Sessão Solene Comemorativa do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas

Lagos
10 de Junho de 1996


Celebramos o 10 de Junho em Lagos, cidade de tão ilustres e antigas memórias ligadas à aventura dos descobrimentos portugueses, que estamos a comemorar até ao fim do século.
Festejamos o Dia de Portugal sob a evocação de Camões e em comunhão com as comunidades portuguesas e de lusodescendentes dispersas pelos cinco continentes. Essas comunidades estão presentes no nosso afecto, quaisquer que sejam as terras, próximas ou longínquas, onde vivam e trabalhem, prestigiando o nome de Portugal.

Neste dia, saudamos também fraternalmente todos os povos que falam a língua que nos é comum e que a enriquecem com as suas experiências plurais e com as visões do mundo que lhes são próprias: Brasil, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e o povo de Timor-Leste, que tem resistido heroicamente à opressão e à violência. Temos a responsabilidade de defender em todas as circunstâncias, não abrandando a nossa voz, o seu direito inalienável à autodeterminação, à liberdade e à identidade cultural e religiosa.

Todos esses povos são nossos irmãos pela história, pelo convívio secular, pelo afecto e pelo entendimento, são nossos irmãos pela língua, vamos constituir agora a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, que contará com 200 milhões de seres humanos, e que temos a obrigação de considerar como um desígnio estratégico fundamental, tornando-a realidade viva de cooperação e força activa dos mais sérios desafios pois essa é uma exigência de afirmação. Esse será no futuro um dos mais sérios desafios que temos, o qual terá de ser ganho, pois essa é uma exigência fundamental dos nossos povos.

Portugal está sempre pronto a prestar a sua colaboração, quando desejada, em todos os actos e processos que visem a paz, a democracia e o desenvolvimento dos países irmãos. Pela nossa parte, entendemos ter o dever de fazê-lo com isenção e sem complexos, que já não têm razão de ser, na solidariedade e no respeito pela vontade soberana de cada povo. Torna-se imperioso valorizar o muito que temos em comum, independentemente das opções livres de cada Estado. Sabemos que a língua é o mais forte e perene traço de união, constituindo o fundamento da comunidade que vamos instituir e o grande instrumento da sua projecção no Mundo.

O prémio Camões que entregamos a Eduardo Lourenço é um símbolo dessa comunidade e da língua em que o grande ensaísta tem dado voz às mais fundas questões postas pelos homens neste século, procurando respostas, logo a seguir transformadas em novas perguntas. Também é nesta língua que Eduardo Lourenço vem sondando, sem descanso, a nossa história, a nossa cultura, a nossa mitologia, com uma inteligência criadora excepcional. Graças a ele conhecemos melhor o que somos como homens deste tempo e como portugueses herdeiros dos vários tempos da história.

Pátria que fez da viagem, da procura, da descoberta, do encontro de culturas e de civilizações a substância da sua identidade, Camões simboliza-a e simboliza-nos. O seu Poema constitui a referência maior da nossa biografia colectiva. Em cada época, tem sido possível lê-lo com actualidade renovada. No nosso tempo, essa leitura surpreende-nos, mais do que nunca, pela força intacta e pela validade da sua mensagem.

Talvez isso aconteça porque Camões viveu num tempo de crise que, como o nosso, estava submetido às pressões contraditórias de uma era que findava e de outra que nascia. Como hoje, tinha sido abalada a imagem que os homens possuíam da sua condição e do seu destino. O nascimento da ciência experimental moderna e a descoberta de «novas ilhas, novas terras, novos mares, novos povos; e o que mais é, novo céu e novas estrelas», como disse de forma tão bela Pedro Nunes, teve fundas repercussões no pensamento e na vida.

Portugal esteve na origem do movimento de consciência e da atitude de progresso que é o melhor da cultura europeia.

Camões, com o seu génio, experimentou e captou esse clima de mudança, hesitação, dúvida, conflito interior. Nele, como em poucos, cruzam-se a herança recebida do passado e o apelo visionário do futuro. Compreendeu que «todo o mundo é composto de mudança» e que «continuamente vemos novidades». N’Os Lusíadas está o mundo e está Portugal que deu a conhecer o mundo a esse mundo. Mas Os Lusíadas não são apenas uma epopeia glorificadora, são também um manual de sinais e de advertências para os perigos e as consequências dos erros humanos.

A memória das glórias do passado nunca pode ser refúgio para as desilusões ou a insatisfação do presente. Os povos que assim procedem perdem energia e alma, ficam prisioneiros de si mesmo. Nós queremos, justamente, lembrar os grandes exemplos do passado, de modo a neles colher ânimo para olharmos o futuro. No caso de Camões, retemos a lúcida coragem de pensar o novo e o diferente. É dela que precisamos para enfrentarmos as novas faces de um tempo, cujas características maiores são a complexidade e a imprevisibilidade

A nossa época — que é a época da globalização, do espaço, da comunicação, da Internet — exige uma atitude que os Portugueses estão em boas condições de compreender. Exige sentido do universal, consciência da unidade do Mundo e de que tudo está ligado a tudo, capacidade de pressentir o que vai aparecer, coragem de correr riscos.

Os Portugueses deram historicamente provas desses atributos, com desassombro e perspicácia para vencer dificuldades, curiosidade pelo novo e adaptabilidade ao diferente e ao mutável.
A afectividade da nossa maneira de ser é também um valor muito importante num mundo que precisa ser re-humanizado.

A democracia procura, hoje, novas formas de participação nas decisões e novos meios de aproximação entre os eleitores e os seus representantes, estes objectivos passam pela maior abertura das instituições e por uma mais autêntica e consequente ligação às pessoas, à vida quotidiana e aos problemas concretos. As qualidades humanistas que sempre evidenciámos de proximidade afectiva e abertura cultural podem, nesse sentido, ter um carácter vivificador exemplar. Devemos fazer delas a marca criadora da nossa intervenção cívica e política.

Porque sabemos que esses são poderosos trunfos que possuímos e que temos de saber valorizar, devemos também evitar, combatendo-os, aqueles motivos que nos provocaram, no passado, períodos de decadência. Temos de ser sempre mais exigentes na prática quotidiana da democracia, aperfeiçoando as instituições e as relações de tolerância entre os cidadãos que devem participar e fazer ouvir a sua voz. Devemos ser mais exigentes connosco próprios, com o que somos e o que fazemos, com o contributo que damos à comunidade. A nossa história ensina-nos que, nos períodos de progresso, fomos sempre capazes de integrar, sem conflitos, o trabalho e o valor individuais no esforço e na acção colectiva, valorizando-os mutuamente.

Temos de ser mais perseverantes no alcançar dos objectivos, mais combativos nos desafios a vencer, mais organizados e firmes na execução dos projectos, mais ambiciosos nos desejos e aspirações. Devemos cultivar o que sabemos ter de bom e corrigir o que não nos satisfaz, devemos afirmar os valores da nossa identidade secular e não ter medo de assumir um novo patriotismo, atento à lição da história, dinâmico e mobilizador, com raízes no passado e voltado para o futuro.

Orgulhamo-nos legitimamente de pertencer a uma nação secular, com uma cultura riquíssima, uma grande história e que é hoje uma terra livre de mulheres e homens livres.

A nossa relação com Portugal não é apenas consubstanciada numa ideia. É também um instinto e um sentimento forte, vivo e mobilizador.

Afirmarmos esse sentimento não é uma proclamação retórica, é um compromisso reafirmado que significa assumirmos um sentido de responsabilidade activa e de partilha solidária. Esse compromisso traduz-se em não aceitarmos nem a discriminação nem a exclusão de ninguém, em prestarmos apoio e atenção aos que mais precisam. Significa que cada um sente como seu o destino de todos, lutando contra o egoísmo que alheia, contra a passividade que desresponsabiliza, contra o fatalismo que faz desistir. É combater pela liberdade, pela justiça, pela solidariedade. É defender a nossa identidade, a coesão nacional, a língua, a cultura, bens preciosos que temos de enriquecer, acrescentar e afirmar no mundo.

O novo patriotismo de que vos falo assenta na força da coesão nacional e no dinamismo social com consciência de que a acção individual se continua e enriquece na relação com os outros, visando o bem do País. Este patriotismo não é fechado nem incompatível com a nossa participação activa nos projectos e organizações internacionais a que pertencemos e às quais queremos dar o nosso contributo original.

Gostaria que os Portugueses não encarassem a celebração deste dia como um ritual vazio que se repete ou uma formalidade oficial que se cumpre. Gostaria que todos e cada um de nós fizéssemos uma pausa para pensar nos deveres que temos para com Portugal, qualquer que seja o nosso lugar na sociedade, pois somos todos portugueses. Gostaria que este dia de Portugal fosse sentido pelos Portugueses como o seu dia e o dia de todos. Desejo que estas celebrações contribuam para estreitar os laços que nos unem e nos tornam uma comunidade em movimento, coesa e forte.

Nós não fomos e não somos uma nação porque estamos juntos ou porque o destino nos juntou. Somos uma nação porque nos quisemos e nos queremos juntos, coesos e solidários, para construir alguma coisa que valha a pena e que, por ela, as gerações futuras guardem memórias de nós, como nós conservamos memória dos que nos antecederam e fizeram Portugal.

Somos uma nação, porque temos uma vontade colectiva, confiança em nós próprios, nas nossas capacidades e na nossa ambição de fazer mais e melhor.

Sabemos que há dificuldades, atrasos, injustiças e problemas graves. Conhecemos a situação de alguns dos nossos concidadãos. Eu não os esqueço. Sabemos que a Europa atravessa um período de definição. Temos consciência de que se exige de nós um grande esforço, que é fundamental para o futuro. Por tudo isso, precisamos de afirmar o que nos une, reforçar o que somos, fazer ouvir a nossa voz, valorizar as pessoas e, em especial, os jovens, não desperdiçar energias e recursos, defender os nossos interesses, assegurar a estabilidade e a paz cívica. Não queremos ficar na defensiva, à espera, queremos participar, ajudar a construir o Portugal, a Europa e o mundo do próximo milénio.

Neste tempo, uma das responsabilidades dos que recebem dos seus concidadãos o mandato e o encargo de os representar é a procura de consensos amplos e dinâmicos, em torno de princípios e objectivos essenciais. Só deste modo se evita a tentação de tudo voltar sempre a pôr em causa, recomeçando de trás.
É através dos consensos responsáveis e sólidos que é possível a definição de acordos e formas estáveis de entendimento e concertação, a partir das quais se pode progredir com segurança.
A experiência dos vinte e dois anos vividos em democracia dá-
-nos esta lição: quando alcançámos consensos, duradouros, que não foram postos em causa, conseguimos reforçar as instituições, aprofundar as reformas, prestigiar a política e consolidar o próprio regime democrático. Importa ter presente essa lição.

Como Presidente da República, eleito pelos Portugueses com o compromisso de deles estar próximo e de em seu nome falar, tudo farei para mobilizar o País em defesa dos grandes princípios e em torno dos objectivos que nos unem e fazem avançar.

Neste dia de tão grande significado, aqui, em Lagos, junto ao mar que nos fez grandes, reafirmemos, com confiança no futuro, a nossa vontade de engrandecermos Portugal e de servirmos o povo português.