armadas continuarei a incentivar que se dêem os passos necessários no sentido de dar concretização a esse grande objectivo nacional, que consiste, no fundo, em tornar as Forças Armadas portuguesas mais aptas para responder às exigências do mundo contemporâneo.
Em terceiro lugar, penso ser obrigatório abordar o tema da integração europeia, que continua a ser a prioridade das prioridades externas na hierarquia dos interesses nacionais. Para Portugal, a vinculação às instituições comunitárias europeias e transatlãnticas representou uma estratégia insubstituível para a reconstituição do seu estatuto internacional como um Estado democrático, solidariamente empenhado na consolidação da segurança regional e da aliança entre as democracias europeias, bem como na edificação de uma sociedade internacional, assente nos princípios do direito.
Essa orientação clara continua a ser a nossa linha de rumo na crise aberta pelo fim da guerra fria, e exige, para as próximas etapas da construção europeia, uma reafirmação dos consensos nacionais, nomeadamente na consolidação das nossas políticas perante o próximo alargamento comunitário às democracias da Europa central e oriental, bem como quanto às posições portuguesas sobre a reforma política e institucional da União Europeia, decisiva para o seu futuro.
Na minha opinião, para Portugal, a integração regional é uma forma indispensável de articular as relações entre o nível nacional e o nível internacional, tanto no sentido de moderar os efeitos mais imprevisíveis da globalização, como para responder às suas oportunidades de mudança. Além disso, a par da emergência de outras entidades regionais, a consolidação da União Europeia como uma entidade política e económica alargada a todas as democracias europeias, é necessária para ultrapassar a crise do post-guerra fria e reestruturar os equilíbrios internacionais de um modo estável e duradouro.
Para terminar, gostaria de partilhar convosco um sentimento de confiança. Portugal é uma Nação, o mais antigo Estado da Europa e uma comunidade de vocação universalista, que demonstrou, em inúmeras crises, uma excepcional capacidade para se transformar, sem nunca perder o sentido essencial de um destino nacional.
A minha convicção profunda é que os nossos valores não podem deixar de encontrar no novo mundo o melhor terreno para reafirmar Portugal.