A "RESIDÊNCIA PARA O CHEFE DE ESTADO"
- UMA OBRA DE LUÍS BENAVENTE

 
 

UMA INTRODUÇÃO

Realizada nos anos de 1951-52, especificamente para a instalação do novo presidente, Craveiro Lopes, a profunda remodelação do chamado "corpo da Arrábida" (a ala poente do Palácio Nacional de Belém) foi uma obra cuidada de reinvenção do espaço interior, entre a procura do conforto moderno e a revivescência de um ambiente classicizante,

Tal atitude projectual, que o arquitecto Luís Benavente levou a um extremo rigor de pormenor construtivo e decorativo, era então corrente nas obras públicas de restauro e recuperação de monumentos - no quadro das quais esta se insere.

Hoje discutível, como método ou critério - e até como linguagem - a verdade é que o trabalho realizado permanece quase intacto no seu conjunto, sendo testemunho de e relevando quer a segurança quer a qualidade da obra quer um " sentido clássico" que lhe deu perenidade e sentido longo para além das conjunturas e acidentes da história.

Mais de 40 anos passados, exige-se agora (quanto a nós), no que é ainda a residência oficial do Presidente da República, apenas urna obra (algo aprofundada) de manutenção do existente - que é irrepetível e de grande qualidade material, como se disse - evitando cair na "modernização" infundada, ou na alteração inconsistente.

É sobre o processo da obra dos anos 50, seu contexto e características, que este artigo se debruça, em visão explicativa mas sucinta.

 
 

ALGUNS ANTECEDENTES
 

A base da investigação para esta análise foi fundamentalmente o legado constituído pelo espólio profissional do arquitecto Luís Benavente (doação da Sra. D. Alice Benavente aos Arquivos Nacionais da Torre do Tombo em 1995, em fase de estudo e inventariação) - e os arquivos próprios da direcção-geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, onde aquele arquitecto trabalhou largos anos. A documentação assenta sobretudo em memórias descritivas pelo autor, além de desenhos de levantamento e projecto, geral e de pormenorização,

Há em primeiro lugar que inserir brevemente o "corpo da Arrábida" no conjunto edificado - pois este constitui uma estrutura mais ampla, datada do século XVI, mas sucessivamente alterada, demolida em parte e ampliada até ao século XX.

Pela documentação(gráfica e escrita) existente, parece de inferir que o primitivo "palácio de Belém", que D. Manuel de Portugal iniciou em 1559 de desenho provavelmente maneirista, se terá articulado com a pré-existente arquitectura dos monges Arrábidos que aparentava uma expressão medievo-renascentista, consistindo numa série de volumes "monásticos e claustrais", perpendiculares ao rio, sucessivamente torneados1 .

Esta seria uma apologia aliás muito próxima da que D. Manuel e D. João III foram definindo pela mesma época no Palácio Real da Ribeira - culminando num ;"torreão forte", a sul do conjunto.

Na hipótese, teria sido pois este o núcleo inicial do Palácio coincidindo sensivelmente com o actual corpo da Arrábida - só de seguida prolongado pelas alas paralelas ao rio, que hoje constituem a sua imagem dominante.

A Sala das Bicas, com o escadório duplo virado a poente (inicialmente exterior), e a sua serliana-pórtico ao gosto clássico, parece ter sido o espaço de articulação e "rótula" entre corpo poente e corpo sul do palácio.

Seguiram-se muitas e distintamente orientadas obras, com relevo (em relação à área que nos ocupa aqui) para o engrandecimento dos terraços e jardins ocidentais - indissociáveis dos volumes construídos, e nos quais as duas plataformas, do Pátio dos Bichos e do jardim da Cascata, jogam papel definidor de novas escalas, privacidades e usos. Igualmente o jardim da Arrábida, do lado nascente do corpo da Arrábida, manteve um sentido "claustral" ainda hoje patente (apesar da piscina que substituiu abusivamente o tanque central).

Depois do terramoto de 1755, a reconstrução/consolidação parcial do Palácio de Belém parece ter "fixado" no essencial a forma geral do conjunto, como hoje o encontramos. Alterações como o novo piso executado para atelier do então Príncipe D. Carlos (por 1886-87, sobre o lado extremo norte do corpo da Arrábida), ou a do anexo nascente (por Rosendo Carvalheira, em 1902-03), do lado oposto, apenas densificaram o conjunto, dentro da mesma ou ,aproximada implantação, Depois da curta estada de D. Carlos e D. Amélia, parece ter sido pouco utilizada como residência, até se chegar aos meados do século XX.

A completa e minuciosa planta-corte de fins do século XVIII (depois de 1784, uma vez que representa já o jardim da Cascata), do Arquivo Histórico do Ministério das Finanças2 , possui rigor suficiente para se inferirem diversas noções, no que respeita ao corpo da Arrábida:

a) a Sala das Bicas, interiorizada, permanecia como espaço de articulação entre lado sul e poente do Palácio - e, no seu plano inferior, ligada pelo famoso túnel com o lado nascente do palácio, ao longo de toda a plataforma sob o terraço sul;

b) os três volumes torneados (hoje correspondente a "sala", "jantar" e "copa"), com coberturas autónomas de 3/4 águas, donde parte a ala poente para norte - e que por hipótese serão os vestígios dominantes da construção inicial - permaneciam sensivelmente como hoje, ligando a escada de acesso à Sala das Bicas com os quartos do lado norte;

c) finalmente, as quatro salas a norte dos "três torreões" não estavam ainda ligadas por corredor interno - dando directamente para o jardim da Arrábida, onde se encontrava o tanque; e o corpo do braço norte desta ala ainda possuía um grande salão central, possivelmente absorvido no novo piso, aquando da construção do atelier de D. Carlos.

A planta de conjunto pelo Capitão Engenheiro J. A. de Abreu, de 1845 (existente quer no legado Luís Benavente, quer na obra que consultámos3 ) não introduz novidade em relação ao atrás dito. já a "Planta do Real Palácio de Belém", à escala 1/200, de 19034 , confirma a presença do novo corredor na ala das quatro salas, bem como a obra de ampliação para o "atelier" - visíveis na silhueta da planta.
 
 

AS OBRAS COM PROJECTO DE LUIS BENAVENTE
 

Através da leitura dos levantamentos e projectos do espólio de Luís Benavente, datados de 1951-2, é possível compreender um pouco do contexto da época, da situação do edifico e dos objectivos para que foi pensada e executada.

Ao que se indica, o corpo da Arrábida encontrar-se-ia então em situação decrépita, por falta de manutenção e uso adequado. Nela teria funcionado a "Antiga Residência do Secretário Geral" .

Os objectivos da nova obra, bem expressos na memória descritiva do "Projecto para Residência do Chefe do Estado", por Luís Benavente , referem "... uma beneficiarão geral do aspecto interno, de forma a torná-lo compatível e à altura do Alto Magistrado da Nação que o vai habitar, substituindo assim o baixo nível do seu aspecto actual.".

Mais tarde, e noutro texto de Luís Benavente, o autor seria bem explícito quanto ao "sentido de missão" que atribuiria a esta encomenda, bem como quanto à relativa velocidade com que a mesma foi executada. Igualmente é patente a sua preocupação de integração da obra nova no conjunto edificado: "É novamente chamado. Desta vez para estudar rapidamente e realizar com urgência a reabilitação de uma parte do Palácio de Belém, o chamado corpo da Arrábida, anterior mesmo à existência do próprio Palácio, residência de franciscanos arrábidos, donde lhe veio o nome. Abandonado e arruinado desde o princípio do século, destina-se após o arranjo, a residência do Chefe do Estado.

Adapta, reconstrói, decora e mobila, ficando esta parte integrada na expressão e valor, de acordo com o restante conjunto do Palácio. 1952".

Em conversa com a Sra. D. Alice Benavente, viúva do arquitecto, ficou-nos a impressão de que foi uma obra feita com profissionalismo e empenhamento, mas sem um entusiasmo e uma simpatia total estabelecido entre o autor e o "cliente", Craveiro Lopes - o que se adivinhada pelas diferentes formações de ambos, mas sobretudo, de posturas perante a vida.

Obra essencialmente "de interiores", elaborada e muito completa (o projecto de pormenorizarão inclui dezenas de desenhos), nela Luís Benavente, usufruindo por certo de uma boa equipa de artífices e operários, aplicou por certo a sua experiência das obras no Palácio Foz (1947), mas também a das mais recentes que executara em Londres (adaptação de uma residência georgiana a Embaixada de Portugal, 1947-48) e em Roma (na Basílica de Santo Eugénio, Vaticano, 1948-51).

Estruturalmente a obra não alterou muitos elementos: apenas algumas paredes resistentes foram eliminadas (para abrir salas maiores nos compartimentos de "jantar" e no "átrio"), e foi totalmente reconstruída a escada principal.

O trabalho de inclusão e de vinculação das diversas artes tradicionais aplicadas é talvez o mais notável da obra. Este aspecto ressalta mais numa visita ao edifício do que pela simples observação dos desenhos: desde a escadaria nobre, em degraus de cantaria e guarda de ferro, até aos tectos estucados e pintados, passando pelos elementos de madeira (guarnições, portas, portadas, canelas), ferragens, elementos de iluminação, revestimentos a azulejo tradicional e mobiliário - em tudo se aplicou um sentido de ambiente classicizante, com resultado discreto e suave,

É agora altura de descrever sequencialmente os elementos e espaços construtivos da obra, seguindo os diferentes pisos que a constituem:

1º pavimento (parcialmente sob o jardim da Cascata), ao nível do Pátio dos Bichos. Aqui o autor aproveita as antigas "celas dos bichos" (antigas jaulas de animais, segundo a tradição), para estabelecer as ligações do corpo da Arrábida com o exterior: uma, à escada para o átrio principal; e outra, à escada de serviço para a cozinha. Manteve a ligação ao "túnel" para o restante palácio. Utiliza também alguns destes espaços "celulares" para portaria;

2º pavimento: é o piso principal de serviços. Neste nível a escada principal acede ao vestíbulo de ligação à Sala das Bicas (e por ela, à área mais oficial e pública do palácio) e à nova escadaria nobre. A outra escada, secundária, liga à área de despensa e de serviços de apoio (quartos de criadas, etc.), com a vasta cozinha continuando depois para a copa, esta já no 3º pavimento;

3º pavimento: é entendido como o verdadeiro "andar nobre" (mas também íntimo) da habitação, e podemos dividi-lo em três partes principais - no de sentido sul-norte, a área constituída pela sequência das salas principais, exteriormente torreadas: novo átrio (com vestiário), separado do hall por passagem ladeada por colunas de pedra; sala de estar; sala de jantar (verdadeiro "centro" da residência, com grande envidraçado para o Pátio dos Bichos) e copa anexa. A elas se acede pela reconstruída escadaria nobre.

Um segundo conjunto, constituído pela sequência "escritório saleta-quarto-vestir", sendo estas quatro salas ligadas por corredor e fronteiras ao jardim da Arrábida; e um terceiro conjunto, no corpo do fundo, de sentido poente-nascente, com diversas saletas e quartos, contendo também a escada de acesso ao antigo atelier de D. Carlos, onde não houve intervenção.

A recuperação do jardim foi também um cuidado de Luís Benavente, que para tal executou um rebaixamento do nível do piso, bem como Lima replantação de buxo para reintegração dos elementos vegetais no desenho tradicional do jardim, desenvolvido à volta do tanque ou "lago" cujas cantarias foram "...limpas apenas à escova, para não lhe tirar a patine".  

UMA CONCLUSÃO

Ressalta o valor estético e ambientam desta obra, estendível mais como opção de "reinteuraçào" e de inserção numa arquitectura mais global à luz dos conceitos da época, do que corno intenção revivalista em termos de atitude conceptual,

Ressalta igualmente o valor material da obra, resistente ao "teste do tempo", passados que são quarenta e quatro anos, pela sua qualidade intrínseca; e deve ainda referir-se a importância afinal já do conjunto de interiores desta parte do Palácio de Belém - ao fim e ao cabo com uma unidade estilística que não se encontra facilmente noutras áreas do mesmo edifício.

Testemunho de urna época e da sua atitude face à resolução arquitectónica de um programa excepcional - deve quanto a nós a "Residência do Chefe do Estado" ser salvaguardada para o futuro corno (e) sinal de um tempo.
 

José Manuel Fernandes, Arquitecto