Sessão Solene no Parlamento Marroquino (Visita de Estado a Marrocos)

Rabat
14 de Maio de 1998


É com particular emoção que me dirijo a vós, representantes do povo marroquino.
É uma emoção que resulta do altíssimo privilégio que me é concedido, da honra que é feita a Portugal e aos Portugueses.
É uma distinção que marca bem o carácter particular do nosso relacionamento, a sólida amizade que une marroquinos e portugueses, assim como o nosso comum compromisso no desenvolvimento das nossas relações, no estreitamento crescente da nossa cooperação nas mais variadas áreas.
Desejou Sua Majestade o Rei Hassan II que efectuasse a minha primeira visita oficial a Marrocos num momento particularmente importante para a sua História, um momento em que se concretiza uma alternância democrática em termos governamentais, num quadro de pluralismo político e partidário, de debate livre e enriquecedor de ideias e de projectos, no seguimento de eleições em que se empenhou, de forma tão expressiva, o povo marroquino no seu conjunto.
Momento particularmente significativo porque se mobilizam novas forças e novas capacidades para fazer face aos desafios que se colocam à sociedade marroquina, para assegurar o progresso económico e social crescente deste grande povo.
Momento, pois, de esperança confiante. De esperança e de confiança nas potencialidades deste país, nas capacidades das suas Mulheres e Homens, no seu apego aos valores da democracia e da tolerância, no desejo comum de um maior bem-estar para todos, de combate decidido contra a pobreza, contra as assimetrias, contra a exclusão económica e social.
As minhas primeiras palavras são de homenagem.
De homenagem a Sua Majestade o Rei Hassan II, estadista clarividente por todos respeitado pela sua tenaz defesa da paz e da convivência harmoniosa entre os povos, impulsionador corajoso das reformas indispensáveis para propulsionar Marrocos no próximo milénio e permitir-lhe enfrentar, de forma eficaz, os desafios da modernidade.
Homenagem às Mulheres e Homens deste país, às suas tradições democráticas e pluralistas; aos partidos políticos que têm sabido enquadrar as aspirações populares e que se encontram legitimamente representados neste Parlamento; às organizações de interesses a quem cabe um papel fundamental na expansão do progresso económico e social; a todos quantos se mobilizam generosamente para ocorrer às necessidades mais diversas; àqueles que, em sectores tão variados, prosseguem, abnegadamente, uma verdadeira missão formativa indispensável à convivência tolerante e à construção do futuro colectivo.
Homenagem ao Parlamento marroquino, espelho da diversidade e da pluralidade tão rica deste grande país, local privilegiado para a discussão das ideias e das propostas que moldarão o seu destino, suporte indispensável da pedagogia democrática e do reforço da consciência cívica tão necessárias para o progresso e a estabilidade das nossas sociedades.
Homenagem enfim à História e à Cultura deste país milenário, pátria de escritores e de artistas, de Ibn Khaldun a Tahar Ben Jelloun, terra de adopção de Averroes e de tantos outros que aqui se acolheram e aqui puderam prosseguir, em paz, o seu labor, para benefício da Humanidade. Também portugueses encontraram em Marrocos o refúgio e o pão durante os tempos não muito distantes em que Portugal se encontrava submetido a um regime ditatorial.
Marroquinos e portugueses forjaram laços indissolúveis nas encruzilhadas da História. Outro tanto não poderia acontecer entre dois povos que apenas têm entre eles um braço de mar. Combatemo-nos, guerreámo-nos, ocupámos cada um de nós largos troços do território do outro, semeámos, uns e outros, desventuras e tragédias. Mas esse mar, matriz da nossa vivência comum, que antes nos dividia, ressurge hoje como elo natural de aproximação e espaço onde temos que constantemente reforçar a nossa solidariedade.
Na presença árabe no vocabulário português, no imaginário e na nossa memória colectiva, assim como nos testemunhos históricos portugueses em Marrocos, neste nosso permanente encontro ao longo dos séculos, construímos os alicerces perenes de um relacionamento moderno e aberto entre os nossos povos, tanto mais natural quanto a convivência é fácil e que não existem entre nós quaisquer contenciosos.
Senhoras e Senhores Membros dos Parlamentos
Com a institucionalização da democracia, após a Revolução de 25 de Abril de 1974, Portugal quebrou definitivamente o seu isolamento, recuperando o seu lugar natural entre os Estados europeus e a sua genuína tradição universalista.
A democracia permitiu integrar na vida pública as diferentes perspectivas políticas, criar um quadro de direitos e deveres dos cidadãos e dos grupos de interesses, mobilizar a criatividade e as vontades.
A democracia permitiu-nos igualmente uma nova abertura ao Mundo, baseada no respeito pela soberania e pela identidade própria dos outros Estados, no primado do direito internacional e da solidariedade entre os povos.
Onze anos após a nossa adesão às Comunidades Europeias, Portugal encontra-se hoje entre os países fundadores da moeda única e é um parceiro constantemente empenhado no reforço do processo de integração da Europa.
Hoje, esquecemos por vezes o longo caminho que foi necessário percorrer e as consequências e custos que inevitavelmente acarretou.
Herdámos um atraso estrutural resultante de uma economia fechada sobre si própria, um sector produtivo que foi necessário modernizar; tivemos que levar a cabo uma reconversão económica sob a pressão de uma globalização internacional crescente, congregar esforços e consentir sacrifícios, prosseguir reformas com seriedade e rigôr. Mas soubemos abrir-nos ao progresso e à modernidade.
Tivemos de enfrentar, e enfrentamos ainda, as carências acumuladas nos planos da educação, da formação profissional, da investigação científica e tecnológica, que não são apenas fontes de desigualdade e de injustiça social, mas também travões ao próprio desenvolvimento económico.
Beneficiámos, é certo, do apoio e da solidariedade dos nossos parceiros. Mas a modernização da nossa economia não teria sido possível sem o empenho colectivo, sem o esforço e a criatividade dos portugueses, sem uma procura constante dos consensos em torno do nosso desenvolvimento económico, buscando sempre preservar a indispensável coesão social que é também uma dimensão do progresso.
Muito há ainda, certamente, que fazer, para que possamos, em Portugal, atingir os níveis de prosperidade económica e social que desejamos e que legitimamente ambicionamos. Mas estou certo de que, com o empenho de todos os portugueses, prosseguiremos as vias do progresso que vimos trilhando.
A revolução do 25 de Abril permitiu-nos igualmente que fizéssemos a nossa aprendizagem da convivência e da responsabilidade democráticas.
Essa responsabilidade exige uma atenção constante por parte dos responsáveis políticos e por parte das instituições representativas, já que o sucesso da democracia dependerá, em larga medida, da resposta que as instituições puderem dar aos anseios legítimos da população.
Não necessito de sublinhar, aqui, a responsabilidade particular que cabe, neste contexto, aos Parlamentos, onde, a par da afirmação da identidade própria de cada sector político e partidário, da representação da sensibilidade dos eleitores que os elegeram, os seus membros têm de procurar, constantemente, os compromissos políticos necessários para garantir a estabilidade governamental, a viabilização do desenvolvimento económico e o aprofundamento da própria democracia.
Trata-se de um exercício complexo, até porque , tantas vezes, não é bem compreendido pelas opiniões públicas. Mas é neste equilíbrio entre o confronto de opiniões e de perspectivas e o compromisso político que assenta a vida parlamentar democrática e o progresso das nações.
Vivemos tempos em que a mundialização dos desafios e a massificação das informações e das atitudes, o ritmo cada vez mais acelerado em que vivem as nossas sociedades, parecem sacrificar tantas vezes os princípios e os valores.
É uma situação que se repercute naturalmente nas atitudes individuais, gerando descrenças e desconfianças.
Creio que a via mais eficaz para lhes fazer face passa pelo reforço da dimensão ética intrínseca à democracia, pelo aprofundamento constante do Estado de Direito, pelo fortalecimento da solidariedade e da coesão nacionais, por uma constante pedagogia dos valores democráticos.
Só assim poderemos mobilizar as vontades e as capacidades necessárias para dar resposta às exigências cada vez mais complexas da nossa era.
Só assim poderemos dar uma resposta cabal às tendências anti-democráticas, às manifestações criminosas de racismo e de xenofobia, à intolerância e à violência.
Senhoras e Senhores Deputados e Conselheiros
A última década foi portadora de acontecimentos de inegável alcance e significado na cena internacional.
Assistimos ao fim da divisão do continente europeu, até então imposta pela lógica e pelas rivalidades entre os dois grandes blocos, encerrando uma era de afrontamentos ideológicos sucessivos entre os totalitarismos e a democracia.
As transformações ocorridas na Europa, com a reunificação da Alemanha, o reencontro dos países da Europa Central e Oriental com a democracia, a dissolução da União Soviética, tiveram consequências importantes em termos mundiais, alterando equilíbrios, pressupostos e concepções.
É encorajador ver a determinação com que, na Europa Central e Oriental, na América Latina, em África, os povos de tantos países prosseguem as grandes reformas das suas sociedades, possibilitadas pelo fim dos regimes ditatoriais, ancorando-as definitivamente em modelos de progresso assentes na democracia e no Estado de Direito.
Mas o Mundo continua infelizmente a ser também palco de conflitos que se arrastam há décadas, de violação sistemática dos direitos humanos, de desrespeito continuado pela legalidade internacional, de fome e de miséria, dos horrores do fanatismo.
Em Timor-Leste perdura a ocupação brutal de um território e a violação sistemática dos direitos mais elementares da sua população, sem que os apelos insistentes da comunidade internacional sejam minimamente escutados no que se refere a uma melhoria das condições de vida da população timorense, à cessação das prepotências, à libertação dos presos políticos, às condições indispensáveis para a criação de um clima propício ao estabelecimento de um verdadeiro diálogo entre todas as partes envolvidas.
Portugal tem um único interesse na questão de Timor: a defesa dos direitos desta população martirizada.
Continuaremos empenhados, de forma construtiva, nas conversações que decorrem sob a égide do Secretário-Geral das Nações Unidas, procurando uma resolução pacífica e internacionalmente aceite desta questão que envolve a comunidade internacional no seu conjunto. E esperamos, apenas, que os nossos amigos utilizem a sua influência junto da Indonésia para que se empenhem igualmente na procura dessa solução.
Também o processo de paz no Médio Oriente se encontra num impasse, o que justifica a preocupação legítima de quantos defendem o direito à paz de todos os povos daquela região.
A fórmula fundamental dos Acordos de Oslo, “terra por paz”, é o princípio no qual se deverá basear uma negociação séria entre as partes envolvidas.
Esta negociação tem de ser prosseguida de boa fé, sem subterfúgios nem tácticas dilatórias, sem exigências tantas vezes descabidas e que apenas traduzem a ausência de uma vontade política.
Não pomos em dúvida as preocupações inteiramente legítimas de Israel em termos da sua segurança; trata-se de uma preocupação que tem de ser encarada com toda a seriedade e que tem de ser rodeada de todas as garantias, nomeadamente contra aqueles que apostam, sinistramente, no exacerbamento da situação, que matam e mutilam, os fanáticos do ódio e da guerra.
Mas igual preocupação devem suscitar-nos o atraso no reposicionamento do aparelho militar israelita, a prossecução da instalação de novos colonatos, o cerceamento injustificado da liberdade de movimento das populações, todo um conjunto de acções que atingem a população palestiniana não apenas no seu ganha pão mas na sua própria dignidade.
Tais acções não são compreensíveis por parte de uma nação apegada aos direitos do Homem, de um povo que sofreu as piores perseguições e atrocidades, de um Estado democrático e de Direito como Israel.
Há que reconhecer que se quebrou a confiança, e sem que a confiança se restabeleça, não será possível prosseguir a paz.
Todos conhecemos os efeitos nefastos das quebras de confiança, de um futuro sem perspectivas, da frustração das esperanças legítimas, da negação de promessas solene e livremente consentidas.
Tem sido esta a mensagem de Sua Majestade, o Rei Hassan II, que tanto se tem empenhado na criação de condições de paz e de estabilidade no Médio Oriente.
O contributo de Sua Majestade, como estadista e personalidade experiente do maior relevo na cena internacional, é justificadamente apreciado e os seus conselhos são escutados por todos aqueles que verdadeiramente desejam a paz e a convivência entre todos os povos da região. Só posso esperar que os seus apelos sejam seguidos com a atenção que merecem.
Foi esta, também, a mensagem tão eloquentemente deixada pelo Secretário-Geral das Nações Unidas na sua recente visita à região.
O processo de Oslo é irreversível. Há que retomar, com toda a urgência necessária, as negociações, com boa-fé, acatando na sua integralidade os acordos concluídos, no respeito pelas resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Espero que esta seja uma realidade que se imporá, finalmente, a israelitas e palestinianos.
A comunidade internacional tem de zelar permanentemente pelo respeito do Direito Internacional e dos Direitos Humanos, sem subterfúgios nem ambiguidades, nem utilizando critérios distintos na apreciação de situações em tudo similares.
A estabilidade e o progresso da Bacia Mediterrânica interessam, por igual, a todos os Estados circundantes. Estão as duas margens deste mar comum indissociavelmente ligadas pela História, pela Geografia, pela Cultura, pelas Mulheres e Homens dos nossos dias, e a instabilidade de uma reflecte-se directamente sobre a outra.
A tragédia argelina ilustra dramaticamente a necessidade de estendermos uma solidariedade efectiva a todos os nossos parceiros mediterrânicos, na prossecução do seu progresso económico e social, na criação de condições para uma efectiva estabilidade política, na compreensão dos seus problemas específicos.
Acreditamos firmemente na necessidade de construir, paralelamente ao alargamento das fronteiras institucionais da Europa a todas as democracias do nosso continente, uma efectiva parceria com os nossos vizinhos.
Portugal tem-se empenhado neste desígnio, que não é apenas económico, mas sobretudo político.
Creio que esta perspectiva deve impôr-se a todos os europeus enquanto corolário de uma relação de vizinhança bem entendida e integralmente assumida..
Da prossecução deste desígnio depende a própria credibilidade do projecto europeu, e a União Europeia tem aqui responsabilidades particulares e o dever de corresponder às legítimas aspirações dos nosso parceiros e vizinhos.
O processo de Barcelona não pode ser um projecto de que o conteúdo se vai paulatinamente esvaziando, ao sabor das conjunturas.
Cabe-nos a todos contribuir, de forma decidida, para a consolidação de um espaço de crescente entendimento mútuo, de compromisso conjunto no desenvolvimento económico e social, de ataque decidido aos novos e antigos problemas com que se debatem as nossas sociedades, de cooperação estreita no combate a todas as formas de miséria e de exclusão.
Senhoras e Senhores Deputados e Conselheiros
Ligado pela História e pela Cultura ao Mundo Árabe, Portugal quer hoje revalorizar essa proximidade, desenvolvendo-a nos planos político, económico e cultural.
Entre Marrocos e Portugal não existe qualquer contencioso; a excelência das nossas relações políticas é para todos evidente. A nossa cooperação cultural desenvolve-se a ritmo crescente, congregando instituições públicas, municipalidades e universidades. O dinamismo da nossa cooperação económica é encorajador, mas tem de continuar a ser estimulado para que corresponda, de forma crescente, às potencialidades dos nossos dois países e à singularidade da nossa vizinhança.
Portugal foi desde sempre lugar de encontro de influências diversas. A nossa aventura marítima, a nossa abertura ao mundo, obrigou-nos a conviver com diferentes maneiras de ser, de pensar e de sentir, uma convivência que nos enriqueceu e que moldou a forma como encaramos esse mesmo mundo.
Só o diálogo franco entre culturas, países, povos e religiões pode abrir um futuro de esperança à Humanidade. Este diálogo tem de respeitar a identidade própria de cada uma e de todas as culturas e tem de ter consciência de que a diversidade e a pluralidade são a riqueza da nossa condição. Esse diálogo é condição da luta pelo desenvolvimento, pela democracia, pela solidariedade, pela paz, contra todos aqueles que defendem o isolamento e a intolerância e buscam impôr uma organização da sociedade que não repita nem a liberdade nem a dignidade dos seres humanos.
Acredito profundamente na capacidade humana de aprender, de corrigir o que está mal, de aperfeiçoar. É sempre um caminho difícil, gradual, marcado por obstáculos e contradições. Mas é o caminho do progresso.
Trouxe-me a Marrocos o desejo sincero de melhor conhecer as suas gentes, a sua cultura, os seus problemas, as suas aspirações.
Somos dois países vizinhos e amigos, unidos por laços muito particulares, e que olham o futuro com confiança. A minha visita a Marrocos reitera o nosso compromisso solidário de procurarmos constantemente novas vias para aprofundar essa vizinhança e essa amizade.
É com este espírito que vos agradeço, sinceramente penhorado, a grande honra que hoje foi concedida a Portugal.