Seminário sobre Direito Internacional


14 de Janeiro de 1999


É com muito agrado que me associo a esta importante iniciativa do Ministério dos Negócios Estrangeiros, levada a cabo em colaboração com Universidades Portuguesas e com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian.
   
Assistimos, neste século, a sucessivas e profundas mutações dos equilíbrio mundiais, resultado, primeiro, das consequências dos dois terríveis conflitos mundiais e, mais recentemente, do reencontro dos países da Europa central e oriental com a democracia e do colapso da União Soviética, que alteraram radicalmente os termos de uma lógica bipolar em que nos tínhamos habituado a viver durante mais de quatro décadas.
   
Entre o princípio deste século e a unificação da Alemanha, assistimos à deslocação dos impérios tradicionais, ao aparecimento de dois blocos rivais, ao desenvolvimento de um projecto original e dinâmico de integração da Europa, à emancipação dos povos colonizados, ao reforço da consciência de que o ser humano é sempre o destinatário da política e de que os seus direitos inalienáveis têm de ser respeitados e protegidos, ao vasto movimento de democratização que, a partir da Península Ibérica se estendeu à América Latina e mais tarde à Europa Central e Oriental.
   
Todos estes acontecimentos tiveram, naturalmente, uma forte influência na evolução do direito internacional, tal como moldaram novas concepções sobre o relacionamento entre os Estados, sobre os princípios de organização de uma nova ordem internacional baseados nos valores perenes da democracia e do Estado de Direito, do progresso económico e social, do papel central dos direitos humanos.
   
Mais do que nos direitos internos, os interesses pesam fortemente no direito internacional, que continua a ter uma base essencialmente convencional, ainda que cada vez mais multilateral e consuetudinária.
   
Toda a produção jurídica está condicionada por constelações de interesses e por valores que, nalguma medida, correspondem a estes interesses e os justificam; mas estes valores têm um "poder expansivo" próprio, ou seja, são portadores de uma dinâmica específica que se sobrepõe frequentemente e se expande para além dos interesses que visam proteger num determinado momento, da sua finalidade utilitária.
   
Assim se explica que, apesar do peso dos interesses, o direito internacional tenha progredido substancialmente, nomeadamente a partir dos finais do século passado, com a abolição da escravatura, a proibição - salvo em casos excepcionais como a legitima defesa - do uso ou da ameaça do uso da força no relacionamento entre os Estados, a consagração do direito à autodeterminação dos povos colonizados, a protecção internacional dos direitos humanos, a defesa dos direitos das minorias, a formação do conceito de crimes contra a humanidade, o estabelecimento de uma jurisdição penal internacional.
   
Estes e outros constituem progressos sensíveis do direito internacional, cujo primado constitui um poderoso elemento de estabilidade, de paz e de progresso, pese embora o facto de que o seu carácter essencialmente consuetudinário e a limitação dos meios coercivos ao seu dispôr envolverem o risco de o ilícito cometido se converter em lícito.
   
Celebrámos, há pouco, o quinquagésimo aniversário da assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que traduzia uma imensa aspiração à paz, à liberdade e à justiça, um combate que está longe de ter terminado como estão igualmente longe de terem sido satisfeitas esperanças relativas à soberania permanente dos povos sobre os seus recursos naturais ou o direito ao desenvolvimento.
   
No quadro de uma nova ordem internacional que ainda se busca a si própria, novos riscos, novos perigos têm surgido.
   
Deixaria aqui três questões que, julgo, merecerem reflexão:
   
Primeira: a construção de um mundo global é uma realidade do nosso tempo e como tal tem de ser assumida; mas não podemos ignorar nem permitir que, à sombra da globalização dos mercados, os fluxos económicos financeiros se desenvolvam sem um conjunto de regras claras e possam pôr em causa os valores da democracia e do progresso, ameaçar a estabilidade de vários países e cavar mais fundo o fosso que separa os ricos dos pobres.
   
Segunda questão: o desaparecimento de um Mundo Bipolar não constitui, por si, uma garantia de progresso, de estabilidade e de paz acrescidos para a Humanidade. Assistimos a uma multiplicação de fenómenos de fragmentação, à ressurgência de movimentos étnicos, patentes, em toda a sua extensão, na tragédia jugoslava. Embora o fim da divisão da Europa tivesse tornado possível que as principais potências regionais recuperassem a sua autonomia internacional, o que é facto é que a Europa continua com dificuldades sérias para se exprimir, com uma só voz, na cena mundial, por forma a contribuir para a consolidação dos novos equilibrios indispensáveis à estabilidade global.
   
Este ponto prende-se com a terceira questão que gostaria de referir: o papel das Nações Unidas no novo contexto e nos novos equilibrios internacionais. Creio que as Nações Unidas continuam a ter um papel insubstituível no reforço da paz e da estabilidade internacionais. Para tal, deverão adaptar-se às novas exigências e aos novos desafios, democratizar o seu quadro institucional e funcional, revitalizar a sua acção. Mas tenho para mim que as Nações Unidas só poderão exercer cabalmente o seu papel se mantiverem o seu monopólio tendencial do uso da força internacional e se conseguirem continuar a ser um quadro em que todos os seus membros se reconheçam, respeitando os princípios, os valores e os objectivos da sua Carta e os ditames do Direito Internacional, de uma forma transparente equitativa.
   
A estabilidade internacional e a paz requerem o respeito escrupuloso pela legalidade internacional e pelas competências próprias das instâncias internacionais.
   
O desenvolvimento crescente do Direito Internacional, nas suas múltiplas vertentes e especializações, é um elemento indispensável para garantir as condições essenciais da paz e do progresso.
   
Daí a importância deste colóquio.