Sessão de Enceramento do Ciclo de Conferências ISEE/Público 1997-98 "O Futuro da Europa e de Portugal na Europa"

Porto
19 de Março de 1998


Para falar de Portugal na Europa do futuro é, em primeiro lugar, necessário situar esse mesmo futuro europeu na evolução do processo iniciado com a aprovação do Tratado de Roma. Será talvez um lugar comum - mas nem por isso passa a ser menos verdade - dizer que temos o privilégio e ao mesmo tempo a responsabilidade de viver hoje um dos momentos decisivos da Europa.
Momento decisivo que, como todos os pontos de viragem, tem os seus riscos mas que abre perspectivas aliciantes em particular para o nosso País.
Deixem-me, em primeiro lugar, olhar um pouco para trás e abranger o caminho percorrido pela Europa desde o momento da nossa adesão às comunidades europeias.
O que mais impressiona neste exercício de história é constatar a extensão do caminho percorrido e as transformações a que obrigou esse percurso.
Com efeito, nestes últimos doze anos o que era a então Comunidade Económica Europeia alargou-se a mais cinco países, entre os quais o nosso; Embora com imperfeições, realizou o mercado interno com as liberdades de circulação de pessoas, mercadorias, serviços e capitais.
Processo de consequências extraordinárias e sem paralelo na história moderna, mudou profundamente o modo de funcionamento das economias e constituiu - se, através da liberdade de circulação de pessoas, num elemento fundamental da cidadania.
Através do Tratado da União Europeia preparou-se para a criação da moeda única que está aí à porta e apontou claramente para um reforço da cooperação, na Política e na Justiça, entre os estados membros.
Foi parte integrante nas últimas negociações do GATT e assumiu compromissos, que está a cumprir, porventura com excesso de zelo em alguns domínios, no processo final de abertura ao comércio do resto do mundo.
E por último, mas certamente não menos importante, soube adaptar-se ao desafio que constituiu a queda do mundo de Berlim e das condições de equilíbrio internacional até aí prevalecentes e transformar esse desafio em factor importante de novos avanços e principalmente de confiança num futuro reforço do papel da Europa no Mundo.
Grandes transformações, certamente. Porém, e como não podia deixar de ser, atendendo à complexidade dos fenómenos em causa, surgiram concomitantemente desequilíbrios profundos a merecer a atenção de todos.
Em primeiro lugar, os avanços estão longe de ser equivalentes em todas as componentes desta profunda transformação . Se a Europa avançou decisivamente no mercado interno e na moeda única, a verdade é que na convergência política e na construção de uma cidadania europeia se ficou aquém do esperado e desejável.
Em segundo lugar, e em ligação com essa mesma cidadania, não se reduziu e ter-se-à até por ventura alargado o défice democrático, ou seja o conjunto de dificuldades que cidadãos dos estados europeus enfrentam para acompanhar com rigor e participar activamente nas grandes decisões sobre o presente e o futuro da Europa.
Em terceiro lugar, é patente que a situação social da Europa se degradou acentuadamente nos últimos sete anos em virtude do aumento do desemprego e da exclusão social e do agravamento das desigualdades numa dimensão que faz temer pelo futuro do chamado modelo social europeu.
Modelo social que atravessa uma crise indesmentível mas não fatal para a sua manutenção.
Finalmente, o próprio ambiente psicológico se deteriorou visivelmente, relançando um certo europessimismo e prejudicando alguns dos eixos de colaboração entre estados que têm sido fundamentais para o avanço da Europa Face à complexidade da situação duas posições seriam, à partida, possíveis.
Uns dirão que as enormes transformações por que a Europa tem passado, a juntar ao impacto das mudanças a nível mundial, exigem alguma pausa para consolidar o já obtido , e em particular para a criação de condições de avanço na integração política.
Avanços que até agora têm sido insuficientes para garantir um espaço económico e monetário estável e para reduzir o mencionado défice democrático.
Outros, entre os quais me incluo, consideram, pelo contrário, que o processo de integração europeia deve avançar, como aliás tem sido tradição dos últimos quarenta anos, em todos os domínios que, por assim dizer, estejam maduros para os permitir.
Ou seja, domínios em que seja possível encontrar formas sólidas de articular os interesses comuns com os interesses nacionais.
Esta forma de encarar o processo de integração europeia não é uma fuga para a frente nem esquece as legítimas preocupações decorrentes dos atrasos em alguns domínios .
Mas reconhece que a forma de recuperar esses atrasos é tornar mais necessária a sua superação através de avanços em outros domínios que exigem e tornam prioritária essa mesma superação.
O avanço mais recente, ou seja o caminho para a moeda única ilustra, a meu ver, de forma exemplar este processo.
Estou seguro que a própria realização da moeda única irá criar as condições para uma nova articulação de interesses no domínio político, consensualmente considerado retardatário em todo este processo.
Por esta razão entendo que a Europa não deve fechar os olhos aos desafios do futuro próximo nem bloquear as transformações que sejam necessárias sob o pretexto do não avanço simultâneo em todas as frentes.
Esses desafios impõem - se hoje de forma inelutável. Como tenho afirmado, três deles devem ser considerados como principais : o alargamento da União, o modelo da construção europeia e a necessidade de fazer face aos sinais de crise que atravessam as nossas sociedades
A resposta a este desafios terá que estar à altura da sua dimensão e poderá exigir não menos que uma autêntica reinvenção do contrato social em que têm baseado as democracias europeias.
Temos, porém de ter consciência que existem factores de incerteza e que ninguém pode prever com rigor, neste momento, como a Europa irá reagir a estes desafios.
Mas é possível, desde já, enunciar um conjunto de princípios que a meu ver é essencial respeitar se queremos que a Europa avance e se consolide
Em primeiro lugar, a Europa é e deve continuar a ser uma associação de estados soberanos, uma comunidade de iguais onde se mantenha a posição relativa de cada estado membro.
Em segundo lugar, a Europa tem de continuar a ser um espaço de solidariedade social. Enganam-se os que julgam que o processo de integração europeia se pode reduzir a um processo de alargamento de mercado permitindo a melhoria da eficiência económica à custa do agravamento das desigualdades e da marginalização de grupos sociais significativos.
A Europa é certamente um grande mercado e até o maior mercado mundial. Mas é, tem que ser, muito mais do que isso . O chamado modelo social europeu, necessariamente reformado e adaptado às condições actuais, tem de se manter e desenvolver.
Não tenhamos ilusões: uma Europa que só seja mercado não será nem Europa nem sequer mercado. A evolução recente aí está para o demonstrar. Bastaram alguns anos de dificuldades sociais para fazer renascer de forma preocupante os nacionalismos xenófobos e as concepções proteccionistas.
Um terceiro princípio é, evidentemente, o da Coesão Económica e Social.
Princípio dos mais importantes da União Europeia, consagrado como tal no respectivo tratado, o princípio do reforço da coesão económica e social aponta, sem possibilidade de outras interpretações, para a convergência do nível de vida entre as várias regiões comunitárias.
E aponta para esse resultado não de uma forma passiva mas de modo activo , ou seja, exigindo da União os meios, financeiros e outros que permitam promover e levar à prática aquele princípio.
Também a este propósito poderemos afirmar que sem coesão económica e social não haverá uma Europa estável e que garanta a necessária colaboração entre os estados que a compõem.
São estas em linhas gerais as principais condicionantes do futuro da Europa que considerei útil recordar. É agora a altura de encararmos a posição de Portugal em todo este processo.
Portugal tem seguido a opção de participar activamente na primeira linha dos avanços da integração europeia. A meu ver esta é uma opção correcta e a que melhor defende os interesses nacionais.
Sofrendo de um atraso de séculos em termos económicos e culturais e estando situados numa zona geograficamente periférica é da maior importância para o nosso futuro que nos libertemos dessas desvantagens seculares através de uma participação activa, ainda que necessariamente de grande exigência, na primeira linha da integração europeia.
È essa opção que justifica que nos encontremos aptos a participar a partir do próximo ano na terceira fase da União Económica e Monetária.
O processo de convergência que foi necessário prosseguir para nos possibilitar essa participação foi indubitavelmente custoso quer em termos de redução do crescimento económico quer em termos de agravamento das condições sociais de alguns estratos da nossa população.
Mas não é menos certo que esse processo de convergência nos permitiu criar as condições de desenvolvimento futuro a que de outra forma não poderíamos aspirar.
Todos temos certamente a consciência de que a entrada na moeda única nos cria novos patamares de exigência. A disciplina monetária e financeira que a Europa do euro vai certamente prosseguir exige das nossas empresas e do Estado uma nova atitude face à competitividade de cada unidade produtiva individualmente considerada e do País como um todo.
Não poderemos mais no futuro compensar as nossas deficiências na gestão, no ensino e na formação profissional através de uma política monetária e cambial que, embora minorando os problemas no curto prazo, não permitiria assentar o nosso desenvolvimento em bases sólidas e sustentáveis.
Se as empresas se vão ter de adaptar a este novo condicionalismo, o mesmo terá que suceder - e talvez ainda em maior medida - no que respeita à actuação do Estado.
Desde logo enquanto principal financiador e orientador dos sistemas de ensino e de formação profissional.
E neste domínio nunca se insistirá demasiado na necessidade de afectar com rigor e eficiência os recursos públicos e de procurar complementaridades entre responsabilidades do Estado e do mundo empresarial.
Mas também em outros domínios essenciais da sua actuação como a Administração Pública, a Justiça e a cobrança de impostos.
Não é exagero dizer que uma boa parte da nossa posição na Europa do futuro se joga na forma como formos capazes de reformar rapidamente - porque o tempo já escasseia - toda a actuação do nosso Estado.
Conheço as dificuldades que esta reforma enfrenta, a menor das quais não será certamente a pressão contrária exercida por grupos de interesses que por ela se sentirão atingidos.
Mas como sempre tenho dito, na nossa situação actual, os interesses de grupo particulares, por legítimos que possam ser, têm de subordinar ao interesse nacional, que exige uma actuação do Estado mais eficiente e mais justa.
Enquanto Presidente da República e dentro das minhas competências, não deixarei de prestar todo o apoio que venha a ser necessário para levar a cabo esta grande tarefa nacional, que é, ela própria, uma condição do reforço da coesão entre os portugueses.
Se temos pela frente uma exigente agenda de reformas a realizar, não é menos necessário acentuar que não dispensamos os auxílios comunitários para as realizar. Não aceitamos a visão daqueles que consideram que os fundos estruturais comunitários são uma esmola a que estendemos a mão ou mesmo dos que apontam a estes fundos a responsabilidade da chamada subsídio-dependência.
Pelo contrário. Os fundos estruturais são um direito de que não devemos abdicar e são um auxílio precioso que não podemos dispensar.
Seria uma total falta de responsabilidade pensar que nesta fase do nosso desenvolvimento e face aos desafios que se aproximam alguma vez estaríamos em condições de os rejeitar.
A questão dos fundos estruturais não sendo a única é, contudo, uma das mais importantes da chamada Agenda 2000 e simultaneamente aquela onde é mais nítida a concretização ou a sua ausência do princípio do reforço da coesão económica e social de que há pouco falei.
As negociações da Agenda 2000 revestem-se pois de uma enorme importância para o nosso país.
Conforme já tem sido salientado e a meu ver com inteira razão não faz sentido que os custos do previsível alargamento venham a ser suportados pelas regiões menos prósperas da Comunidade.
Portugal tem sido sempre - e bem - um apoiante claro das aspirações de entrada na União Europeia dos países que a ela se candidataram.
Mas é toda a União Europeia que irá beneficiar do alargamento.. Mais : se regiões da União haverá onde esse alargamento poderá causar problemas de adaptação a curto prazo serão justamente as regiões menos prósperas que os irão enfrentar.
Por isso, sendo consequência de um processo de que toda a União beneficia, os custos do alargamento não devem ser financiados à custa de outros objectivos comunitários e em particular do reforço da coesão económica e social.
Os países que entrarem têm toda a legitimidade para, tal como nós, receberem um auxílio financeiro adequado antes e depois da adesão. Mas não podem as regiões menos prósperas da União ver o apoio financeiro comunitário reduzido para permitir o financiamento deste auxílio.
Além de profundamente injusta e contrária ao princípio da coesão económica e social esta situação, se viesse a acontecer contribuiria para o enfraquecimento da indispensável solidariedade entre os estados membros.
Gostaria também de chamar a atenção para um domínio onde serão crescentes - e a justo título - as exigências comunitárias.
Trata-se do Ambiente, que nos vai exigir um grande esforço de adaptação principalmente devido aos graves problemas de poluição e de desordenamento que são hoje claramente perceptíveis.
Temos de transformar este desafio, também ele, numa fonte de desenvolvimento pois ao nos tornarmos mais exigentes do ponto de vista ambiental seremos também mais exigentes no que respeita à qualidade da produção.
Chegou definitivamente para Portugal o fim do crescimento assente na mão de obra pouco qualificada e na degradação ambiental.
Se, como espero conseguirmos levar a bom termo as reformas internas necessárias com o indispensável apoio comunitário estaremos em condições de ultrapassar a nossa condição secular de país atrasado e periférico.
Simultaneamente a nossa opção de participantes na primeira linha da integração europeia dá-nos em outros continentes um peso e uma voz que de outra forma não conseguiríamos obter.
Está ao nosso alcance aquilo que foi o sonho de muitas gerações antes da nossa. Estou convicto que não vamos desperdiçar esta oportunidade.