Visita de Estado à Irlanda

31 de Maio 1999

Excelência,


Desejo, antes de mais, agradecer-lhe, em nome de minha Mulher, de todos quantos me acompanham, e no meu próprio, o acolhimento tão caloroso que nos tem sido dispensado desde que chegámos ao seu belo país.


Agradeço-lhe, igualmente, muito penhorado, as palavras tão amáveis que teve para com Portugal e para com os portugueses.


Como é sabido, o Infante D. Henrique, impulsionador decisivo das descobertas portuguesas, enviou a um seu amigo de Galway um leão capturado nas costas africanas. A História não nos deixou rastro do felino, mas a qualidade e a originalidade da prenda evidenciam uma estima e um apreço muito particulares!


De facto, irlandeses e portugueses, conhecem-se de há muito e são bem patentes as nossas afinidades.


Partilhamos idênticas raízes históricas, culturais e civilizacionais. Somos países com uma escassa extensão territorial mas dotados de um forte e original afirmação cultural, ciosos da sua liberdade e da sua independência; o mar é para ambos uma constante presença e uma ligação íntima, moldando a nossa maneira de ser e emprestando-nos características muito próprias no contexto europeu.


Ao longo dos séculos, por razões diferentes e em momentos diversos, milhares e milhares de irlandeses e de portugueses buscaram noutras terras o sustento, a possibilidade de se expressarem de uma forma mais livre, condições de vida mais dignas para si e para os seus filhos e mais conformes com as suas convicções pessoais.


Também este traço nos une e nos concede uma forma particular de encaramos o mundo.


Muitos irlandeses vieram para Portugal para escapar à intolerância religiosa, criando no nosso país escolas e outras instituições que disfrutam de um merecido prestígio. Mas já antes as nossas relações se traduziam em trocas comerciais significativas e em intercâmbios pessoais regulares, dinamizados por uma empreendedora comunidade irlandesa residente em Portugal.


Tudo isto ajudou a cimentar um entendimento mútuo que encontra hoje, no quadro da construção de uma Europa mais próspera e mais solidária em que estamos conjuntamente empenhados, novos e mais vastos espaços de afirmação.


É com particular agrado e com grande interesse, Senhora Presidente, que visito a Irlanda, no seguimento do amável convite que me endereçou. É um agrado e um interesse partilhados pela significativa comitiva que me acompanha, que inclui vários membros do Governo, representantes de todos os partidos políticos representados no nosso Parlamento, universitários, investigadores e criadores culturais, empresários e representantes dos principais órgãos de comunicação social portugueses.


Ao agrado por estar no seu país, acrescenta-se uma grande curiosidade; curiosidade por melhor conhecer as suas realidades, a sua cultura, as suas preocupações, a forma singular como a Irlanda soube, em escassas duas décadas, operar uma profunda transformação económica, impondo-se hoje como um modelo de progresso bem conseguido.


Senhora Presidente,


Durante quase cinquenta anos, Portugal esteve arredado do convívio das nações democráticas da Europa por um regime ditatorial e iníquo, marginalizado relativamente às grandes transformações europeias do pos-guerra, privado das condições do progresso político, económico e social.


Celebrámos há escassas semanas o vigésimo quinto aniversário da revolução de 25 de Abril, o nosso reencontro com a liberdade e a democracia, que nos abriu as portas à nossa plena reintegração na Europa a que sempre pertencêramos.

As profundas transformações operadas no meu país nos últimos quinze anos são evidentes para todos quantos nos visitam. Somos hoje um país moderno que conseguiu, em larga medida, ultrapassar os atrasos estruturais herdados do passado. Tal como a Irlanda, e graças a um esforço sério, que acarretou sacrifícios incontornáveis, encontramo-nos no grupo fundador da moeda única europeia.


Conseguida, com sucesso, a concretização da terceira fase da União Económica e Monetária, decididas que foram já, de uma forma adequada, as perspectivas financeiras para os próximos seis anos, a União Europeia tem de vencer outros desafios exigentes que se lhe colocam, de prosseguir simultaneamente quer o alargamento das suas fronteiras institucionais às democracias da Europa central e oriental, quer o aprofundamento do próprio projecto integrador.


O alargamento constitui, porventura, o desafio mais importante com que estamos defrontados e que requer, de todos, vontade e determinação política para superar obstáculos e dificuldades concretas.


Mas, paralelamente, o processo europeu tem de ser constantemente aprofundado, compatibilizando as suas dimensões económica, social e financeira, por forma a garantir as possibilidades de uma convergência real, o reforço da coesão económica e social e o progresso e a estabilidade do espaço europeu no seu conjunto.


A Europa tem de avançar para novos níveis de integração política, consentâneas com os graus de integração já conseguidos e com a partilha de soberania que eles próprios encerram. Sem uma Europa politicamente mais integrada, não haverá uma Política Externa e de Segurança Comum credível e eficaz nem a Europa poderá assumir um papel mais actuante na defesa dos seus interesses próprios.


Vivemos momentos particularmente difíceis, tão dramaticamente evidenciados pela crise do Kosovo.


Estamos conscientes das limitações do uso da força e de que apenas uma solução política poderá resolver as causas que estão na origem do conflito, solução esta que deverá assentar nos termos convergentemente definidos pela Aliança Atlântica, pela União Europeia, pelo Secretário-Geral das Nações Unidas e pelo G8.


Esta solução é urgente, face à dimensão da catástrofe humanitária, do número crescente de vítimas inocentes, dos riscos desestabilizadores desta crise para outros países da região.


Os Balcãs, no seu conjunto, não podem continuar a ser uma região adiada, excluída do concerto europeu.


Consolidação dos quadros e das práticas democráticas, respeito pelos direitos humanos e pela diferença cultural e religiosa, criação de condições para o desenvolvimento económico e social, são certamente estes elementos indispensáveis para garantir a paz e o progresso de uma região de cuja estabilidade depende a segurança da Europa.


Senhora Presidente,


Funções que exerci anteriormente, no quadro da Comissão Europeia dos Direitos Humanos, levaram-me a interessar-me muito directamente pelos problemas que, infelizmente, ainda se colocam à paz e à convivência na Irlanda do Norte.


Tenho a honra de contar o Prémio Nobel da Paz John Hume entre os meus amigos. Que me seja permitido aqui testemunhar-lhe - e a todos quantos não esmoreceram ao longo de tantos anos na defesa da paz, dos direitos humanos, da convivência pacífica entre as comunidades, do respeito pelas convicções individuais - a nossa muito sincera admiração pela sua singular coragem e abnegação.


Vossa Excelência, Senhora Presidente, tem um conhecimento muito particular e directo da situação na Irlanda do Norte, incluindo-se, naturalmente, neste conjunto vasto de irlandeses que continuam a defender e a lutar pelo primado do diálogo sobre a violência, da tolerância sobre a cegueira, dos valores democráticos sobre a injustiça e o fanatismo.


Saudamos todos, com fundada esperança, os acordos concluídos na Páscoa do ano passado, e as perspectivas que daí decorrem para romper definitivamente o ciclo de violência e assentar as bases de uma política de normalização democrática e de reconciliação entre as comunidades, acordos estes muito expressivamente apoiados por uma clara maioria da população


Esta esperança não pode ser frustrada, tal como não pode ser defraudada a confiança que a maioria da população da Irlanda do Norte depositou numa nova era de paz, de reconciliação intra-comunitária, de convivência democrática, de progresso e bem-estar para todos.


Senhora Presidente,


Promover um conhecimento mútuo cada vez mais estreito entre irlandeses e portugueses, buscar novas complementaridades, explorar convergências, visar o aprofundamento constante do projecto europeu, reforçando o seu sentido político e a sua dimensão solidária, são as vias que nos permitirão responder, com eficácia, às aspirações dos nossos povos e aos desafios da construção europeia.


O projecto europeu terá de ser construído com os valores que fazem da cultura europeia uma obra em permanente construção, aberta e criadora.


Esses valores são a vontade de compreender, o espírito crítico, o inconformismo, o universalismo, a liberdade e a tolerância. Sempre que os cultivou, a Europa avançou e progrediu.


Quando os negou, negou-se e recuou.


A Irlanda e Portugal que, com James Joyce e Fernando Pessoa, prestaram, neste século, um contributo ímpar à modernidade europeia, sabem que só a afirmação ousada do pensamento livre e criador permite dar aos projectos a grandeza que os torna duradouros, consistentes e mobilizadores.


A Europa terá de fazer da diversidade e do diálogo entre culturas uma prática e um motivo de enriquecimento de todos os seus povos.


A Exposição de Pintura, mostrando obras de cinco pintoras portuguesas, que se apresenta em Dublin, com muito gosto nosso, por ocasião desta visita, quer ser, de algum modo, um símbolo desse diálogo, que queremos aprofundar, entre as nossas culturas.


Concluiria, Senhora Presidente, agradecendo à Irlanda o apoio tão empenhado que tem concedido à causa do povo de Timor-Leste. O acordo alcançado recentemente, sob os auspícios do Secretário-Geral das Nações Unidas, sobre uma consulta livre e democrática representa um passo da maior importância no processo de autodeterminação do território.


Mas é necessário que todas as partes se empenhem em cumprir as disposições desse acordo, por forma a garantir as condições de indispensáveis para que a consulta possa decorrer em liberdade e sem violência.


É crucial, neste quadro, um redobrado empenho de todos quantos partilham os mesmos valores da liberdade, da justiça e dos direitos humanos, por forma a garantir as condições de uma consulta livre e democrática. Estou certo de que a Irlanda continuará, tal como no passado, a testemunhar activamente ao povo de Timor-Leste a sua solidariedade, numa fase que será decisiva para o seu futuro colectivo.


Peço a todos que me acompanhem num brinde pela saúde da Senhora Presidente e do Dr. McAleese, pela prosperidade crescente do povo da Irlanda e pelo reforço da amizade entre irlandeses e portugueses, no quadro de uma Europa mais unida e mais solidária.