Discurso do Presidente da República por ocasião da I Semana do Advogado

Fortaleza de Peniche
14 de Maio de 2002


A I Semana do Advogado, quando a sua Ordem comemora 75 anos, e a Justiça se vê confrontada com os desafios da modernidade, deve constituir um momento exemplar de acção e de projecto, fortalecidos por uma longa memória de serviço público e de continuada luta cívica, que é justo reconhecer no aniversário que passa.

E digo acção e projecto, porque, na Justiça, com o actual estado de funcionamento do aparelho judiciário, é manifesta a diminuição da cidadania, facto que é tanto mais surpreendente, quanto é exaustiva a consciência dos males, geral a vontade de mudança, e apreciável o consenso quanto ao essencial das vias de reforma.

Percorreu-se caminho, importa assinalar: na simplificação e racionalização de procedimentos; na maior celeridade de alguns actos processuais; na adopção de meios tecnologicamente avançados para a execução das tarefas e para a comunicação entre os operadores judiciários; nas formas de organização e de intervenção aptas a medir e a influenciar a produtividade do sistema. E, todavia, é apenas um começo.

Prosseguir, impõe que se tenha por certo, que, também aqui, não podem as reformas necessárias ficar-se pela intervenção de Governos e de Parlamentos. Exige-se, sim, que os agentes de Justiça e seus utentes, de par com todos os que têm saberes e experiências quer nas áreas do conflito social, quer na engenharia e gestão de sistemas, encontrem, de imediato, formas institucionalizadas de cooperação.

Só assim podem as reformas necessárias progredir, porque só assim terão garantia de uma indispensável participação de quem está no terreno e pode, com esse título de legitimação, contribuir para agilizar um sistema tão complexo e sensível como é a administração da Justiça.

Venho apelando neste sentido desde a abertura do ano judicial de 1997. As indicações que me chegam da vossa – e porque não nossa ? – Ordem mostram que alguém ouviu, e que a resposta ao meu apelo, se tardava, está, finalmente, a caminho. Em nome da República, bem hajam!

Seguirei, atentamente, o desenrolar da iniciativa, e não lhe faltarei com o meu estímulo. Gostaria, mesmo, de ir mais longe. Mas ao Presidente da República cabe, neste domínio, alertar e promover, e deixar aos Governos, Parlamentos e organizações da sociedade civil, a liberdade do percurso e das propostas. Com a certeza de que, quando a reflexão e a acção se transformarem em acto, não abdicará do seu poder de supremo garante dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, sem o respeito dos quais não há regular funcionamento das instituições democráticas.

Tenha-se, todavia, por certo, que toda a iniciativa de reforma quer de procedimentos, quer de sistemas, tem de ir de par com uma cultura de respeito, de rigor e de responsabilidade.

E é por isso que, nesta sede, se torna oportuno lembrar que, sem advogados, não há administração da Justiça digna desse nome.

Os advogados não podem continuar a ser tratados como os marginais do sistema de Justiça: seja pela lei, seja pelos outros agentes de Justiça, seja pelos meios de comunicação social ou por uma opinião pública, em larga medida formada por eles.

É, por certo, dirão alguns, muito mais fácil e muito mais rápido fazer chegar um processo a seu termo, se não houver intervenção de advogado. Como é mais fácil tomar e fazer cumprir decisões em ditadura do que em democracia. E, no entanto, “ser mais fácil” não é, necessariamente, na Liberdade, como na Justiça, nem o principal, nem o melhor critério.

Impõe-se, por isso, que vá ficando bem claro, nas consciências e nos actos, que é indispensável, para que Justiça seja feita, que os Juizes sejam confrontados com as posições e as provas das partes, apresentadas e produzidas por forma adequadamente contraditória; e que isto só é possível com a intervenção de advogados, que conhecem a lei e as suas exigências.

É que sem contraditório não há Justiça, mas tão só decisões de iluminados.

Os delinquentes – sejam presumíveis ou não, no tribunal da opinião pública – têm direito, por mais reprovável que seja o crime que lhe é imputado, a ter um advogado defensor. E aparentemente, todos estão de acordo com isto.

Os titulares de interesses, por maior que seja o seu conflito com outros interesses, incluindo o interesse social, têm direito a advogado que os patrocine em Juízo. Aparentemente, também aqui, toda a gente está de acordo.

Mais: na totalidade dos casos criminais, e na maioria esmagadora dos casos cíveis, a lei nem sequer permite que seja diferentemente. E só a final, quando o tribunal se pronuncie em definitivo, é que se saberá se os interesses são ou não legítimos, e se o crime foi ou não cometido, e em que circunstâncias.

Se tudo isto é assim, então os advogados não podem continuar na ser tratados, sobretudo pela lei de processo penal, com a suspeição de que quem constituiria um entrave à descoberta da verdade e um obstáculo a que se faça Justiça.

Se tudo isto é assim, então não deve a comunicação social, e não pode a opinião pública, tender a confundir o advogado com os interesses que patrocina, ou a fazer dele tão presumivelmente delinquente como o constituinte que defende. Daqui à marginalização do advogado, vai um passo. Cuidado, que o seguinte seria excluí-lo.

E porque não podem confundir-se os advogados, tanto com os interesses que patrocinam, como com os presumíveis delinquentes que defendem, não ficam eles, por esses factos, com qualquer diminuição de cidadania, que, aqui e ali, tem servido para jogos de baixa política, esses, sim, ao serviço de interesses marginais.

A justa dignificação do advogado passa, assim, pela reforma da lei e pela ética de todos os actores sociais; e passa, também, pela pedagogia das profissões.

É que se a formação do advogado deve lembrar-lhe, de modo insistente, que não é, funcionalmente, igual aos Juizes, porque, em tribunal, os Juizes estão acima, os magistrados têm de ser formados na ideia de que os advogados não são o inimigo, o estorvo que os não deixa trabalhar, ou lhes traz mais trabalho, mas constituem condição necessária, repito, condição necessária, para que sejam, com a insubstituível dignidade que isso comporta, Juizes. Juizes, e não indesejáveis iluminados.

Mas a dignificação do advogado também passa pela sua Ordem.

Sou, inteiramente, a favor de organizações profissionais fortes e ferreamente defensoras do seu estatuto e função.

Ora se a advocacia é uma profissão em que, tantas vezes, é difícil fazer a distinção entre o risco, que é próprio da opinião, e o erro profissional, tantas vezes desculpável, tem, todavia, uma ética que nada tem a ver com a opinião, nem com o erro, mas sim com a seriedade de procedimentos.

A defesa da dignidade dos advogados e da insubstituível força da sua Ordem, para lutar pelo estatuto e função que são os seus, exige rapidez e severidade na punição dos advogados que prevariquem, seja porque erraram indesculpavelmente, seja porque foram desonestos com os seus constituintes.

É a própria classe que o exige e é um indeclinável dever cívico.

Minhas senhoras e meus senhores,

A defesa da liberdade e da cidadania sempre encontraram nos advogados combatentes da primeira linha.

Hoje a liberdade e cidadania também dependem de um sistema de Justiça que funcione e seja visto com tal.

Saibam os advogados portugueses e a sua Ordem, pioneiros na resposta ao apelo de congregação de esforços que fiz, vai para seis anos, saibam, dizia, dinamizar inteligências e vontades, para que, com a participação de todos, se enriqueça e consolide a cidadania da Justiça que a República insistentemente reclama e, por essa via, continue a construção da Liberdade e do Direito, que é a razão de ser do advogado.