Economia e Finanças Públicas


14 de Janeiro de 2004


Senhores Deputados,

Os últimos anos têm sido dominados, do ponto de vista do Orçamento do Estado, pelo debate em torno do défice público. A persistência desse debate, que atravessa vários governos, demonstra que a eficácia das medidas que têm sido tomadas é insuficiente para debelar o problema com que o País se confronta. Mas, pior do que isso, é prova de que um conjunto de problemas estruturais das finanças públicas portuguesas continua por resolver.

Uma análise serena e rigorosa desta realidade não pode deixar de confrontar o País, os seus governantes, os partidos políticos e os parceiros sociais com a necessidade de procurar um programa de trabalho e uma metodologia de intervenção que inverta algumas tendências instaladas.

A situação de desequilíbrio estrutural das finanças públicas, sendo reconhecidamente grave, coloca ao regime democrático um dos seus mais difíceis desafios. Enquanto responsáveis – que somos todos – pelo futuro do País, teremos de saber responder-lhe. Para tanto, há que mobilizar as competências e os conhecimentos disponíveis, trazendo-as para um debate sério e aprofundado sobre os problemas de fundo da economia e sociedade portuguesas.

Nesse debate reflectir-se-ão, naturalmente, posicionamentos político-ideológicos distintos. Para que ele ganhe elevação e encontre eco efectivo na opinião pública, importa, todavia, evitar que o confronto de pontos de vista, tão importante para esclarecer as complexas dimensões dos problemas, acabe por se esgotar num conjunto de recriminações recíprocas ou de picardias inúteis.

O desequilíbrio estrutural das finanças públicas portuguesas tem de ser corrigido, de forma gradual e sustentada, não só por motivos de ordem externa, que quase têm monopolizado a discussão sobre o tema, mas também, e sobretudo, por razões de ordem interna.

Entre estas, há que referir, desde logo, a necessidade de aumentar a margem de manobra da política de estabilização macroeconómica, sem o que continuaremos, no futuro, a ter dificuldades em lidar com conjunturas económicas nacionais e internacionais desfavoráveis.

Numa fase de crescente interdependência concorrencial dos mercados, que multiplica oportunidades de crescimento, mas que, por ausência de mecanismos de regulação supranacional justos e eficazes, também intensifica riscos e expõe as economias abertas mais vulneráveis a crises imprevistas, assumir o objectivo de rigor orçamental deve, por isso, ser muito mais do que uma intenção política conjuntural – impõe-se que seja uma orientação estratégica, quase diria uma atitude, incorporada por princípio e como princípio nas práticas da governação.

Mas a solidez das finanças públicas justifica-se ainda pela necessidade de dar continuidade e coerência à construção de um sistema de protecção social capaz de atenuar grandes vulnerabilidades e riscos de exclusão em amplas camadas da sociedade portuguesa. Sem querer entrar em detalhes, sempre referirei, a este propósito, todo o conjunto de novas exigências de protecção social decorrentes do envelhecimento, cada vez mais evidente, da população portuguesa. Não se trata apenas, neste caso, de garantir a sustentabilidade financeira do sistema de pensões. Trata-se também de preparar o sistema de saúde para enfrentar novos e complexos problemas na prestação de serviços aos mais idosos, assim como prover equipamentos e qualificações profissionais adequadas para apoiar com sentido humanitário uma população física e psicologicamente fragilizada e potencialmente muito desprotegida.

Reflectir sobre a situação orçamental portuguesa conduz quase inevitavelmente a aludir à recente decisão do Conselho ECOFIN de rejeitar as recomendações da Comissão Europeia relativamente ao incumprimento do pacto de Estabilidade e Crescimento por parte da França e da Alemanha.

Defendi, há mais de um ano, a necessidade de uma adequada revisão do Pacto, justamente para evitar situações como a que foi agora criada. Referiria hoje e apenas que, em termos internos, o tratamento agora conferido àqueles dois países pode tornar menos necessário recorrer a medidas orçamentais extraordinárias; e que, por outro lado, a União Económica e Monetária precisa de reforçar a coordenação das políticas económicas dos seus Estados-membros, designadamente as políticas orçamentais nacionais, o que também implica, entre outros aspectos, a necessidade de um continuado rigor e disciplina orçamentais.


Senhores Deputados:

Promulguei, recentemente, legislação com incidência orçamental, incluindo a Lei e o Decreto-Lei que autorizam o Governo a ceder créditos do Estado e da Segurança Social para efeitos de titularização.

Ninguém espera, naturalmente, que medidas de contenção da despesa corrente de natureza transitória e receitas extraordinárias que, por definição, não podem ser recorrentes possam apoiar uma consolidação orçamental duradoura e consequente. Não se deve confundir despesa reprimida com despesa controlada, nem receita regular com receita irrepetível.

O Presidente da República compreende que, uma vez estipulada uma meta quantitativa rígida para o défice do Orçamento de Estado, se tenha tornado necessário recorrer àquele tipo de medidas. Mas não pode deixar de tornar claro que uma consolidação orçamental comprometida com o futuro do País, com desígnios básicos de justiça social e com o bem estar das gerações vindouras requer, essencialmente, medidas de política sustentáveis e fundamentadas em termos estratégicos. Como também requer, seguramente, um orçamento de base plurianual, coerentemente articulado com a evolução previsível da economia a médio prazo, tendo em vista a gestão e o equilíbrio do orçamento ao longo do ciclo económico.

Para baixar efectivamente o défice público, sacrificando o menos possível despesas sociais indispensáveis e os investimentos públicos produtivos necessários ao desenvolvimento do País, impõe-se eliminar despesas supérfluas e racionalizar as restantes em todas as Administrações Públicas e, em simultâneo, combater a fraude e a evasão fiscais.

A contenção da despesa pública – primeiro vector do processo de consolidação orçamental – não deve ser efectuada através de cortes, sem sentido estruturante, mas sim através de uma gestão criteriosa das despesas correntes e de investimento que permita racionalizar serviços e seleccionar projectos, evitando, tanto quanto possível, que, no movimento de controle da despesa, se sacrifiquem critérios elementares de justiça social ou se tomem medidas penalizadoras da própria qualidade da Administração Pública.

Quanto ao aumento da eficiência fiscal – o outro vector de uma genuína consolidação orçamental -, impõe-se reforçar (e faço questão de dizer que esse reforço é inadiável) a Administração Fiscal, de forma a combater eficazmente a fraude e a fuga ao fisco. Pôr fim à actual situação de perda continuada de receitas é um imperativo básico de racionalidade económica e de equidade social. Não é aceitável pactuar com o agravamento da carga fiscal sobre os contribuintes cumpridores; não é aceitável continuar a permitir uma distorção ostensiva das regras da concorrência leal. É preciso pôr fim a um quadro de incumprimento fiscal tão flagrantemente injusto e arbitrário que acaba por corroer predisposições cívicas e laços elementares de co-responsabilização e confiança recíproca, sem os quais nenhuma sociedade é capaz de se mobilizar e desenvolver.


Senhores Deputados:

Já disse que não dissocio o desígnio de consolidação orçamental da necessidade de manutenção de responsabilidades por parte do Estado, quer na área da protecção social, quer em termos de investimento público.

Dei, como exemplo do primeiro tipo de intervenção, a exigência de reforço da contribuição financeira do Estado em matéria de protecção das gerações mais velhas. Convém, no entanto, não ignorar que, numa sociedade como a portuguesa, que arrancou tão tarde para a organização de serviços de bem estar, continuamos a ter, noutros domínios, prestações e serviços de protecção social insuficientemente dotados.

As comparações estatísticas de âmbito europeu continuam a revelar, nesta matéria, atrasos significativos do País relativamente aos valores médios da União Europeia. Mas também indicam que alguma convergência entretanto alcançada em termos de esforço financeiro do Estado tem produzido efeitos positivos.

A diminuição da incidência da pobreza, sobretudo da pobreza extrema, resultante de medidas de apoio e integração social desenhadas a partir da segunda metade da década de noventa, é um elemento informativo objectivo sobre que vale a pena meditar, já que nos põe perante um exemplo de como uma intervenção do Estado pode contribuir para melhorar os níveis de coesão social no País.

Ora, há outros sectores onde, em nome de exigências de solidariedade mínimas, essa intervenção faz todo o sentido: na atenuação dos efeitos da doença, da incapacitação física, da deficiência, do desemprego, entre outros. Assim sendo, não pode o Orçamento do Estado deixar de reflectir, com suficiente clareza, este tipo de preocupações.

Mas as responsabilidades do Estado nas sociedades contemporâneas vão muito para além do domínio da protecção social, estendendo-se a importantes funções de regulação e de sustentação estratégica da economia.

Bastará pensar, quanto às primeiras, nas responsabilidades inerentes à protecção ambiental ou à reconversão de empresas, sectores produtivos, qualificações profissionais e mesmo territórios ameaçados pela hipercompetitividade internacional, para se perceber quão decisiva pode ser a intervenção reguladora do Estado no tecido económico nacional.

Se tivermos em conta, por outro lado, as necessidades de investimento em infra-estruturas básicas, na criação de condições de sustentabilidade das actividades de investigação científica viradas para a inovação tecnológica e organizacional, na ultrapassagem de assimetrias regionais de desenvolvimento repetidamente diagnosticadas, na formação escolar de nível secundário e superior, no combate ao insucesso e à saída prematura de tantos jovens do sistema de ensino básico, na formação contínua dos activos, sejam eles simples assalariados, quadros, dirigentes ou empresários – se tivermos em conta todos estes domínios em torno dos quais se concentram, reconhecidamente, graves bloqueamentos ao desenvolvimento e fontes persistentes de desigualdades, pobreza e exclusão, então fica à vista quão arriscado será, em Portugal, fazer recuar o Estado na vida económica e social. É bom não esquecer, aliás, que, mesmo em Países com limitações incomparavelmente menores do que as nossas, continua a ser o Estado a garantir os grandes aperfeiçoamentos nas áreas indicadas.


Senhores Deputados:

A Resolução sobre a Revisão do Programa de Estabilidade e Crescimento 2003-2006, aprovada por larga maioria pela Assembleia da República em 9 de Janeiro de 2003, foi o primeiro passo para um entendimento e cooperação na área das finanças públicas. Incentivei esse passo, por entender que ele era imprescindível para iniciar o difícil caminho do equilíbrio orçamental.

Infelizmente, o acordo que suportou a Resolução não teve a continuidade desejada e o Programa de Orientação da Despesa Pública, apresentado pelo Governo e discutido pela Assembleia da República em Maio último, não consubstanciou o início de um processo orçamental plurianual, conforme a finalidade e nos termos que se supunha serem os admitidos no acordo subjacente à referida resolução de Janeiro.

Respeitou apenas a letra da Lei de Enquadramento e Estabilidade Orçamental, mas não lançou os instrumentos de concretização necessários.

Julgo que a referida Resolução da Assembleia da República mantém plena validade como base de trabalho para a solução dos problemas das finanças públicas, já que estabelece princípios e orientações largamente aceites e teve o acordo de uma larguíssima maioria parlamentar, onde estão incluídos os dois maiores partidos nacionais.

Um dos objectivos da Mensagem que, nos termos constitucionais, dirijo a este Órgão de Soberania é o de deixar claro o meu apelo a que se retome esse processo, já que, sem ele, dificilmente poderemos chegar, em tempo útil e sem custos sociais muito gravosos, ao equilíbrio correcto e sólido das finanças públicas.

Estou certo de que este é um bom caminho.

As recriminações partidárias recíprocas sobre a gestão orçamental passada e presente, para além de gerarem falta de confiança e expectativas negativas que em nada ajudam a economia e as empresas, contribuem para deteriorar o ambiente propício à discussão dos problemas de fundo da economia portuguesa e para reduzir as possibilidades de concertação e de algum entendimento entre forças políticas quanto às medidas apropriadas e quanto à sua durabilidade para além dos ciclos eleitorais. Sem uma tal concertação, não será fácil encontrar solução para alguns problemas importantes.

Como já disse, também me parece conveniente repensar e reformular o processo de elaboração e de controlo do orçamento, por forma a que a política e a gestão orçamental sirvam melhor os objectivos do crescimento e da estabilidade macroeconómica.

Assim, o Orçamento do Estado deveria ter uma base plurianual e ser elaborado, discutido e aprovado em duas fases. A primeira, na Primavera, ocupar-se-ia do cenário macroeconómico, da orientação da política económica, em geral, e da orçamental, em particular, e da evolução dos grandes agregados da receita e da despesa públicas. A segunda, no Outono, encarregar-se-ia do orçamento anual detalhado, em conformidade com o enquadramento plurianual antes aprovado.

A estruturação do Orçamento do Estado por programas, na linha já iniciada e exigida pela Lei de Enquadramento e Esatabilidade Orçamental, também permitiria uma melhor apreciação da articulação entre os objectivos e missões a desempenhar pelo Estado e fundos que lhe são afectos e, portanto, da própria qualidade da despesa pública.

A orçamentação por programas e a planificação orçamental a médio prazo são instrumentos essenciais para a racionalização das despesas públicas e da estrutura fiscal em função dos objectivos a atingir, sejam eles as metas para o saldo orçamental ao longo do ciclo económico, ou as finalidades últimas da política económica e social.
Procedendo do modo indicado, seria possível dispor de um quadro mais informativo e coerente de política económica a médio prazo, o que, por um lado, facilitaria a informação e a tomada de decisões por parte dos agentes económicos e, por outro lado, dificultaria junto dos responsáveis pela política económica uma gestão orçamental pró-cíclica, com medidas expansionistas em conjunturas favoráveis e medidas restritivas em conjunturas desfavoráveis.

Senhores Deputados:

Tenho razões para acreditar nas virtualidades da economia portuguesa e na capacidade empreendedora dos meus concidadãos. Continuo, por isso, a olhar para o futuro com optimismo. Procuro conhecer o País o melhor possível, não escondendo aos portugueses a avaliação que faço dos problemas existentes, nem a opinião que formei para a sua solução.

Mas fiz sempre questão, também, de assinalar, valorizar e dar voz ao que de muito bom se faz em Portugal, não sem reconhecer ainda as excelentes capacidades já instaladas nos mais diversos domínios. Faço-o com convicção, por reconhecer que dispomos de reais capacidades para enfrentar o futuro. Faço-o porque acredito que importa dar aos portugueses confiança no nosso futuro colectivo. Faço-o ainda porque existem efectivamente, hoje, condições para assegurar aos portugueses e às gerações vindouras melhores condições de vida.

A recuperação e a modernização da economia portuguesa requerem algumas mudanças difíceis, designadamente na área da administração e das finanças públicas, que podem e devem fazer-se com o mínimo de custos económicos e sociais. Penso que a revisão e a alteração do processo orçamental com a finalidade e o sentido atrás expostos e a integração da política de consolidação orçamental numa estratégia que privilegie a qualidade da despesa pública de funcionamento e de investimento e promova a eficiência fiscal pode contribuir significativamente para uma economia mais competitiva e uma sociedade mais desenvolvida e solidária.

É esta a minha convicção que, com esta mensagem quero transmitir a Vossas Excelências.