O abuso de drogas

O abuso de drogas

e a comunidade

Nigel Mellor

Responsável pela Unidade de Desenvolvimento Comunitário

e Igualdade do Conselho Municipal de Liverpool,

membro do Grupo de Referência da Droga de Liverpool

 

 

A minha contribuição consiste em apresentar em linhas gerais o problema do abuso de drogas em Liverpool, na Inglaterra. Vou também indicar a maneira como este se relaciona muitas vezes com outros aspectos do comportamento criminoso e anti--social. Finalmente apresentarei alguns exemplos do tipo de trabalho e das iniciativas que serão necessárias tomar para procurar resolver o problema, tanto a curto como a longo prazo.

 

 

O âmbito do abuso de drogas

 

A taxa de consumidores de drogas conhecidos em cada 100 000 habitantes do Noroeste da Inglaterra é maior do em qualquer outra Região de Serviços de Saúde do país e atinge cerca do dobro da média nacional. Durante 1995, Liverpool revelou ter o quarto número mais elevado de novos episódios registados nas agências do Noroeste (ou seja, o número de pessoas que se apresentam aos serviços de drogas pela primeira vez ou após um intervalo de contacto de seis meses ou mais). O número de episódios novos registados nas agências em Liverpool perfez 946 em 1995 — sendo pouco mais de 70% os consumidores de heroína e 18% os de metadona. O segundo número mais elevado foi de cocaína (5%) e anfetaminas (2%). Enquanto que só 42 consumidores revelaram a cocaína como sendo o seu principal estupefaciente de consumo, um total de 205(24%) disse que a cocaína fazia parte do seu consumo de drogas. 33% revelaram injectar-se presentemente, com 15% declarando que partilhavam o material.

Durante o período de 1991 a 1995, a tendência geral da frequência com que os toxicodependentes se injectam com drogas, estando ao mesmo tempo em contacto com os serviços em Liverpool, indica uma diminuição importante das pessoas, que se injectam com drogas (de 305, ou 44% em 1991 para 266, ou 33%, em 1995). Um estudo realizado junto dos adolescentes de 15 e 16 anos sobre o consumo de bebidas alcoólicas, do tabaco e das drogas ilícitas indica que 40% das raparigas e 43,5% dos rapazes revelaram já ter tomado drogas ilícitas. A comparação entre os sexos fica contudo invertida em relação ao grupo de pessoas entre os 25 e os 59 anos de idade, sendo mais de dois terços de consumidores de drogas do sexo masculino e um terço do sexo feminino. Dos consumidores de drogas, o grupo etário mais predominante é de longe aquele entre os 20 e os 34 anos. E temos conhecimento de que 96% estão desempregados. Finalmente ao falarmos ou descrevermos o âmbito do abuso de drogas, é importantíssimo realçar que estes valores só se referem àqueles toxicodependentes sobre quem temos informações, e temos de nos lembrar que existe um mundo totalmente diferente de abuso de droga, sobre o qual não temos informações e que, segundo certos cálculos, parece ser pelo menos o dobro, e nalguns casos ainda mais elevado, do que o âmbito conhecido do problema.

 

Estatística sobre crimes

O número de incidentes relacionados com estupefacientes, com que a Polícia de Merseyside lidou entre o período de Janeiro de 1994 e Dezembro de 1996, totalizou em média cerca de 3000 por ano, com aproximadamente 3500 pessoas presas e 3600 apreensões de droga por ano. A maioria das apreensões de estupefacientes em 1996 (total de 3763) abrangeu 2000 de haxixe, 449 de cânhamo, 357 de anfetaminas e 300 de heroína, com o maior valor a seguir de 173 de ecstasy, que aumentou substancialmente desde 1994 (114 apreensões).

A maioria dos incidentes relacionados com estupefacientes com que a Polícia de Merseyside lidou em 1996 (3109) envolveu a prisão por posse (2561), sendo a seguir o tráfico (453) o crime mais importante.

Das pessoas presas por tráfico de drogas, os homens excederam em número as mulheres em 6:1, salientando-se mais significativamente os grupos etários entre 21 e 25 e os de mais de 30 anos de idade. Deu--se o mesmo em relação àquelas pessoas presas por posse de drogas ilícitas. A maneira mais vulgar de descobrir drogas ilícitas foi a polícia mandar parar e fazer a busca de pessoas na rua (cerca de 50% do total de incidentes, enquanto que os veículos revistados totalizaram aproximadamente 20%).

 

Abuso de drogas e prostituição

O Liverpool City Council encomendou há pouco tempo um estudo sobre os problemas causados pela prostituição nas ruas da cidade. Este estudo considerou um número de dimensões diferentes dos problemas causados pela abordagem das prostitutas por carro e a prostituição nas ruas. Quando a prostituição se concentra numa zona residencial identificável, isto cria diversos problemas:

• Os residentes locais, e especialmente as mulheres e as raparigas novas são abordadas por homens nos seus automóveis,

• As seringas e os preservativos usados ficam muitas vezes espalhados pelos jardins e outros espaços abertos,

• As casas e os imóveis desocupados podem ser utilizados para fins de prostituição durante o dia e a noite,

• O conhecimento de que uma zona é o «bairro das prostitutas» dificulta imenso os esforços para conseguir a sua regeneração.

O estudo realizado em Liverpool identificou uma ligação muito estreita entre o abuso de drogas e a prostituição, tendo-se verificadoque dois terços das mulheres eram toxicodependentes, e que a sua participação na prostituição se encontrava em parte directamente influenciada por isso. Por exemplo, a toxicodependência das prostitutas requeria desde cerca de £30 por dia até ao valor tão elevado, num caso, de £820 por semana para alimentar o seu hábito. A toxicodependência tinha, portanto, um efeito importante sobre o seu envolvimento na prostituição, mas algumas destas mulheres não recebiam proveitos financeiros pelo seu envolvimento na prostituição. Outra dimensão especialmente preocupante desta situação foi o facto de as mulheres estarem muitas vezes dispostas a ter relações sexuais sem protecção para ganharem mais, apesar dos perigos conhecidos associados com tal comportamento.

 

A relação entre o abuso de drogas

e outras actividades criminosas

Existe uma estreita ligação entre a localização e a extensão do abuso de drogas e uma série de actividades criminosas (roubos em casas e em automóveis etc.). Algumas avaliações sugerem que até 80% dos roubos nas casas e nos automóveis estão relacionados com a necessidade desesperada de dinheiro para comprar estupefacientes. O roubo de rádios, de aparelhagens de alta fidelidade e de outros objectos potencialmente valiosos, deixados à vista nos automóveis e posteriormente vendidos por 10 a 20% do seu valor nas feiras, bares ou postos de venda semelhantes, coloca um grande fardo sobre as zonas em que ocorre:

— As pessoas não gostam de deixar os seus carros nos parques de estacionamento,

— As pessoas ficam com má impressão de certas zonas centrais ou periféricas das cidades e

— As atitudes em relação a essas zonas podem influenciar a escolha sobre onde viver, investir e se se deve abrir um estabelecimento comercial ou não nessa zona.

As estatísticas oficiais indicam que o número de crimes registados na Grã-Bretanha aumentou 10 vezes nos últimos 40 anos e que esses crimes registados constituem provavelmente apenas um terço daqueles que têm efectivamente lugar:

— Em cada 100 crimes que são perpetrados, apenas 3 resultam num aviso ou numa condenação,

— Dois terços dos criminosos com idade inferior a 21 anos, condenados a prisão, serviços na comunidade, ou liberdade condicional praticam novamente crimes nos 2 anos que se seguem,

— 40% dos crimes ocorrem em 10% das áreas,

— Cerca de 3% dos criminosos são responsáveis por aproximadamente um quarto de todos os crimes.

 

Ecstasy e o ambiente da dança

Na Grã-Bretanha, ecstasy é uma droga de classe A como a heroína e o haxixe. Desde 1991 a ecstasy tem vindo a tornar-se cada vez mais popular. Calcula-se agora que de 1 000 000 de jovens que frequentam semanalmente as discotecas, metade toma ecstasy. A alfândega confisca entre 3 e 4 000 000 de pastilhas de ecstasy por ano, o que se pensa constituir cerca de 10% do fornecimento total. Ecstasy é uma droga barata. Muitos daqueles que tomam ecstasy estão no grupo etário dos 14 aos 16 anos e consideram que a droga é mais segura do que o álcool. As discotecas proporcionam um foco para a compra e a venda de ecstasy. Muitas pessoas estão cientes dos perigos da tomada de drogas, inclusive ecstasy, mas receia-se que o seu uso tenha elevado o nível de aceitação de outros estupefacientes. Na Grã-Bretanha, os meios de comunicação salientaram alguns casos de morte causada pelo consumo de ecstasy e as complicações relacionadas, mas é possível que os efeitos indirectos do estupefaciente sejam mais sérios e a mais longo prazo.

A combinação dos efeitos de ecstasy e as exigências da cultura da dança são complementares — a necessidade de energia para aguentarhoras de dança é aparentemente abastecida pelas pastilhas de ecstasy, e temos, portanto, uma continuidade através da moda, música, dança e drogas. Há dez anos atrás, a indústria da dança quase não existia. Agora é uma das partes principais do sector de entretenimento, tendo também ligações fortes com o abuso de drogas, e quando a propriedade e/ou o controlo das discotecas se liga ao abuso de drogas, então cria-se um cocktail especialmente sério de crimes graves. A série de tiroteios em Liverpool em 1995 resultou de uma luta pela supremacia entre bandos rivais de traficantes de drogas, que estavam a lutar pelo controlo dos mercados de drogas, inclusive os locais principais de dança da cidade. A ligação entre a cultura da dança, do abuso de drogas (por ex. ecstasy) e álcool pode ser ilustrada pelo facto de as vendas de bebidas alcoólicas terem vindo a diminuir de 20% nos últimos dez anos desde 1987 — a década que tem visto o aumento da popularidade da dança nas discotecas. As pessoas bebem água ou bebidas sem álcool quando tomam ecstasy para satisfazer o aumento de necessidade de ingerir líquidos.

 

Alcopops

Há pessoas que consideram que o sector de fabrico de cerveja desenvolveu os alcopops para tentar reparar os seus prejuízos em relação às vendas de bebidas alcoólicas normais. Os alcopops estão a ser comercializados de forma a parecerem-se com as bebidas sem álcool, mas o seu teor em álcool é, contudo, tão elevado ou mesmo mais elevado do que o da cerveja. A facilidade com que podem ser confundidos com bebidas sem álcool levam a que sejam bebidos em grande quantidade, e até por vezes por crianças muito novas. Hoje em dia, na Grã-
-Bretanha, as pessoas preocupam-se cada vez mais com o facto de os menores beberem bebidas alcoólicas, e de a extensão dos danos relacionados com o álcool ser pelo menos 10 vezes maior do que a do abuso de drogas. No ano passado foram lançados 200 novos Alcopops ou bebidas normalmente sem álcool misturadas com álcool — 63% das pessoas pensam erradamente que os Alcopops são menos fortes do que a cerveja.

Totpacks

A preocupação mais recente visa os totpacks. Trata-se de saquetas que contêm 30 ml de bebidas alcóolicas de elevada graduação. Estarão à venda por menos de £1 e embora os produtores digam que se destinam a pessoas idosas, pessoas que fazem longas caminhadas a pé, pescadores e campistas, que não acham conveniente transportar um copo para tomar uma bebida, há a grande preocupação de que, devido ao seu preço e à facilidade com que podem ser transportados e escondidos, os jovens os considerarão atraentes. Este último produto a entrar no mercado de bebidas da Grã-Bretanha vem aumentar a séria preocupação em relação à quantidade, variedade e carácter das bebidas alcoólicas disponíveis hoje em dia, a maior parte das quais parece ser comercializada visando os jovens, que decerto as consomem, e que são muitas vezes jovens abaixo da idade legal. Um dos receios é que, após anos de esforços feitos para limitar o consumo de bebidas alcoólicas nos estádios de futebol, por exemplo, estes produtos novos serão impossíveis de detectar.

 

Exemplos de medidas a tomar

Qual é o tipo de medidas que precisam de ser tomadas para combater esta dependência e atracção cada vez maiores das drogas ilícitas de todos os tipos? É evidentemente impossível nesta curta contribuição tentar dar uma lista de sugestões abrangente.

As sugestões, que gostaria de fazer, partem do princípio de que serão tomadas outras medidas:

— Fornecer uma gama apropriada de serviços aos consumidores de drogas, de maneira a reduzir os danos e promover a sua reabilitação,

— Combater o tráfico de drogas e proporcionar apoio aos residentes das zonas em que ele se verifica, de maneira a aumentar as taxas de detecção,

— Proporcionar apoio às iniciativas de prevenção de drogas a partir dos fundos resultantes dos bens apreendidos aos traficantes de drogas condenados.

Podem identificar-se alguns indicadores em relação a certas iniciativas-chave ou tipos de acção importantes a encetar:

• Há que evitar marginalizar os toxicodependentes, cuja toxicodependência é já por si só um problema difícil de solucionar sem o agravar com outros, e tornar tudo ainda mais difícil.

• Há que ficar ciente do amplo leque de participação por parte dos jovens na escola, à noite, na rua, na discoteca, etc., e tomar em conta o forte poder da indústria da moda, e a pressão por parte dos companheiros da mesma idade.

• A importância de trabalhar com crianças, que faltam à escola ou que são expulsas, é crucial, dada a sua vulnerabilidade e propensão em participar num comportamento anti-social e muitas vezes em actividades criminosas. A tomada de medidas sensíveis e adequadas para responder às necessidades destes jovens adolescentes poderia ter um impacto importante sobre o abuso de drogas e sobre a criminalidade em geral, e seria obviamente muito útil para os próprios jovens.

• Há que desenvolver a confiança, as aptidões e a integridade do indivíduo em todas as idades, mas quanto mais jovens forem, melhor, de maneira a poder-se aumentar a sua resistência ao abuso de drogas e de substâncias.

• É importante considerar o abuso de drogas como sendo um amplo leque de dependência, incluindo a dependência do tabaco, do álcool, das anfetaminas, heroína, ecstasy etc.

• A disponibilidade da educação apropriada e pertinente, de oportunidades de formação e de emprego para a recuperação dos consumidores de drogas pode aumentar de forma decisiva a sua capacidade de continuar a sua recuperação e a sua reintegração definitiva.

• São também necessários programas semelhantes para apoiar a reabilitação dos criminosos com problemas de toxicodependência, mais uma vez numa tentativa de reduzir os padrões de repetição de crimes.

• Há que auxiliar os grupos de apoio às famílias e desenvolver outras iniciativas baseadas na comunidade para proporcionar importantes contribuições eficazes e alternativas à gama de serviços de que os toxicodependentes necessitam, assim como àqueles afectados pela sua dependência.

• O abuso de drogas e a actividade criminosa, que muitas vezes se lhe associa, acarretam um preço muito elevado sobre as nossas sociedades. Este custo não é suportado por uma única entidade mas é repartido por muitas. As medidas mais eficazes de resposta aos diversos problemas causados pelo abuso de drogas devem ser tomadas numa base de estreita colaboração entre as diversas entidades governamentais (tanto a nível central como regional), em cooperação com outras entidades do sector público, privado ou de voluntariado.

• Além disso é necessário criar oportunidades e desenvolver as aptidões daqueles que se encontram marginalizados e excluídos da sociedade, e para isso temos de nos empenhar decididamente para combater a pobreza, melhorar os níveis da educação e até mesmo reexaminar alguns dos princípios em que o nosso sistema económico se baseia.