Discurso do Presidente da República por ocasião da sessão de encerramento do XIII Congresso da Associação Nacional de Municípios Portugueses

Lisboa
13 de Abril de 2002


Este Congresso decorre num momento particular. Realizaram-se eleições municipais há pouco tempo. Muitos dos participantes, assumiram pela primeira vez a as mais elevadas responsabilidades autárquicas. Procedeu-se aqui a uma renovação do programa e dos órgãos da Associação Nacional de Municípios Portugueses. Criou-se, naturalmente, uma justificada expectativa sobre a acção futura dos municípios e, em geral, das autarquias.

A concretização dessas expectativas, segundo depreendo dos vossos debates, implicará um impulso descentralizador na Administração Pública portuguesa e um reforço da autonomia municipal. Identificando-me genericamente com estes propósitos, permitam-me que partilhe convosco algumas convicções suscitadas pela experiência própria, pessoalmente vivida, e pela reflexão sobre a experiência de outros. Como amigo e antigo membro da “família”, são-me certamente permitidas liberdades e sinceridades várias.


Precisamos de retomar uma dinâmica política descentralizadora

A descentralização – de que as autarquias locais são uma singular expressão – constituiu, no nosso País, um factor, quer de desenvolvimento e de coesão nacional, quer de estabilização da democracia.

Os municípios deram passos de relevo para fazermos um Portugal moderno, ao construírem as infra-estruturas indispensáveis a uma razoável qualidade de vida e ao darem atenção, embora mais timidamente, aos campos educativo, social e cultural. Os autarcas portugueses souberam desenvolver interessantes e diversificadas fórmulas de cooperação entre os partidos políticos. O poder local soube gerar consensos políticos entre os portugueses, independentemente de idades, crenças, posição partidária, estatuto social ou região de habitação.

Persiste, no entanto, uma forte desigualdade entre o Estado central e os municípios, tanto em recursos como em competências. O ponto de partida dessa desigualdade era um abismo que tem vindo a ser diminuído, há que reconhecê-lo, sobretudo na ultima década.

O principal factor de estrangulamento da descentralização residirá, porém, no facto de, mesmo à escala local, muitas competências estratégicas pertencerem a decisões directamente dependentes do Estado central e dos seus diversos organismos. E, neste ponto, há que reconhecê-lo também, a evolução recente tem sido menos positiva.

Qual é então para mim o problema? É este: não dispomos de qualquer tipo de organização político-administrativa intermédia, de nível regional ou supramunicipal, que desse maior coerência local aos investimentos sectoriais do Estado.

Dirão alguns que o “não às regiões” esteve na origem do abandono dessa via. Já tive ocasião de abordar por diversas vezes o tema, exprimindo a ideia de que o debate realizado a propósito do referendo sobre a criação de regiões administrativas produziu um amplo acervo de opiniões concordantes com a descentralização e de que a recusa do modelo das autarquias regionais não devia servir de alibi para bloquear outras modalidades de descentralização.

Quero, pois, reafirmar que considero oportuno e vantajoso retomar uma dinâmica descentralizadora, compatível com o resultado do referendo sobre a regionalização, no respeito da letra e do espírito da Constituição, sem prejuizo de condicionalismos, actauis e futuros, externos e internos.

E considero-o, em primeiro lugar, porque a descentralização se inscreve positivamente na reforma do Estado e do sistema político. A descentralização é, como se sabe, um processo que resulta da aplicação do princípio da subsidiariedade: que seja feito ao nível administrativo inferior – ao nível que está mais próximo de cada cidadão – tudo o que esse nível, tendo capacidade técnica, económica e humana para tal, melhor pode realizar.

Em segundo lugar, porque ele permite criar condições mais favoráveis para que os conjuntos socio-territoriais locais sejam capazes de gerir capazmente estratégias de valorização das suas potencialidades. Ora essa é, ninguém disso duvida, um desígnio essencial perante a crescente globalização das economias.


O papel dos municípios no retomar de uma dinâmica descentralizadora

Defendi em repto que no Porto dirigi a todos os candidatos autárquicos, em 9 de Junho do ano passado, a vantagem de um significativo reforço da colaboração intermunicipal.

Afirmei então, reportando-me ao debate eleitoral que deveria ocorrer no final do ano, que esse era um caminho para a revitalização dos municípios portugueses, num momento que todos sentimos de viragem da nossa administração municipal para metas mais ambiciosas, depois de cumprido o programa das necessidades básicas.

Mas haverá capacidade para essa ambição? – pode perguntar-se. Se não houver capacidade, repetir-se-á o esquema centralizador tradicional. Os centralistas dirão: dada a fraca capacidade técnica das autarquias, não é possível realizar transferência de competências e dos fundos correspondentes. E assim nos manteremos com um nível geral de despesa pública local que, por comparação com a média europeia, é baixo e indicia seguramente irracionalidade decisional.

A associação entre municípios possibilita a especialização de cada um e a complementaridade do conjunto. A dimensão média dos municípios portugueses só excepcionalmente permite que eles formem quadros com a capacidade científica e técnica necessária à resolução dos problemas locais. A especialização será por isso a melhor base para a preparação de quadros técnicos municipais cuja competência não peça meças aos da Administração Central, e que com ela possam discutir e colaborar em pé de igualdade.

Há quem entenda que o modelo de divisão municipal, no essencial formado há um século, está desajustado e proponha uma reformulação do âmbito geográfico das circunscrições municipais. Não acredito que uma tal revisão produzisse resultados, sobretudo com a rapidez e o consenso que a situação exige. O objectivo que perseguimos é, não o esqueçamos, mais eficácia para o escalão municipal, mais adaptabilidade da estrutura municipal às dinâmicas territoriais (que efectivamente não se confinam aos limites de cada município).

A associação livre e contratualizada dos municípios permitirá também racionalizar os modelos de gestão municipal e dos equipamentos locais. Disponibilizará o horizonte indispensável para concretizar uma política de ordenamento do território que mantenha a sustentabilidade dos recursos, sempre escassos, e a competitividade das regiões que só num quadro de complementaridade pode ser capazmente defendida.

Dir-me-ão que estão em curso, um pouco por todo o país, experiências de colaboração intermunicipal, de cariz associativo algumas, protocoladas outras em função de fundos, acesso a equipamentos ou gestão de recursos, que são fontes de inspiração preciosas. Conheço algumas. Nas minhas “peregrinações” ao longo do território nacional constatei diversos exemplos de inovadoras combinatórias, até mesmo em territórios inesperados como as regiões transfronteiriças. É preciso difundir as boas práticas, sem dúvida.

Receio, no entanto, que essas experiências não tenham ainda sido aprofundadamente observadas. Atrever-me-ia mesmo a sugerir à Associação Nacional de Municípios Portugueses que convidasse uma equipa pluridisciplinar a proceder a esse levantamento e análise crítica. Esse estudo poderia talvez servir de base à elaboração de uma Lei- Quadro da cooperação intermunicipal, que tão necessária me parece, em vista dos argumentos que vos expus.


Importa constituir estímulos fortes à institucionalização da concertação territorial”

Seja como for, o associativismo municipal, que há alguns anos era justamente apontado como um caminho promissor, não tem sido estimulado o bastante, e, no caso particular das aglomerações metropolitanas, a sua evolução tem sido em muitos aspectos decepcionante.

Algumas vozes avisadas têm apontado o dedo ao problema da legitimidade das estruturas de gestão desses conjuntos. Sem tentar iludir esse problema (e já lá irei), acredito no entanto, que há questões prévias a equacionar.

A primeira é precisamente a de que importa constituir estímulos fortes e permanentes à cooperação intermunicipal. Para que o nível de rede de municípios se consolide, é necessário que o Estado central esteja disponível para o eleger como interlocutor, para lhe atribuir competências e recursos, para nele depositar capacidade de coordenação em iniciativas estruturantes. Concomitantemente, não pode o nível intermunicipal deixar de absorver alguns dos poderes e meios que, até então, estavam distribuídos por cada um dos componentes. As Áreas Metropolitanas, por exemplo, carecem rapidamente de uma institucionalização deste tipo.

A segunda questão é a de que nas coligações institucionais formadas para valorizar os territórios, numa dinâmica descentralizadora renovada, há que prever a participação não apenas de municípios, mas de organismos da Administração tanto central como periférica e onde caibam actores privados e associativos. Quero referir-me a estruturas criadas em função de projectos, baseadas em capacidades operacionais e com estratégias e finalidades claramente delimitadas, formadas em atenção à especificidade das áreas e sectores a que se destinam e cujo potencial pretendem desenvolver.

Dou um exemplo: a estratégia de internacionalização do Porto pode fundamentar-se em projectos direccionados (caso da promoção internacional, por exemplo, do "destino Porto"), envolvendo produtos conhecidos - o Vinho do Porto e respectivos instituições interessadas, Instituto do Vinho do Porto, Associação dos Exportadores, Confraria do Vinho do Porto, o ICEP etc.) - a cidade-património (a Câmara Municipal, o IPPAR, etc.) - figuras internacionalmente conhecidas (do cinema, da arquitectura, da literatura) organizando um conjunto de eventos nos certames internacionais onde estão presentes os grandes operadores turísticos e os mercados potenciais mais interessantes.

Quanto ao problema da gestão, importa sobretudo, nesta fase, que o debate culmine numa identificação da especificidade das situações do País e que os modelos de gestão admitidos acolham igualmente uma diversidade de possibilidades.

De facto, deparamo-nos com diferentes situações no plano económico e social. Por exemplo: conurbações metropolitanas, como as de Lisboa e Porto; conurbações não metropolitanas, como os Vales do Ave, do Sousa, do Vouga; o eixo Leiria-Marinha Grande; regiões com forte potencial económico-turístico como o Algarve ou os Açores e o Douro vinhateiro; regiões em perda, demograficamente rarefeitas e envelhecidas, com uma economia rural em crise.

Cada situação específica convida a uma visão igualmente específica do espaço e recusa a visão fragmentada do território. A gestão deste "todo" não pode resultar do mero somatório da gestão individual das várias partes que o constituem, por mais eficiente que seja.

Os exemplos dos vários países permitem verificar que existem três soluções básicas de gestão (não entrando, por motivos óbvios, em linha de conta com uma quarta, a da autarquia regional). São elas: - a solução da administração não eleita, de natureza intermunicipal; - a segunda: a solução da autoridade estratégica, com ou sem presidente eleito; a terceira é a da coordenação funcional com base em rotinas de cooperação institucional selectiva, em torno de um ou vários domínios específicos (saneamento básico, ambiente, transportes e acessibilidades, projectos de valorização competitiva).

Não é líquido concluir, da análise dessa mesma experiência, a superioridade estrutural de qualquer das soluções sobre as restantes, já que se verificam casos de êxito sob figurinos diferentes. Mas podemos concluir, isso sim, que as diferentes soluções se adequam, de forma distinta, ao perfil de intervenção que se privilegia: administração, cooperação institucional ou concertação estratégica. E, sobretudo, que a ausência total de qualquer mecanismo supramunicipal de integração e concertação pode ter consequências irreparáveis em termos das condições de sustentabilidade territorial, tanto do ponto de vista ambiental como nos domínios social, económico e cívico.

Por isso, meus amigos, só há um caminho: exprimir a vontade de cooperar e encontrar, tentativamente, as modalidades de o fazer com segurança e êxito.
Não devemos nunca perder de vista que o modelo institucional é apenas uma parte da resposta. O que está em causa, num período em que os espaços locais correm riscos tanto de exclusão e fragmentação como de perda de competitividade, é transformá-los em fonte de oportunidades, de identidades, de cultura cívica e de inovação política. O que está em causa é, em suma, redescobrir a sua missão histórica.


Atenção: há uma exigência nova sobre as políticas municipais

Nos últimos anos os municípios dispuseram de recursos para financiar a expansão da sua actividade em termos expressivos. Os números são conhecidos.
Recorro a um exemplo que conheço melhor, como todos compreenderão:

Nos onze anos que mediaram entre 1990 e 2001 as receitas totais da Câmara Municipal de Lisboa, por exemplo, registaram uma taxa de crescimento média anual de 9,51%,valor bem acima da taxa de 4,85% para a inflação média anual do mesmo período. E não subdivido o período de tempo considerado, porque não quero correr o risco de ser mal interpretado. Só vos posso garantir que os números ainda seriam mais significativos...

Este crescimento, apesar do modesto pano de fundo em que se inscreve, quanto à repartição de meios financeiros entre Estado e autarquias, indica que estamos, pelo menos para um grande número de municípios, em condições de, a prazo, entrar numa nova geração de políticas municipais.

A este respeito, quero deixar aqui, com o respeito e consideração que me merece a actividade dos eleitos das autarquias e o apreço não regateado pelo altíssimo serviço que prestam ao País, uma palavra de encorajamento relativamente às políticas municipais que:

- saibam identificar e procurem responder aos novos desafios (política de atracção do investimento, gestão dos equipamentos públicos locais, ambiente, educação e formação, política de juventude e outras políticas sociais);

- recorram às políticas activas, antecipando as oportunidades através de projectos ditos de "ofensiva", ao mesmo tempo que se cuida das condições de atractividade dessas oportunidades (atrair investimento estrangeiro, por exemplo, através de coligações entre as universidades e as empresas, da infraestruturação de áreas de acolhimento, de acções promocionais, de lobing, etc.);

- que privilegiem as políticas de médio-longo prazo e de investimento na qualidade urbanística, cultivando os princípios do planeamento estratégico.

- finalmente, dêem testemunho de rigor e de disciplina orçamental – repito: de rigor e de disciplina –, princípio que há-de ser equitativamente partilhado por todas as Administrações Públicas, tanto a Central como a Local.


Quais, enfim, os desafios para os próximos 4 anos

Aqui chegado, ocorre perguntar-vos, com a simpatia que não dispensa a clareza:

Os municípios querem uma descentralização efectiva, estão dispostos a assumir novas responsabilidades, ou, pelo contrário, contentam-se com o que têm, remetendo-se eventualmente para um papel de queixosos permanentes?

Os municípios estão dispostos a colaborarem no ordenamento do território ou preferem reforçar a tendência para se tornarem autarquias no sentido etimológico da palavra – zonas autossuficientes que encaram os vizinhos como rivais a combater?

Os municípios estão dispostos a reforçar a qualificação dos seus quadros técnicos e administrativos ou continuarão a subestimar esta dimensão da sua actividade, pondo um remendo aqui e outro acolá para colmatar a tantas vezes insuficiente preparação dos seus quadros?

Os municípios estão disponíveis para enfrentar os grandes temas sociais do nosso tempo, como a exclusão, a toxicodependência, a saúde pública, a imigração, ou permanecerão indiferentes a esta problemática que ameaça a capacidade integradora da nossa sociedade?

Os municípios estão conscientes de que a formação das nossas crianças e adolescentes, sendo absolutamente crucial para o futuro do País, é um campo onde terão de assumir cada vez mais responsabilidades directas?

A resposta que todos e cada um de vós der a estas cinco perguntas condicionará decisivamente a vossa acção e terá consequências, como nunca, na capacidade de realização de Portugal e dos portugueses

Julgo saber a vossa intenção. Hoje, como no passado, os autarcas vão cooperar, descentralizar, integrar, qualificar o território e as pessoas. Se assim não for, os atingidos não serão apenas os municípios. O país inteiro ficará para trás. .

Por isso digo também que a vossa resposta começará por brotar do vosso próprio coração. Pode-se escolher a rotina, a facilidade, o conformismo ou apostar na inovação, no rigor, na imaginação.

A curto prazo, a rotina, a facilidade, o conformismo parecem mais remuneradores. Têm por eles os interesses instalados. Não beliscam nenhum lobi. Não suscitam críticas.

A médio e longo prazo, porém, a inovação combinada com o rigor e com a imaginação originam mais rendimentos. Aumentam a riqueza local. Fazem crescer a atractividade dos vossos municípios. Aumentam o bem-estar social. Fixam a população no território e asseguram-lhe uma vida com mais qualidade.

É a vós que cumpre decidir: dotar o vosso município de obras excessivas, porventura às vezes desnecessárias, construir equipamentos supérfluos, pois o município ao lado já os tem, alcatroar Portugal do Minho ou Algarve ou, pelo contrário, lançar uma urbanização que valorize os terrenos ao serviço das pessoas, que colabore com os vossos vizinhos para criar pólos locais de excelência, apostar em equipamentos intermunicipais de qualidade, em suma fazer obra sem esquecer a formação das pessoas?

A vossa ambição será incontornavelmente decisiva também para a acção do poder central. Se se refugiarem na rotina, como podem esperar que o Governo – que qualquer governo – vos apoie? Se souberem inovar, apresentar propostas inovadoras e rigorosas, podem estar certos que obterão uma reacção do Governo – de qualquer Governo - favorável ao interesse dos vossos municípios.

Tenho a certeza que escolherão o caminho da inovação. Muitos de vós são novos no cargo e esta novidade sugere uma outra, mais geral, no desempenho da própria função. Outros, dispõem de uma rica e qualificada experiência que deverá sere valorizada.

E, daqui a quatro anos, cá estaremos para apreciarmos a vossa obra e medirmos o bem-estar que a vossa acção derramou sobre os vossos munícipes.


Senhoras e Senhores Presidentes

A Associação Nacional dos Municípios Portugueses impôs-se no panorama político e institucional português de forma relevante e prestigiada. É uma voz avisada e pertinente, um parceiro activo e responsável, um impulsionador autónomo das mudanças positivas da sociedade e da administração.

Para a consolidação deste lugar que impõe a Associação à geral consideração do País muito contribuíu a equipa dirigente que na ultima década tem tido como Presidente o Sr. Engº Mário de Almeida. Permitam-me que lhe enderece neste momento uma palavra de agradecimento, em nome da República, e lhe testemunhe o meu apreço pelas suas qualidades humanas, de cidadão, de autarca, de líder coordenador dos autarcas portugueses.

Quero também dirigir uma palavra de saudação à nova equipa dirigente, eleita neste Congresso, de que destaco a figura do Presidente. Conheço de há muito o Dr. Fernando Ruas, com a determinação e inteligência de que tem dado mostras. É um autarca experimentado e prestigiado que dará continuidade à acção da Associação Nacional dos Municípios Portugueses.

Enfim, uma saudação amiga a todos os autarcas, Presidentes de Câmara e Presidentes de Assembleias Municipais, aqui presentes e os fraternos votos de sucesso na vossa acção. Uma saudação igualmente fraterna aos autarcas dos países de expressão portuguesa que com a sua presença ajudam a reforçar os laços de solidariedade e cooperação entre os respectivos países.

Vivam os municípios portugueses!
Viva Portugal!