Homenagem ao Dr. Francisco Salgado Zenha

Braga
16 de Dezembro de 1998


Começo por manifestar um sentimento de gratidão: pela iniciativa da Universidade do Minho em homenagear um dos mais brilhantes políticos e estadistas da Democracia portuguesa; e pelas intervenções anteriores, profundas, emotivas e com grandeza, que evocaram as diversas facetas da personalidade de Salgado Zenha duma forma tão impressiva.
Não é por acaso que recorro a este termo, gratidão, para iniciar as minhas breves palavras. O próprio Salgado Zenha afastava das virtudes democráticas o agradecimento: as democracias não são, nem têm que ser, agradecidas, disse por diversas vezes. Compreende-se a afirmação.
Mas creio que nos compete contrariá-la, a nós cidadãos de uma democracia que reconhece os contributos dos seus fundadores e a nós instituições que asseguram a continuidade das práticas sociais e reconhecem os valores de referência. É em favor desse reconhecimento, devido a Francisco Salgado Zenha, e aliás até hoje insuficientemente manifestado, que aqui estamos.
Pela acção e pelo pensamento marcou a vida portuguesa da segunda metade do século. Como dirigente estudantil, foi pioneiro no desassombro e na independência. Como militante das liberdades contra a Ditadura e o Autoritarismo, foi abnegado, sem deixar de ser lúcido. Como profissional, foi um dos expoentes mais qualificados da advocacia portuguesa, atento à carreira e formação dos mais jovens colegas.
Como dirigente de partido esteve sempre na primeira linha dos combates mais difíceis e exigentes, sempre colocando os objectivos estratégicos acima de quaisquer cálculos pessoais. Foi um estadista de visão, sem deixar de ser eficaz, nas condições mais complexas em que foi chamado a governar, nas pastas da Justiça e das Finanças.
Político de convicções e princípios, a fortaleza moral que o caracterizava impô-lo ao respeito dos seus adversários, ainda na mais polémica das suas atitudes. Algumas delas foram dolorosas para amigos e companheiros. Para ele em primeiro lugar, certamente.
Como é sabido, nem sempre pude estar com Francisco Salgado Zenha, embora tenham sido muito mais expressivos os momentos de aprendizagem e de comunhão do que os de divergência.
Para mim, permita-se-me esta nota pessoal, ter convivido e aprendido com Salgado Zenha, no “Tempo e o Modo”, no combate político contra o Estado Novo de Salazar e Marcelo Caetano, na barra do tribunal do julgamento do assalto ao quartel de Beja e na impugnação da expulsão de Medeiros Ferreira, na actividade partidária depois de 1975, ter beneficiado do seu conselho profissional, constitui um dos mais altos privilégios que posso invocar.
A Democracia Portuguesa deve-lhe inspiração, dádiva pessoal de talento e coragem, deve-lhe clarividência e exemplo.
Gostaria de pôr em destaque quatro dos múltiplos aspectos em que o contributo de Salgado Zenha foi decisivo para moldar a Democracia Portuguesa tal como hoje a vivemos.
Refiro-me às suas intervenções na revisão da Concordata que possibilitou o divórcio dos casamentos católicos, e em defesa da liberdade sindical. Refiro-me também às suas posições sobre a reforma do Estado Democrático, tanto no tocante à descentralização como à transparência da actividade pública.
Saliento em primeiro lugar o entendimento que lhe coube estabelecer sobre as relações entre o Estado Democrático e a Igreja católica. Salgado Zenha conduziu as negociações que permitiram firmar um acordo entre o Governo e a Santa Sé para a revisão da Concordata. Fê-lo de forma não apenas a evitar a abertura de uma questão religiosa em Portugal, de consequências imprevisíveis para a democracia, mas também a criar um ambiente favorável à discussão serena dos problemas. Salgado Zenha não tinha dúvidas de que a religião católica era, pela história e pelas convicções dominantes na sociedade portuguesa, na sua própria expressão, “uma religião nacional”.
Mas estava igualmente certo de que o Estado democrático só podia ser um estado laico.
Procurou reforçar esse laicismo, mostrando que o laicismo não equivale a anti-clericalismo, nem é anti-religioso. A neutralidade do Estado, que só o laicismo garante, não implica desrespeito pelos modos de ser e de sentir dos portugueses.
Outra das intervenções cruciais de Salgado Zenha na formação do Estado Democrático foi a propósito da liberdade sindical. Numa altura em que a tese da unicidade sindical, fazia curso, ele empenhou-se, como nenhum outro dirigente político da época, em reinscrever a liberdade sindical no leque das liberdades que definem a democracia. “Liberdade implica liberdade de escolha e de caminho”, proclamou então com uma veemência jamais esquecida. “A definição das liberdades democráticas não é monopólio de nenhuma corrente política ou sindical.
As liberdades pertencem ao povo. Ninguém pode delas dispôr em seu nome. E muito menos imolá-las ou sacrificá-las”, afirmou, no contexto desse combate pela liberdade sindical, em Janeiro de 1975.
Francisco Salgado Zenha, protagonista e analista da vida política, apercebeu-se rapidamente que “o 25 de Abril não era apenas”, para utilizar termos seus, “uma revolução política e social”. De facto ele tinha verificado a existência de um nexo essencial entre a ruptura do 25 de Abril e o fim da era colonial. O 25 de Abril “representa uma crise existencial, de todo um país, que se despede de 500 anos de colonialismo agravados ao mesmo tempo por 50 anos de fascismo” - escreveu em Abril de 1975.
Compreendeu assim, que, num primeiro momento, importava sobretudo consolidar liberdades democráticas e um regime pluralista, para, numa segunda fase, introduzir reformas fundamentais do Estado Democrático.
O confronto de pontos de vista não divide, o que divide é a exclusão de um deles, seja a que pretexto for - é o princípio incessantemente vincado por Zenha em 1974 e 1975. A unidade nacional só pode ser salvaguardada plenamente pela democracia, isto é, pelo diálogo. O monólogo pelo contrário é que desune, menoriza, impede a assunção de objectivos comuns. Recusa, em consequência, a alternativa fascismo/comunismo, à qual contrapõe a alternativa fascismo/democracia.
A partir de princípios de 1976, Salgado Zenha passa a ocupar-se sobretudo do Estado. Considerava que “É tempo de deixar de fazer a revolução para passar a fazer o Estado”. Aplicou-se, ainda no Governo, e mais tarde na imprensa e na actividade militante, nesse combate igualmente essencial. Também aqui a Democracia portuguesa inscreve contributos absolutamente essenciais. Gostaria de destacar sobretudo dois.
Respeita o primeiro ao reforço da autoridade democrática. Salgado Zenha, com outros responsáveis políticos nacionais, ajudou a estabelecer um consenso em torno da prioridade a dar à ordem democrática, condição de afirmação das próprias liberdades democráticas.
Uma segunda linha de proposta centrou-se na questão da iniciativa privada. Salgado Zenha, antecipando consensos posteriores, reivindicou a definição de um quadro claro e renovado para a iniciativa privada, que entendia poder e dever desempenhar um papel fundamental na vida económica do país.
Francisco Salgado Zenha sabia que o Estado Democrático tem que ser renovado e que a Democracia deve associar-se a um projecto nacional. Também nesse campo, as suas propostas e combates deixaram um lastro profundo, fazem parte do património de desígnios da democracia portuguesa, ainda que muitos deles não estejam plenamente cumpridos.
Ponho em destaque duas dessas propostas de reforma do Estado Democrática. A primeira é da descentralização, sobre a qual escreveu páginas muito incisivas, condenando a esclerose do centralismo e a resistência à mudança que ele representa. A segunda é a daquilo a que chamou “administração aberta”, ou seja o direito de acesso de todos os cidadãos à informação sobre os actos do Governo e da Administração. Salgado Zenha entendia que a participação política tinha que ser encorajada e só o podia ser com mais proximidade entre cidadãos e órgãos de decisão e com mais informação pública sobre a vida do Estado.
Finalmente, o tema, sempre complexo, da associação entre projecto de realização nacional e democracia. Zenha enunciou-o em vários momentos, nomeadamente quando, em 1976, se referiu à necessidade de, terminado o ciclo colonial, reencontrar um projecto de “Unidade e Grandeza Nacional”.
O projecto que a geração de Salgado Zenha formulou e nos transmitiu passou pela integração europeia e pela redefinição do lugar de Portugal no mundo. Ele sabia que era um projecto de longo prazo, que exigia múltiplas mudanças nas nossas estruturas e comportamentos. Não sendo um optimista exacerbado, Zenha transmitia o sentido da esperança. Tenho uma “grande esperança”, escreveu, “num Portugal independente, num Portugal grande, num Portugal livre, num Portugal para todos os portugueses”.