Congresso Internacional - Garret - Um romântico, um moderno


03 de Fevereiro de 1999


Com a abertura do Congresso Internacional "Garrett - um romântico, um moderno" iniciam-se as comemorações dos duzentos anos do nascimento deste grande português.

Penso que não haveria melhor maneira de o fazer. Reunir, na Universidade em que ele estudou, os mais eminentes especialistas, portugueses e estrangeiros, da sua obra, da sua acção e da sua época para reavaliarem as múltiplas facetas do seu legado é, com efeito, pôr em evidência a espantosa actualidade de Almeida Garrett, a sua modernidade, como refere o lema sob o qual decorre este Congresso.

Ao olharmos, a dois séculos de distância, para a figura do autor das "Viagens na Minha Terra", o sentimento que nos invade é o de admiração, no duplo sentido de espanto e de apreço. É, de facto, espantoso que um homem que viveu apenas 55 anos tenha deixado uma obra tão variada e tão ampla, tão profundamente inovadora, tão cheia de consequências para o futuro. E quando falo de obra refiro-me, naturalmente, à sua obra literária, mas também à sua obra como doutrinário, político, pedagogo, jurista, legislador, jornalista, estadista e reformador.

Depois, a este sentimento de espanto, junta-se o sentimento de apreço e respeito pela extraordinária abundância e versatilidade dos seus talentos e aptidões, pela proficuidade do seu trabalho, pela universalidade dos seus interesses, pelo poder visionário do seu génio.

Quase tudo o que foi fundador, transformador e reformador da mentalidade e da sociedade portuguesa do seu tempo, que foi um tempo fulcral de mudança, teve a sua colaboração ou a marca das suas ideias.

Garrett foi, como nos melhores momentos aconteceu na nossa história, o exemplo de um grande homem de letras e de um grande homem de acção, de um grande escritor e de um cidadão exemplar, de um português excepcional, de um europeu de grande visão, de um homem do Mundo. Agiu em nome de um pensamento, de uma concepção, da vida, do homem e da sociedade, de uma doutrina. Esse pensamento, essa concepção e essa doutrina não eram, porém, nem dogmáticas, nem rígidas, nem fechadas. Ele próprio os submeteu à crítica, ao confronto com a realidade e com as opiniões contrárias, à evolução do próprio Mundo.

Percorrer a produção doutrinária, política e auto-biográfica de Garrett é assistir ao percurso de um pensamento que ousa enfrentar as suas próprias contradições, que não teme mudar de opinião para não mudar de princípios, que se organiza em íntimo contacto com a vida, com a experiência e com a observação.

Toda a sua obra, toda a sua acção são unificadas por uma ideia fundamental de renovação, regeneração e renascimento de Portugal, que tinha na liberdade, na identidade e no regresso às fontes criadoras da cultura popular as suas traves mestras. Na política, na sociedade, na literatura, o autor de Frei Luís de Sousa foi um dos grandes protagonistas da passagem de um tempo antigo a um tempo novo, de um Mundo a outro Mundo.

Como escritor, renovou profundamente a língua e as formas literárias. O seu trabalho de pesquisa, de recolha, de teoria foi imenso. As suas criações literárias mais marcantes têm uma vitalidade e uma originalidade que mantêm intacto o poder de sedução.

Como homem de teatro, refundou o teatro português quer como grande dramaturgo, quer como fundador do Teatro Nacional e do Conservatório.

Como homem de cultura, entre tantas causas que defendeu, instituiu e organizou o ensino artístico, lutou pela democratização da cultura, pela valorização das fontes da nossa identidade e das formas populares de cultura, pela defesa do património e dos direitos da propriedade literária, pela independência dos intelectuais.

Como legislador, foi fundamental o seu contributo na configuração do constitucionalismo liberal, na elaboração da Constituição de 1838, nas novas leis eleitorais e de liberdade de imprensa, na reforma do Código Administrativo e nas reformas fundamentais de Mouzinho da Silveira e de Passos Manuel, que mudaram o País.

Como cidadão, político, deputado e homem de Estado foi um combatente heróico pela liberdade, combate que lhe valeu a Torre e Espada, um tribuno ímpar, um diplomata de visão ampla. As suas reflexões sobre a Europa ("reequilibrar Portugal na balança da Europa", como ele dizia) são de um acutilante sentido de futuro e os seus projectos sobre educação e ensino público são ainda hoje do maior interesse. Já então ele classificou a educação como "a mais difícil e a mais importante de todas as reformas".

Lutador pela liberdade foi ainda um homem preocupado com a dignidade cívica de todos e com a injustiça social. Não se furtando, quando as circunstâncias o exigiam, a ser um polemista notável e um adversário temível, pautou, todavia, a sua intervenção na vida pública pela moderação e por um apurado sentido do interesse do País e do Povo, da causa da democracia e do liberalismo.

Muito mais se poderia enumerar do que Garrett fez e das marcas que deixou, da poderosa influência que exerceu. Há textos seus que poderiam ter sido escritos hoje, sem que, para tanto, lhe precisássemos de alterar uma vírgula.

Aquele que fundou o romantismo português sob a égide de Camões, soube como poucos - e entre esses poucos está, naturalmente, a grande figura moral e intelectual de Alexandre Herculano - ser fiel ao seu tempo e às suas preocupações, ao que nesse tempo era já abertura, energia e impulso transformador virado ao futuro. Por isso, o sentimos tão nosso, tão contemporâneo das nossas perplexidades e das nossas aspirações.

Hoje, como há dois séculos, temos de enfrentar os desafios de um tempo em mudança ainda mais radical e acelerada. Hoje, como há dois séculos, temos de saber fazer as reformas que preparem o País para estar à altura das responsabilidades que lhe cabem na Europa e no Mundo.

Duzentos anos passados sobre o seu nascimento, comemorar Garrett é fazer nossas as causas que foram as suas: a da liberdade, a do reforço da identidade portuguesa, a da Europa, a da educação, a da modernização do país e da democratização da cultura, a do combate por um Portugal mais confiante nas suas capacidades.

Agradeço, muito reconhecido, o convite que me fizeram para estar aqui hoje, convosco. Saúdo todos os participantes e convidados, felicitando a Comissão Organizadora do Congresso e a sua Presidente, Profª. Doutora Ofélia Paiva Monteiro, que tem dedicado a sua vida, a sua inteligência, a sua competência científica ao estudo da obra e da vida de Almeida Garrett. Desejo o maior êxito aos trabalhos desta magna reunião garrettiana, na qual, estou certo disso, o nosso grande escritor, se lhe fosse possível, muito gostaria de participar, com o fulgor do seu verbo e com aquela disposição que o levava a dizer, sobre si e sobre os outros, o que pensava.

Bom trabalho!