Cerimónia de Entrega dos Prémios Norte-Sul


23 de Outubro de 1998


É com sentida emoção que hoje procedo à entrega do Prémio Norte/Sul, associando-me de novo a uma cerimónia sempre imbuída de profundo simbolismo. Um simbolismo que é vivificado pela acção concreta daqueles que homenageamos.
 
Ao longo dos anos, receberam este galardão, nesta mesma sala, personalidades notáveis e determinadas que deram o melhor do seu esforço e da sua dedicação à defesa intransigente de causas e princípios essenciais que nos são comuns. A liberdade, a democracia, a paz, os direitos humanos são valores pelos quais todos os anteriores premiados se bateram abnegadamente e por isso receberam a nossa homenagem e o nosso justo reconhecimento.
   
À prestigiada lista de laureados com o Prémio Norte/Sul, junta-se hoje o nome de Lloyd Axworthy, Ministro dos Negócios Estrangeiros do Canadá, a cuja meritória acção em prol da proibição, utilização, armazenagem, produção e transferência de minas anti-pessoais, consubstanciadas hoje na Convenção de Otava, todos devemos um pouco.

Entre cumprir bem um papel ou desempenhar capazmente uma função e empenhar-se dia-a-dia numa luta incansável por uma causa há uma diferença de atitude; a diferença que caracteriza aquelas personalidades que não vergam perante as dificuldades, antes as tomam como um estímulo para continuar a defender os valores por que se batem; essa diferença percebêmo-la bem na convicção inabalável que animou Lloyd Axworthy a tudo fazer, sem poupar esforços, para que o chamado processo de Otava, por ele lançado em 1996, fizesse o seu caminho, traduzindo-se com êxito no Tratado finalizado na Conferência de Oslo, em Setembro de 1997 e aberto à assinatura em Dezembro do mesmo ano.

As minas anti-pessoais são uma arma covarde e terrível. A sua disseminação por todo o mundo, e nomeadamente em Angola e Moçambique - países a que nos unem profundos laços de solidariedade - atingiu números assustadores. As suas vítimas são, diariamente, cidadãos indefesos de países que sofreram ou continuam a sofrer o drama da guerra. Onde quer que sejam utilizadas são, infelizmente, a garantia de que a guerra perdura, mesmo para além da paz. Os que as usam não podem ser amigos da paz.
   
Trata-se, sem dúvida, de um dos maiores flagelos que assolam a Humanidade e é por isso indispensável que a Comunidade Internacional una os esforços e as vontades a que a Convenção de Otava deu corpo com vista a uma urgente solução deste problema lancinante.

Portugal teve, desde a primeira hora, uma participação activa no processo de Otava, integrando mesmo o "core Group" que elelaborou o texto do Tratado. Fizémo-lo, na convicção de que era imprescindível aprovar um instrumento jurídico que proibisse a utilização desta arma criminosa que tanto prejudica o desenvolvimento e a própria reconciliação nacional de tantos países que procuram os almejados caminhos da paz e do progresso.

É, agora, urgente prosseguirmos a assistência à desminagem, uma das vertentes essenciais do Tratado, prestando um indispensável auxílio aos países mais afectados por este drama diário. Uma assistência que não poderá deixar de atender à necessidade formar tecnicamente peritos locais, a fim de que os países que sofrem este problema possam, eles mesmos, melhor enfrentá-lo.

A União Europeia é hoje o maior contribuinte para operações de desminagem, questão que tem sido objecto de sucessivas acções comuns no âmbito da Política Externa e de Segurança Comum, correspondendo assim ao dever solidário de ajudar a combater os efeitos atrozes deste autêntico flagelo mundial.

Mas este é um desafio permanente e para o qual não poderá haver qualquer trégua, já que da ausência da nossa acção colectiva resultarão novos mortos inocentes, novos corpos estropiados, outras vidas e famílias destroçadas.

O nome de Lloyd Axorthy está indissocialvelmente ligado à conclusão do Processo de Otava, que constitui um ponto de viragem determinante na consciência mundial deste problema na medida em que apela à necessidade de nos comprometermos de forma solidária na sua resolução.

O seu exemplo prova que, ontem como hoje, aqueles que assumem responsabilidades de governo podem e devem lutar pelas grandes causas, pelos valores em que acreditam. E que essa luta não é debalde e vale a pena. Os resultados não são quase nunca imediatos, podem até não ser vistos por quem por eles tanto deu. O importante, afinal, é acreditar na justeza das causas que se defendem.

Mas hoje homenageamos também a Drª Graça Machel, personalidade bem conhecida dos portugueses. Nela quero enaltecer a tão meritória e incansável dedicação a favor do desenvolvimento da educação em Moçambique e a eficaz liderança que com entusiasmo imprimiu a várias organizações vocacionadas para a protecção da criança.

Receberá o Prémio Norte/Sul em cerimónia posterior, uma vez que não pôde deslocar-se a Lisboa, como era sua vontade. Mas não posso deixar de lhe dirigir aqui expressivas palavras de reconhecimento e de profunda admiração pelo inexcedível labor que tem desenvolvido em prol das crianças de Moçambique e de todo o Mundo, através das várias organizações internacionais onde tem servido.

Todos sabemos que são as crianças as primeiras vítimas da sem razão dos homens, da deriva a que a guerra e a intolerância conduzem as populações de tantos países do Mundo; são elas que mais dolorosamente padecem as terríveis sequelas dos conflitos armados; são elas que se vêem investidas da responsabilidade de moldar o mundo de amanhã sem mais bagagem do que a roupa que têm no corpo, tantas vezes marcado pelas mazelas da guerra e da barbárie; são elas que melhor desarmam com o seu olhar aqueles que empunham as armas; são elas, na verdade, os verdadeiros heróis da paz.

Conheço a realidade de Moçambique. Apreciei, como todo o mundo, os esforços empreendidos no caminho da reconciliação nacional, do progresso e do desenvolvimento. É um país que trago no coração e a que sempre volto com um renovado sentimento de alegria. Tive, de resto, a felicidade de efectuar, no ano passado, uma visita oficial a este país irmão de que guardo a mais grata memória. Sei por isso avaliar bem a utilidade e o alcance do notável trabalho desenvolvido pela Drª Graça Machel.

A cerimónia que aqui nos reúne não é apenas simbólica. As personalidades dos galardoados são a primeira garantia de que o Prémio aqui recebido funciona como emulação e equivale para eles próprios a um incentivo para que prossigam a sua acção, para que continuem a demonstrar que vale a pena lutar por valores indispensáveis na sociedade global em que vivemos, neste virar de século.

Quero dizer-lhes que somos solidários com a vossa luta, que vos estamos agradecidos pelo vosso exemplo.

Muito obrigado.