Discurso por ocasião da Sessão Solene de Comemoração do 1º de Dezembro 1999, Dia da Independência de Portugal, em Faro

01 de Dezembro 1999


Excelências,

Minhas Senhoras e meus senhores,

Presto a minha homenagem pública ao senhor general Themudo Barata militar prestigiado e Presidente da sociedade Histórica da Independência de Portugal.

V.Exa, Senhor General era depositário de uma tradição e anfitrião de uma cerimónia pública que ano após anos se cumpria. Mas deu-nos a todos nós o exemplo da lucidez e da perfeita compreensão dos factores de Independência de um país ao aceitar o meu desafio e promover a tentativa de adaptar essa cerimónia às modernas condições de comunicação da sociedade, de lançar uma reflexão sobre as novas condições da Independência de Portugal, mantendo o fio da tradição que nos liga ao passado.

Esse seu gesto, que tanto lhe agradeço, quer como Presidente da República, quer no plano pessoal, exprime uma concepção da Independência de Portugal assente nas condições que asseguram o futuro da comunidade nacional e não apenas na história de que todos nos orgulhamos.

Conheço bem a inércia das instituições em actualizarem práticas e rotinas. E, por isso, aprecio e valorizo o seu exemplo de coragem. Espero que ele fique como a primeira mensagem deste dia. Um país que na vida das suas instituições não sabe encontrar, permanentemente, um novo equilíbrio entre tradição e modernidade enfrenta sérias dificuldades em manter vivo o interesse dos cidadãos na participação da vida da sua comunidade.

Excelências,

Minhas Senhoras e meus Senhores.

A globalização da economia e dos mercados não nos deve fazer esquecer as enormes assimetrias que existem no mundo. O século XX fica marcado por uma transformação sem precedentes no domínio da ciência e da tecnologia, mas também por destruições maciças, bem como por fenómenos de instabilidade e de exclusão social.

Poucos países poderão pretender influenciar e muito menos determinar as linhas de força da globalização. Quer isto dizer que a temos que tomar como um pressuposto, não para suportar resignadamente as suas consequências, mas para antecipar e gerir, na verdadeira acepção da palavra, os seus efeitos.

O futuro não está escrito, e a sua dimensão é essencial para encarar o presente como o cruzamento de dois processos: o do passado, histórico, e do futuro, conjectural. O futuro não acontece por fatalidade; ele decorre apenas em parte dos indicadores de natureza económica: a outra parte que o constrói resulta das visões e das determinações dos principais agentes e actores da sociedade em que vivemos.

A ciência é crucial para o nosso país. A manutenção de processos ou formas de organização caducos e a recusa em experimentar e avaliar novos procedimentos paga-se caro, neste mundo de concorrência acrescida.

Por isso há que apelar a todas as iniciativas que criem um clima favorável à ciência e à inovação e que criem condições concretas para que a competitividade das organizações e a produtividade das empresas portuguesas se eleve.

No passado era principalmente ao quotidiano que se iam buscar as novas ideias, numa prática que se assemelhava a uma acumulação de conhecimentos sobre como aproveitar as forças da natureza. Foi assim até há cerca de cinquenta anos.

Porém, este mecanismo alterou-se drasticamente. A criação de indústrias de alta intensidade tecnológica, na segunda metade do nosso século, assinala a importância central das aplicações da ciência nas sociedades do mundo industrializado.

A prática empresarial e societal passou pois a depender fortemente de novas ideias cuja origem está intimamente associada ao esforço científico, isto é, não deriva da linguagem natural ou do saber comum. O processo de desenvolvimento tecnológico transformou-se radicalmente.

Por outras palavras, se na linguagem de todos os dias os valores, as atitudes e as expectativas de índole científica não circularem nem se afirmarem, a própria capacidade de representar e manipular a realidade fica severamente limitada. As escolhas não serão certamente as mais adequadas aos tempos e aos contextos em que vivemos.

Já nos finais do Século XIX Antero de Quental apontava como causa principal da nossa decadência a repressão do espírito crítico, experimental, inovador e universalista. Hoje, mais do que nunca, temos que continuar a fazer de Portugal um país moderno, aberto à contemporaneidade, um país em que a educação, a ciência, a cultura e a cidadania sejam, de facto, considerados como condições insubstituíveis de realização individual e colectiva.

Sabemos hoje que a herança do passado só se torna viva se lhe juntarmos o impulso prospectivo do futuro. A esperança que faz com que os homens ajam e lutem por causas e ideais, para além da satisfação dos interesses imediatos e egoístas, assenta na nossa capacidade de criar novos conhecimentos e novas possibilidades de progresso sustentado.

Sabemos também que a complexidade da nossa época e dos problemas que nos põe exige maior informação, mais esclarecimento, mais comunicação, mais participação, mais ciência, mais consciência. O próprio destino das sociedades democráticas depende, em larga medida, disso mesmo. Não podemos aceitar um Mundo ou uma sociedade atravessada por um novo e ainda mais terrível, dualismo û de um lado os poucos que possuiriam tudo, poder, saber, tecnologia, informação, dinheiro, capacidade de decidir, de escolher, de manipular; do outro, os muitos que nada teriam e nada poderiam.

Nessa sociedade, que constituíra uma nova e mais perversa versão da professia de Orwell, não haveria nem liberdade, nem progresso, nem cidadania, nem participação, nem identidade, nem independência.

Não podemos também aceitar que as inquietações, dúvidas, perplexidades do tempo levem, tantas vezes com propósitos inconfessáveis, à exploração do irracionalismo mais primário, da superstição mais grosseira, do fanatismo mais agressivo.

A curiosidade pelo novo e pelo diferente, o desejo de explicar, o amor do conhecimento são, desde os gregos, o motor primeiro do nosso processo civilizacional e da nossa definição como civilização de muitas culturas e de muitas racionalidades.

A ciência, o método experimental, a observação metódica, a procura da prova, a produção da lei, a organização do conhecimento, a razão crítica marcaram e deram origem a uma nova fase da vida da humanidade, com mudanças radicais em todos os domínios ― do particular ao geral, do económico ao social, das instituições aos custumes.

Devemos ter presente que a ciência exige recursos e meios poderosos. Temos de ganhar consciência de que apostar a fundo na investigação científica é o investimento a prazo mais rentável, pois é o que mais valoriza o que os países têm de precioso: a capacidade intelectual de criar, de inventar, de descobrir, de realizar.

Esta aposta nas pessoas, na sua formação é hoje um factor decisivo de Independência dos países. O estado deve, por isso, garantir que os sistemas de ensino e de formação respondam capazmente a essa necessidade estratégica das sociedades modernas. Mas deve, igualmente, assegurar um sistema de avaliação exigente e rigoroso que permita, regularmente, aferir com seriedade o trabalho que se faz.

O estado não pode permitir o facilitismo, a cultura do desperdício e a desresponsabilização. Exigência. Cada vez mais exigência e rigor. E avaliação permanente. Os nossos recursos são limitados. E a nossa responsabilidade para com as pessoas permanente. Nunca, mas nunca, se pode perder de vista o sentido de eficácia na aplicação desses recursos.

Mas uma cultura de avaliação implica, também, que se tenha a firmeza necessária para tirar as consequências dessa avaliação. E a sociedade beneficia duplamente. Quer porque pode tomar as suas decisões, quando for caso disso, baseada numa avaliação independente. Quer porque ganha confiança num sistema que não se limita a produzir relatórios, mas que transforma em acção política as consequências desses relatórios.

É cada vez mais claro que as actividades científicas têm que ser considerados como inseridas em fenómenos de natureza cultural, mais vasta e, portanto, que a ciência é ela própria uma parte integrante e indissociável da cultura.

A necessidade de divulgar os resultados e outros acontecimentos científicos, bem como de tornar conhecidos do público as opiniões e as interrogações dos cientistas, a necessidade de avaliar os impactos dos grandes projectos tecnológicos e, sobretudo, de analisar os progressos científicos em termos das implicações futuras, são reais, prementes e sérias.

A opinião pública, os segmentos especializados da população, o sistema educativo, os actores e agentes económicos e políticos não se podem alhear nem alienar das grandos questões da ciência, envolvendo a ciência. O alargamento e aprofundamento da cultura científica é tarefa primordial em todas as sociedades que querem continuar a ser avançadas.

Hoje, mais do que nunca, torna-se imprescindível compreender o mundo em que vivemos, bem como as escolhas que se configuram. Porque, igualmente mais do que nunca, temos necessidade de aprender, observar e experimentar ao longo de toda a nossa vida. A cidadania implica a participação. A solidariedade implica a independência.

A democracia pode por vezes parecer frágil no seu funcionamento. Mas o nosso dever colectivo é reforçá-la sistematicamente, porque o seu fortalecimento é, inclusivamente, a medida da sobrevivência da nossa identidade cultural, dos nossos valores e das nossas percepções.

Ouvimos continuamente que ½temos que nos adaptar¯. Adaptar a isto, adaptar àquilo; adaptar às novas tecnologias, às novas condições de concorrência do mercados, às novas regras de acesso à sociedade de informação; como se não houvesse escolhas, como se só houvesse uma resposta e uma solução.

Mas é por decidirmos, por exercermos a nossa capacidade de escolha, com independência e conscientemente, que somos humanos.

Por isso, ou aprofundamos as bases científicas do nosso conhecimento sobre a sociedade, sobre a natureza e sobre o próprio homem, e simultaneamente promovemos o espírito crítico e a participação cívica, ou, em alternativa, assistiremos primeiro à contestação lenta e, depois logo a seguir, à destruição rápida e inexorável do edifício da ciência; a seguir veremos certamente o desmantelamento dos saberes argumentativos e, com eles, o da legitimidade da própria ordem em que assenta a regulação da nossa sociedade.

É que as novas ditaduras e os totalitarismos nunca desprezam a força nem a eficiência das máquinas: antes a estimulam no quadro de uma combinação perversa com a ignorância política e com novas ou recicladas superstições.

É preciso por isso incutir nos mais jovens o dom de imaginar, o prazer de aprender, o gozo de descobrir. Este é um campo onde uma sociedade democrática não pode fazer quaisquer concessões.

Porque é dos jovens a sua participação como cidadãos, porque será deles que dependerá a prática da cidadania, porque serão eles os intérpretes da nossa independência no futuro.

Porque são eles o futuro de Portugal.

Viva Portugal!