Conferência proferida no Instituto das Relações Internacionais da Universidade de Kiev (Visita de Estado à Ucrânia)

Kiev
14 de Abril de 1998


Tenho sempre o maior prazer em estar entre os estudantes.
No meu país, durante o regime autoritário, as universidades foram, para a minha geração, escolas de democracia. Eu próprio fui dirigente do movimento estudantil de oposição ao regime autoritário e, desde essa altura, fiquei com o gosto pelo debate vivo e aceso.
Espero, pois, que as minhas palavras de abertura possam ser o ponto de partida para uma discussão animada.
Os temas que vos proponho para o nosso debate são a transição democrática em Portugal e o que chamaria a “ invenção” de uma nova Europa. Por último, gostaria de vos falar da questão de Timor-Leste.
Portugal viveu metade do século, entre 1926 e 1974, sob um regime autoritário, que acentuou profundamente o atraso do seu desenvolvimento político e económico e, a partir de 1945, a marginalização crescente de Portugal em relação à Europa das democracias.
Esse isolamento tornou-se ainda maior com a resistência do regime face à vaga de descolonização, resistência essa condenada pela comunidade internacional.
Numa tentativa desesperada para prolongar a sua sobrevivência, o regime autoritário travou, durante mais de uma década, uma guerra colonial em três frentes, contra os movimentos nacionalistas na Guiné-Bissau, em Angola e em Moçambique que, obviamente, não podia ganhar. Essa estratégia, de resto, ditou o seu fim, com o golpe militar de 25 de Abril de 1974.
O golpe de Estado militar abriu um periodo revolucionário, durante o qual se realizou, em condições de forte instabilidade, uma dupla transição na natureza do Estado e do regime politico.
Com a descolonização, Portugal perdeu a sua dimensão imperial e ficou reduzido aos seus territórios europeus. Com a democratização, Portugal criou as condições para superar o seu isolamento e recuperar o seu lugar na Europa das democracias.
A transição portuguesa foi a primeira a revelar a força profunda de uma vaga de democratização, que se prolongou, logo a seguir, na Grécia e em Espanha e, nos anos seguintes, na América Latina. Foi também a primeira vez que, numa situação revolucionária, os socialistas democráticos prevaleceram contra os comunistas ortodoxos. Nesse sentido, na medida em que marca uma inversão de tendência, a transição democrática em Portugal antecipa a deposição dos regimes comunistas na Europa Central e Oriental.
Por outro lado, Portugal foi o primeiro país a ligar a sua democratização a uma estratégia de adesão às Comunidades Europeias. O fim do isolamento imposto pelo regime autoritário, a descolonização e a institucionalização de uma democracia pluralista marcam o regresso de Portugal à Europa.
O processo de negociação da nossa adesão foi demorado; Portugal só pôde passar a ser membro de pleno direito das Comunidades Europeias em 1986, oito anos após o pedido de adesão.
A adesão teve efeitos decisivos para Portugal, quer para estabilizar a sua posição internacional, quer para consolidar a democracia, quer para criar melhores condições de modernização económica e social. Mas, sobretudo, tornou possível neutralizar os riscos de marginalização, de certo modo implícitos na nossa posição periférica - uma condição comum a Portugal e à Ucrânia -, tal como nos obrigou a assumir novas responsabilidades na construção da Europa.
Essas responsabilidades tornaram-se ainda maiores com o fim, tão súbito como inesperado, da guerra fria.
Por certo, muitos de vós têm uma experiência directa da extraordinária mudança iniciada com a revolução europeia de 1989 que levou à emergência de novos Estados, designadamente na Europa oriental.
A Ucrânia, como é óbvio, esteve no centro dessa viragem histórica, que alterou, profundamente, o mapa da Europa.
O fim da guerra fria fechou um ciclo da história europeia e encerrou um século terrível de guerras e de revoluções totalitárias. As divisões políticas e ideológicas que separavam duas Europas tornaram-se supérfluas. A competição bipolar, que impunha aos Estados europeus um estatuto de subordinação estratégica, deixou de existir. A trégua armada, que subsistia na Europa desde o fim da II Guerra mundial, deu lugar a uma desmilitarização gradual nas relações entre os Estados da região.
Porém, o fim desse ciclo não significou, por si mesmo, o início de uma nova ordem europeia. Muito estava por fazer para conseguir realizar as possibilidades abertas na fase eufórica que caracterizou, naturalmente, o fim da guerra fria.
É preciso inventar uma nova Europa, cujo nome seja sinónimo de paz e de democracia, uma Europa inteira e livre que supere uma longa divisão histórica entre as duas Europas.
É esse o sentido fundamental da política externa portuguesa, e estou convencido de que é esse o grande desígnio comum que pode aproximar todos os europeus e mobilizar a sua vontade, no dificil processo de transição que ainda estamos a atravessar.
O molde dessa nova Europa é o “triângulo mágico” da democracia, da economia de mercado e do Estado de direito, que resume o melhor da identidade europeia neste fim de século, e contém em si a promessa de um futuro de paz para todos os Estados da Europa.
Para o tornar uma realidade, temos de nos empenhar, solidariamente, na conclusão das transições democráticas, defender a dinâmica dos processos de integração regional e transformar a Europa num modelo de paz e estabilidade nas relações internacionais.
Nos últimos anos, foram dados passos importantes nessa direcção.
Citaria como exemplos:
- os resultados positivos da mudança política e económica nos países da Europa Central e Oriental;
- o facto das tendências de integração se terem revelado mais fortes dos que as forças de fragmentação, neste período de transição:
- a dupla estratégia de aprofundamento, com a moeda única, e de alargamento da União Europeia, que, após a adesão da Austria, Finlândia e Suécia, iniciou as negociações de acesso das novas democracias europeias;
- a adaptação da doutrina es das estruturas da Aliança Atlântica às novas condições, ao mesmo tempo que conjugava o alargamento com a conclusão de acordos especiais com a Ucrânia e a Rússia, a par da constituição do Conselho de Parceria Euro-Atlântico.
Nesse contexto, creio poder afirmar que a transição post-guerra fria tem avançado no bom sentido.
A principal excepção a essa linha geral foi a guerra brutal na antiga Jugoslávia onde, justamente, falharam os processos de transição democrática e prevaleceram as tendências de fragmentação, que levaram a uma trágica explosão de violência.
Temos, todos, de tirar as devidas lições dessa guerra dramática. As primeiras estão implicitas na missão de paz da Organização do Tratado do Atlântico Norte, com a participação de numerosos membros do Conselho de Parceria Euro-Atlântico. Nesse quadro, os soldados ucranianos e portugueses, entre outros, têm na Bósnia-Hercegovina uma experiência inédita de cooperação militar, que traduz, concretamente, um novo espirito de responsabilidade.
Por outro lado, creio ser urgente definir, em conjunto, nos quadros multilaterais mais adequados, as normas e as estratégias de longo prazo que possam antecipar e prevenir conflitos regionais. Devemos tornar claro o nosso empenho na formação de regimes constitucionais de democracia pluralista e assegurar o desenvolvimento de comunidades nacionais assentes nos valores republicanos da liberdade, da tolerância e do espirito civico.
Essas são condições prévias para garantir que a nova Europa será um espaço de progresso económico e social, de solidariedade, de estabilidade e de paz, cujo exemplo se possa projectar para lá das suas fronteiras. São também os pressupostos elementares de uma Europa livre e unida, onde as fronteiras entre os Estados deixem de ser linhas divisórias para se tornarem traços de união. E são ainda o critério essencial para fixar os limites da Europa, cujas fronteiras devem coincidir com as fronteiras da democracia.
A Europa, porém, não é senão uma pequena parte nas relações internacionais. Para lá das suas fronteiras, os espectros da violência, da guerra e dos despotismos continuam a ser uma realidade incontornável.
A esse propósito, gostaria de vos falar sobre a questão de Timor-Leste, um pequeno território, isolado no extremo da Ásia oriental, submetido a uma ocupação ilegítima e brutal da Indonésia, mau grado a condenação da comunidade internacional.
Quando estava em curso o seu processo de descolonização, Timor-Leste foi invadido, bruscamente, pelo exército indonésio, nos finais de 1975. Portugal, potência administrante, não tinha quaisquer meios para evitar ou conter essa invasão, repudiada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. A consequência da invasão foi um autêntico genocídio de uma comunidade indefesa, que causou a morte de mais de duzentas mil pessoas, cerca de um terço da população recenseada de Timor-Leste.
Os timorenses nunca aceitaram a invasão, nem a posterior anexação indonésia e, contra todas as probabilidades, continuaram a lutar contra a ocupação, numa resistência tão heróica como solitária. Portugal, que continua a ser a potência administrante de Timor-Leste, empenhou-se, desde a primeira hora, na defesa dos timorenses e dos seus direitos, designadamente nas Nações Unidas, cuja Assembleia Geral mandatou o Secretário-Geral para procurar, com todas as partes interessadas, uma solução pacifica, justa e aceitável para a questão de Timor-Leste.
Durante longos anos, a causa timorense foi praticamente ignorada pela opinião pública internacional, e não merecia qualquer atenção relevante dos Estados, presos no contexto da guerra fria.
Essa situação mudou a partir de 1989. Um bárbaro massacre no cemitério de Dili, onde as forças militares indonésias assassinaram estudantes e jovens timorenses, emocionou a opinião pública e levou à condenação da Indonésia, designadamente na Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas. Nos parlamentos, nas universidades, nas igrejas, o movimento internacional de apoio a Timor-Leste começou a crescer a um ritmo impressionante.
Em 1996, com a atribuição do Prémio Nobel da Paz ao Bispo de Dili, D. Carlos Ximenes Belo, e a José Ramos Horta, representante da resistência timorense, a causa timorense tornou-se, finalmente, uma grande causa internacional.
Portugal não tem quaisquer interesses egoístas em relação a Timor-Leste.
O único propósito da nossa acção é, e continuará a ser, a defesa intransigente do direito de autodeterminação do povo de Timor-Leste, um direito imprescritível, que é reconhecido aos Timorenses pelas Nações Unidas. Do mesmo modo, lutamos pela defesa dos direitos humanos em Timor-Leste, contra um regime de ocupação militar ilegal, que persiste em perseguir, implacavelmente, uma comunidade martirizada.
Estou certo que a causa timorense encontrará, cada vez mais, um profundo eco na Ucrânia e, nomeadamente, entre os estudantes, sempre os mais disponíveis e capazes de se mobilizar por uma causa justa.