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Proibir ou legalizar: como reduzir a nocividade do uso de drogas Nuno Félix da Costa Professor da Faculdade de Medicina e do Instituto de Ciências de Saúde Médico psiquiatra no Hospital de Santa Maria Gostaria que o aparente maniqueísmo do título não ocultasse a complexidade do problema e também a complexidade do pensamento sobre o tema. Entre os dois pólos existem matizes e a posição que defendemos, a legalização das drogas, deve ser distinguida da sua liberalização proposta por outros. É importante fazer esta separação pois as posições são diferentes em muitos aspectos, mesmo quanto à sua exequibilidade, e consideramos que o aproveitamento mediático da problemática das políticas para as toxicodependências sob a bandeira da liberalização pode funcionar de um modo paradoxal criando resistências à evolução para políticas alternativas ao actual proibicionismo. Esta apresentação é uma reflexão sobre a possibilidade de construção dessa política alternativa a partir da minha experiência de terapeuta de toxicodependentes. Foi no decorrer dessa experiência que a minha orientação, inicialmente vocacionada para o objectivo clínico da abstinência, foi sendo confrontada com populações de utilizadores de drogas, designadamente no trabalho com os doentes com SIDA ou com hepatites, que não aderiam a programas terapêuticos sem drogas. Percebi a necessidade de criar alternativas, como programas de substituição com metadona, que permitissem mantê-los dentro do sistema de saúde, i. e., que o objectivo terapêutico podia não ser largar as drogas mas sim reduzir a nocividade associada ao seu consumo, designadamente no caso dos doentes com SIDA, por abandonarem a terapêutica para a imunodeficiência. Este debate não é redutível a nenhum saber científico específico e é preciso reconhecer que no limite haverá sempre um resíduo ético e político. Na fase actual corre o risco de se tornar inconclusivo; para que prossiga alguns conceitos devem ser clarificados. A primeira questão é delimitar o problema das drogas. Refere: 1) Aos danos físicos e psíquicos associados ao uso de drogas, de todas as drogas lícitas e ilícitas. A nocividade das drogas lícitas é elevadíssima, em termos de custos, monetários e sociais, incomparavelmente superior à das drogas ilícitas. Frequentemente constituem uma porta de entrada no funcionamento mental ligado ao uso de drogas e na carreira do toxicodependente; 2) A criminalidade e os comportamentos produzidos pela pressão do consumo; 3) As consequências socioeconómicas do narcotráfico. Este aspecto deve ser aqui realçado. Se existirem 50 000 dependentes de drogas ilícitas em Portugal, uma estimativa por baixo, que gastem uma média de 4 contos por dia em drogas temos um mercado com uma facturação anual de cerca de 70 milhões de contos. Num estudo de uma polícia europeia mostra-se que os toxicodependentes financiam cerca de 80% do seu consumo através do roubo vendendo os objectos roubados a cerca de 1/4 do seu valor. Isto significa que entre nós as consequências socioeconómicas actuais da dependência de drogas ilícitas passa por um volume de roubos da ordem dos 200 milhões de contos, cifra que dá uma ideia do mal-estar social provocado pela actual política das drogas; 4) As consequências geoestratégicas do narcotráfico têm sido mencionadas apesar de mal conhecidas. A infiltração deste volume enorme de dinheiro no tecido económico subverte-o e dá lugar a grupos, lobbies, mafias com manifesto poder político. Uma segunda questão que confunde este debate é se deve ser considerado um problema ético ou um problema político. A resposta depende do nível a que o consideramos. Para o cidadão o problema das drogas é um problema de atitudes; ele pode ser proibicionista, abolicionista, pode ser mais ou menos contra o uso de drogas ou mais ou menos favorável ao seu consumo. Para o cidadão o problema das drogas é ético e político: prende-se com avaliações positivas e negativas que faz da droga enquanto objecto, das políticas de droga e toxicodependência e, também com as correlativas disposições de comportamento que ele tem em relação à droga e que decorrem da sua mundividência, donde a natureza política para o cidadão do problema das drogas. Para o Estado Democrático é só um problema político. Ele assume-se como respeitando as opções individuais, as preferências privadas dos seus cidadãos e esta assunção decorre da própria concepção que o Estado tem do seu papel na sociedade. Para o Estado Democrático a regulação ética do problema das drogas cabe, não a si, mas às instituições que modulam a opinião pública (educação, meios de comunicação social, grupos profissionais com um saber científico como os médicos, etc.). A preocupação do Estado Democrático com o problema deve ser como reduzir a nocividade das drogas, logo é apenas um problema político com objectivos políticos claramente definidos: reduzir a nocividade para os consumidores e a nocividade social das drogas. Que políticas considerar para o problema das drogas? Uma política que o erradique, tal como à varíola; eliminar todos os traficantes, tratar todos os consumidores — a opção proibicionista. Do outro lado podemos conceber uma política que comece por aceitá--lo como opção individual e como fenómeno sociocultural e cujo objectivo seja o controlo do problema das drogas — a opção abolicionista. Quais os pressupostos do proibicionismo? Para a sua defesa é necessário demonstrar: 1) Que a ilegitimidade das drogas tem um efeito dissuasor sobre os consumidores; 2) Que é possível aumentar a eficácia das polícias; 3) Que é possível implementar medidas preventivas, prevenção primária em particular, mais eficientes; 4) Que perante a negação das condições anteriores os custos da situação actual são suportáveis. Estas questões deparam com as seguintes evidências: 1) Apesar dos recursos cada vez maiores gastos na repressão da oferta, a Interpol reconhecia que nunca houve tanta produção de droga como em 1996. É questionável a adequação de aumentar o orçamento para a repressão e ainda mais duvidosa a eficácia desse eventual aumento. Nos EUA mais de 80% do orçamento para as drogas é consumido com a repressão da oferta deixando poucos recursos para a prevenção; 2) O número de presumíveis infractores relacionados com uso de drogas tem aumentado significativamente, 35,5% em 1995; 3) As mortes relacionadas com a toxicodependência continuam a aumentar (Observatório VIDA). Por outro lado, um estudo do ISDD encomendado pelo OEDT depois de uma revisão bibliográfica dos programas de prevenção primária concluía pela ineficácia, ou apenas modesta eficácia nalgumas condições, dos programas de prevenção primária. A prevenção secundária, tratamento, abrange poucos toxicodependentes, e são limitadas as taxas de sucesso e os indicadores não sugerem uma redução do consumo; 4) As toxicodependências ocupam o primeiro lugar no ranking das preocupações da população o que tem obrigado os estadistas a falar deste problema. As políticas proibicionistas convivem com programas de manutenção em droga que colidem com os pressupostos do proibicionismo e é uma clara inconsistência do sistema. Grande parte dos recursos das políticas proibicionistas são gastos a tratar os efeitos que elas próprias criam: grande parte da nocividade das drogas é induzida pelas circunstâncias actuais da sua comercialização e consumo. Assim, se aceitarmos que o objectivo de uma política para as drogas deve ser a redução dos custos sociais, políticos e individuais associados às drogas e dos riscos induzidos pelo seu consumo, coloca-se-nos a seguinte questão: Porque é que uma política de redução de riscos deve incluir a legalização, como condição para conseguir o controlo da distribuição, i. e., deve subtrai-lo à ilicitude e aos narcotraficantes? 1) Porque o custo exorbitante da droga é um pesado factor de nocividade. Note-se de passagem que a nocividade ultrapassa muito os efeitos biológicos das drogas no organismo; esta nocividade é especialmente elevada para o álcool e para o tabaco mais do que para a maioria das drogas ilícitas, mas grande parte dos custos associados ao uso de drogas resulta da toxicidade motivacional, os efeitos hedónicos das drogas permitem que os esforços para multiplicar o seu consumo ocupem um espaço cada vez maior na economia de funcionamento psicológico levando a uma escalada de comportamentos de transgressão que alienam e marginalizam depois de sempre empobrecer o funcionamento da personalidade. Esta nocividade é, em larga medida, consequente do elevado custo e da ilicitude do mercado conduzindo à criminalidade como forma de financiamento e à utilização das drogas em condições muito degradantes; 2) Porque a ilicitude empurra os consumidores para a ilegalidade e estigmatiza-os, introdu-los num meio criminoso que mistura o circuito dos canabinois e o dos opiáceos, por exemplo; 3) Porque a dependência é, em parte, uma construção social para justificar a ilicitude; mesmo no caso dos opiáceos o descontrolo dos consumos é provocado muito mais pela motivação para obter os efeitos hedónicos do que pelo evitar do quadro de privação consequente da dependência física. Por outro lado a representação social do toxicodependente fez-se a partir dos casos de consumo mais descontrolado omitindo as populações de consumidores que se mantêm funcionantes; 4) Porque a ilicitude propicia comportamentos de risco, designadamente de contaminação por doenças infecciosas;
comprar heroína em Lisboa a qualquer hora do dia ou da noite. É difícil conceber uma rede de distribuição mais eficaz: os consumidores tornam-se eles próprios traficantes introduzindo no sistema uma pressão para criar novos consumidores; 6) Porque a ilicitude impede um controlo sobre a qualidade das drogas vendidas e dos produtos de corte usados, eles próprios frequentemente também nocivos. Então como conceber uma política abolicionista? É importante realçar que o abolicionismo não resulta de uma atitude moral laxa face à utilização de drogas. O abolicionismo é uma estratégia política para o controlo do problema das drogas e a sua defesa radica em argumentos pragmáticos e não em posições de filosofia moral. Que objectivos para uma política abolicionista? 1) Reduzir os riscos associados ao consumo o que passa por eliminar o mercado clandestino de drogas; 2) Reduzir o número de consumidores em especial entre os jovens, por um lado controlando melhor o acesso ao circuito de distribuição, o que é facilitado se esse circuito for lícito; 3) Incluir uma pedagogia das drogas nas medidas de redução de riscos, designadamente valorizando a temperança e a utilização controlada das substâncias dentro de limites não nocivos e dando a conhecer os riscos, previamente à entrada no sistema, mas também a forma de os limitar. Que condições para a exequibilidade do abolicionismo? Como operacionalizar uma modificação política tão radical? Em que fases organizar esse processo e como implementá-lo? 1) Que circuito de distribuição? Médico, farmacêutico, comercial, estatal? 2) Para quais drogas? Deveriam criar-se circuitos diferentes em função do potencial nocivo, por exemplo, o circuito dos canabinois ser mais simples e à parte dos circuito dos opiáceos? Este ponto levanta a questão da necessidade de uma reclassificação das substâncias de abuso em função da nocividade, i. e., de uma classificação das drogas descontaminada do peso da tradição que tem mantido a clivagem lícito/ilícito; 3) Que critérios de acesso às drogas? Um circuito eficaz deverá ser capaz de equilibrar de uma forma dinâmica, de um lado o objectivo de eliminar o mercado clandestino das drogas, pelo que não pode ser demasiado restritivo, e do outro o objectivo de dificultar a entrada de novos consumidores e de redução de riscos. Uma política abolicionista tem riscos pelo que deve ser perspectivada com prudência e grande rigor designadamente reunindo o saber científico acumulado nesta área no sentido de reduzir ao mínimo os passos no escuro. De qualquer modo um argumento cujo peso não cessa de crescer são os custos da ineficácia do proibicionismo, a sua infundamentação científica e política |