Comemorações do dia 5 de Outubro de 1910

5 de Outubro 1998

Excelências,
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
 

No passado sábado tive a oportunidade e o prazer de poder prestar homenagem ao General Humberto Delgado, repetindo a histórica viagem da sua campanha eleitoral, entre o Porto e Lisboa.

Para mim, é impossível desligar essa viagem, enquanto símbolo das eleições de 58, da razão pela qual tenho procurado dar um novo significado às comemorações nacionais.

A campanha de Humberto Delgado, feita nas difíceis condições da oposição à ditadura, foi para a minha geração, um sobressalto, um exemplo e um estímulo.

A ideia de que a nossa participação cívica conta e que pode mesmo ser decisiva para transformar a sociedade, marcou-me indelevelmente. Tal como desde então ficou claro que essa participação dependia da convicção em valores fundamentais.

As "Comemorações Nacionais", ao prestarem homenagem a feitos maiores da nossa história, devem servir para honrar a memória daqueles que tão nobremente serviram Portugal, mas também como exemplo de dedicação a valores que importa legar geração após geração.

Para que esse efeito pedagógico se transmita nas modernas sociedades é necessário ser capaz de encontrar formas imaginativas de romper com rotinas comemorativistas que por banalização perderam o seu efeito e significado.

Expus ao Sr Presidente da Assembleia da República e ao Sr. Primeiro Ministro a vantagem que haveria em procurar novos modelos que resolvessem um problema que todos nós reconhecíamos e sobre o qual tínhamos um entendimento comum.

Quero, por isso, agradecer a ambos o estímulo e o apoio que deram à tentativa de revitalização das comemorações nacionais. Tal como quero, no que ao 5 de Outubro diz respeito, agradecer ao Dr. João Soares o entusiasmo com que aderiu à ideia, e o empenho com que toda a Câmara Municipal de Lisboa colaborou desde o início. Uma palavra de particular apreço, também, às Forças Armadas e de Segurança e aos Governadores Cívis que se associaram desde o logo à iniciativa.

Excelências,

Minhas Senhoras e meus Senhores,

O dia 5 de Outubro de 1910 é a data fundadora do nosso Regime. É essa a razão porque nos reunimos hoje. Quero fazê-lo, porém, com os olhos postos no futuro. Tal como o fizeram, há 88 anos, esses homens determinados que arriscaram a sua vida em defesa de um ideal que acreditavam ser melhor para Portugal.

A República foi um regime inovador. A sua legislação foi pioneira em muitos aspectos. A República foi, também, um regime polémico que apaixonou os portugueses, como apaixonaram todos os grandes acontecimentos que marcaram uma mudança decisiva na vida nacional.

Não me compete analisar e interpretar esse período fascinante do início do século XX. Estão, felizmente, entre nós, historiadores que o fizeram de forma brilhante.

A República foi um sobressalto cívico que envolveu intensamente no quotidiano da sua vida política e social a participação dos cidadãos.

É a ideia de que a participação cívica é essencial à vida da República que entendo dever valorizar nas Comemorações Nacionais do 5 de Outubro.

É esse valor que como património importa transmitir às novas gerações que não tiveram, como tantos de nós, o estímulo da oposição à ditadura para apreender a importância política que a participação cívica tem.

Gostava, por isso, que em cada ano o formato destas comemorações fosse diverso mas centrado em torno dessa ideia comum.

Gostava que em cada ano, pudéssemos, neste dia, expôr ao país a importância que tem o esforço de cidadãos que voluntariamente se organizam, ou em torno da defesa do património das suas terras, ou em apoio à humanização das condições dos hospitais, quer em defesa das populações contra as intempéries, quer em defesa da natureza contra as tentativas da sua delapidação, seja na luta pela igualdade contra o racismo, seja no apoio aos reclusos nas prisões. É aliás a esse tipo de associações, a par de grandes vultos da cultura portuguesa, que dedicarei parte da cerimónia de condecorações de hoje.

Sem essa participação cívica a República não existe como regime político. E este dia perderá o sentido e trairá a memória daqueles que queremos honrar.

Entendi este ano dedicar as Comemorações do dia 5 de Outubro ao trabalho cívico e político realizado nas Juntas e Assembleias de Freguesia.

O seu trabalho é insubstituível para as populações. Os membros das Freguesias constituem o maior número de eleitos do país e as suas eleições mobilizam dezenas de milhares de candidatos, homens e mulheres, independentes e filiados em partidos políticos que entendem dedicar-se às comunidades em que residem.

O seu interesse e disponibilidade para a participação na vida cívica das populações é um exemplo para os jovens. O seu trabalho é tantas vezes o início de uma carreira política que ao evoluir para outros patamares de responsabilidade, pelo facto de aí terem começado, não esquecerá mais que tem de existir sempre uma relação estreita entre as verdadeiras necessidades das pessoas e a actuação dos responsáveis políticos.

Era tempo de prestar homenagem a estes homens e mulheres que fazem um trabalho notável, sem a visibilidade diária dos grandes meios de comunicação social de onde hoje, errada e equivocamente, parece depender a existência das coisas e repousar o reconhecimento da sociedade.

Em nome de todos os Órgãos de Soberania aqui presentes, muito obrigado pela vossa dedicação diária aos portugueses, à República e a Portugal.

Excelências,

Minhas Senhoras e meus Senhores,

Há uma outra razão pela qual entendi este ano chamar à atenção para a participação cívica numa componente política, como é o trabalho nas freguesias.

Olho com apreensão a ruptura crescente entre as estruturas de decisão política e a sociedade que lhes assegura a necessária e insubstituível legitimidade democrática.

Sei que este é um fenómeno comum a todas as sociedades europeias.

As grandes transformações das sociedades modernas, ocorridas nas últimas duas décadas, explicam esse fenómeno. Mas a compreensão das razões parece estar a impor-se como um anestesiante à acção política.

Há 40 anos todos nós compreendíamos por que razão o regime era ditatorial e foi por isso que quisemos lutar pela liberdade.

É preciso voltar a não ter medo e a pôr os valores e as convicções políticas como instrumentos norteadores de uma sociedade onde nem todos os compromissos são aceitáveis, onde a tolerância não pode ser sinónimo de laxismo, onde os interesses corporativos não se podem sobrepor ao interesse nacional, nem ao respeito pelas leis em vigor.

É preciso manter a determinação, mesmo quando isso represente afrontar interesses instalados, com extraordinária capacidade de utilização de meios de pressão pública sobre o poder político. Só assim se transmite segurança e sentido de justiça às sociedades.

É necessária convicção e firmeza para que as populações compreendam as opções que se nos oferecem e não pensem que existe um único caminho ditado por condicionantes externas que dispensam a sua escolha e decisão democráticas.

Olho para o futuro sempre com confiança, mas com alguma apreensão. O nosso sistema político apresenta evidentes sinais de desgaste que afectam todos os agentes políticos. Corre-se o risco de as populações perderem, em grande medida, o sentido da necessidade de participação na vida política nacional.

A abstenção eleitoral cresce. O discurso político está frequentemente desfasado da realidade que no quotidiano preocupa as pessoas. O pequeno detalhe, a pequena intriga, o episódio infrutífero ganharam o estatuto de facto relevante.

Todos nós sabemos como é que se chegou aqui. Compreendemos as razões. Conhecemos as polémicas. Os argumentos de uns e de outros. As queixas que o poder político faz da Comunicação Social. E as que a Comunicação Social faz do poder político. E uns e outros, ambos, todos têm aparentemente a sua parcela de razão. Mas isso pouco ou nada interessa ao povo português. E a parte de interesse que lhe resta traduz-se numa degradação crescente da imagem da classe política, numa desvalorização dos eleitos e do seu trabalho cívico, numa diminuição do seu estatuto.

Nenhum de nós pode assistir indiferente ao avolumar de um fosso terrível entre eleitores e eleitos.

Como Presidente da República cabe-me uma responsabilidade que não posso ignorar. É preciso tudo fazer para inverter esta tendência em Portugal.

Já toda a gente percebeu que, mundialmente, vêm aí tempos de incerteza. Nunca como hoje Portugal esteve tão bem preparado para os enfrentar. O país está, com inteira razão, confiante. A economia cresce acima da média europeia e a nossa capacidade de realização foi testada em experiências riquíssimas.

Seria gravíssimo que alienássemos todo esse património porque o nosso sistema político não foi capaz de reagir a tempo e recuperar a confiança e o prestigio de que carece junto da população.

É preciso agir depressa. Esta é uma responsabilidade de todos, sem excepção; órgãos de soberania, e partidos, sejam eles maioritários ou da oposição.

Ao longo de 40 anos de vida política vivi momentos de grande alegria e momentos de desilusão. Nada me custou tanto, porém, como ver a escassíssima taxa de participação eleitoral no primeiro referendo que se realizou em Portugal.

É necessário compreender os sinais do eleitorado e dar-lhes resposta atempada, caso contrário o testemunho que queremos celebrar e transmitir neste dia 5 de Outubro poderá estar perdido para a próxima geração. E haverá então um país que vive por si e com o esforço individual de pessoas como as que hoje homenageamos e um país político, eleito democraticamente por um número cada vez menor de cidadãos.

Ainda não chegámos aos níveis alarmantes de outras sociedades desenvolvidas. Pois não. E na medida das minhas responsabilidades e competências tudo farei para que nunca se chegue. Sei que não estou sozinho nesta minha determinação.

Sinto que esta é a mais difícil e longa batalha da minha vida política. Contem com a independência serena da minha magistratura para estimular um diálogo que permita avançar com medidas concretas.

Apelo a todos a que façam destes problemas questões de regime que importa ultrapassar, acima de qualquer cálculo de conjuntura partidária, e acima mesmo da opinião pública que muitas vezes se mostra pouco receptiva a aceitar as reformas de uma classe política para a qual olha com indiscutível desconfiança.

A revisão das leis eleitorais, do financiamento dos partidos, das incompatibilidades dos titulares de cargos políticos e das suas remunerações, a dignificação dos debates públicos, como forma de esclarecimento, o aumento da transparência e a celeridade dos instrumentos jurídicos têm de ser debatidas. A dedicação à causa pública tem de ser prestigiada e respeitada na sociedade como um valor.

É preciso um pacto de coragem entre todos os partidos para que se compreenda a dimensão do que está em causa e se tomem as medidas necessárias sem que ninguém queira arvorar para si a bandeira de uma vitória.

É necessário celebrar a República com a coragem de afrontar os seus problemas e com a convicção de que o país tem a capacidade de ultrapassar as dificuldades que se nos deparam.

O exemplo da vossa presença massiça nesta cerimónia é um estímulo que ninguém pode ignorar. Ao ver-vos hoje aqui sei que é possível vencer esta batalha política.

Excelências,

Minhas Senhoras e meus senhores.

Estamos a um mês de um segundo referendo nacional, convocado nos termos constitucionais redigidos pela Assembleia da República, para recolher a opinião maioritária dos portugueses sobre a instituição em concreto de regiões administrativas.

Existem vastas e ponderosas razões em defesa do sim e do não. Espero que a campanha seja esclarecedora e que se debatam, na medida do possível, os principais argumentos de uns e de outros.

Esta é uma escolha política do maior significado nacional. Qualquer que seja o resultado deste referendo o país terá mudado, porque terá feito uma escolha entre caminhos diversos de descentralização que têm de começar a ser percorridos de imediato.

É importante mobilizar os portugueses para esta escolha. Estou preocupado e deixo-vos aqui um apelo veemente a todos os portugueses para que não deixem de votar no próximo dia 8 de Novembro, seja qual for a vossa opção.

Qualquer que seja o resultado do referendo é preciso ter consciência que essa será uma escolha que perdurará, porque esta não é uma matéria que todos os dias se reponha ao escrutínio do eleitorado.

Excelências,

Minhas Senhoras e meus Senhores,

A República que queremos comemorar todos os anos é aquela comunidade de cidadãos livres e iguais que tem a lucidez e a coragem de olhar de frente para os problemas e confrontar os cidadãos com as diversas soluções que para eles existam. Mesmo que esses problemas, como é o caso da questão da participação cívica e política tenham componentes civilizacionais que transcendem as fronteiras da nossa sociedade.

A República que queremos comemorar deve ser aquela em que ninguém espera que as coisas mudem por si, mas onde todos devem sentir como dever seu melhorar a sociedade em que se inserem. Mesmo que isso implique sacrifícios.

É esse o exemplo dos homens e mulheres que tudo arriscaram para fundar a República.

É à sua coragem que hoje prestamos homenagem.

VIVA A REPÚBLICA!

VIVA PORTUGAL!