Droga:

Droga:

dispositivo crítico

para um novo paradigma

Cândido M. M. da Agra

Professor catedrático de Psicologia e Criminologia

da Universidade do Porto

 

 

Nota prévia

Antes de tudo desejo exprimir a Sua Excelência o Senhor Presidente da República um sentido bem haja pela iniciativa da organização do seminário sobre Droga: Situação e Novas Estratégias e por ter olhado para os nossos trabalhos de investigação, estimulando, nesse gesto, a nossa vontade de prosseguir.

Exprimo ainda, o meu afectuoso agradecimento a todos os meus colegas de equipa do Centro de Ciências do Comportamento Desviante da Universidade do Porto, pelo muito que tenho aprendido com os seus trabalhos de investigação e pela coragem que me têm transmitido nesta nossa «guerra» contra a ignorância da droga.

E, porque não hei-de dizê-lo, neste momento não sei bem o que vale mais: se o conhecimento que ao longo dos anos fomos produzindo, se a propriedade emergencial do seu processo de produção: a solidariedade.

Enfim, quero deixar bem explícito, desde já, o conteúdo e o propósito da minha comunicação (1). O que aqui venho dizer resume-se a dois princípios:

1.° Há que lutar contra a miséria do conhecimento científico no domínio do fenómeno da droga. Esta «guerra» do conhecimento da droga exige a constituição de dispositivos de invenção crítica. Não é bom, não é sábio, não é bonito, falarmos e agirmos sobre aquilo que mal conhecemos ou não conhecemos de todo.

2.° No debate sobre a questão de como devemos nós viver com as drogas, a investigação científica não pode ser excluída. Mas também não é ela que tem de ditar as nossas decisões. A resposta a tão complexa questão só pode proceder do acordo comunicacional construído no seio de uma larga comunidade em debate aberto, esclarecido e liberto de todo o tipo de constrangimentos: ideológicos, morais, políticos, jurídicos, técnicos e científicos (2).

 

«Para alcançares o que não conheces

tens de ir por onde não conheces»

S. João de Cruz,

Doutor da Igreja (1542-1591)

Argumento:

O fenómeno da droga está longe de ser conhecido e controlado. Existem dois modos de o abordar:

II) Através de métodos já conhecidos e aplicados a outros fenómenos;

II) Através de métodos não conhecidos e que têm de ser inventados. Vale por dizer, a construção de novos paradigmas ou quadros gerais de referência, capazes de assimilar um fenómeno social como é o consumo de substâncias psico-activas (3).

Este último modo II) constitui a única via de acesso ao conhecimento e ao controlo do fenómeno da droga.

Inscreve-se na procura de um «novo paradigma» para o fenómeno da droga todo o método de conhecimento ou estratégia de intervenção que, entrando em ruptura com os modos, até agora dominantes, de explicar e agir sobre a droga, participe no processo social e histórico de invenção e construção epistemo-pragmática de novo quadro geral de referência que determine, de modo estável e dominante, quer a investigação científica, quer as práticas de intervenção.

Aqui se discutem: I) as descontinuidades e a crítica necessárias à emergência de um novo paradigma e as mudanças que o vão evidenciando; II) o programa de um dispositivo crítico de investigação que procure inscrever-se no processo histórico-científico e social da revolução paradigmática no domínio das drogas.

 

I

Descontinuidades

1. Descontinuidades nas estratégias de intervenção

A análise da história da «guerra da droga» («war on drug») revela-nos três grandes descontinuidades nas estratégias que designo por «terror interventivo», «engenharia da química psicotrópica» e «intervenção mediadora».

I) Terror interventivo

Caracteriza-se esta estratégia por quatro aspectos fundamentais:

a) O princípio do «alienus»: o fenómeno da droga (e seus actores) é alheio à sociedade e seu inimigo;

b) O princípio da agonística: a acção a empreender em relação ao fenómeno (estranho inimigo) é de natureza bélica, isto é, a intervenção coloca-se sob o signo do combate;

c) O princípio da irradicação: o combate à droga tem por ideal uma sociedade sem drogas. A luta visa a irradicação do fenómeno;

d) O princípio do «tudo é bom»: quanto aos meios de combate todos são legítimos, como todo o bom cidadão é necessariamente bom combatente.

A conjugação dos quatro princípios determina uma multiplicidade de combates dirigidos por fúrias instintivas, paixões de poder, pânicos morais. A ciência, a ética e a discussão racionalmente argumentada são, aqui, tão inimigas como a própria droga.

II) Engenharia da química psicotrópica

A intervenção, nesta estratégia, reparte-se em duas subestratégias, segundo um critério pedido por empréstimo à própria droga: uma estratégia dura para o tráfico, uma estratégia leve para o consumo. A primeira, mantém os princípios do terror interventivo: tem o inimigo como alienus e exclui-o agonisticamente para o exterior (4); a segunda, mantém esses princípios na forma, mas altera-lhes o conteúdo: transmutando o alienus (o consumidor de drogas e o consumidor-traficante) num doente-delinquente exclui-o para o interior, através dos dispositivos médico-psicológicos e jurídico-penais. O princípio da irradicação desloca-se do plano social (uma sociedade sem drogas) para o plano individual (o ideal de uma vida sem drogas). O princípio do tudo é bom ao nível do tratamento e da prevenção é dissimulado por uma linguagem técnica e proto-científica como, por exemplo, as noções de inter, multi, pluri, trans disciplinaridade aplicadas às tradicionais divisões técnicas de intervenção: a prevenção, o tratamento, a reinserção. Isto é, todos os meios e todos os actores são bons (família, escola, comunidade, etc.) para se atingir o estado de ascese que é uma vida individual sem drogas, desde que orquestrados pelo poder-saber técnico, emergente das engenharias médica, psicológica, social e jurídico-penal.

 

III) A intervenção mediadora

Assim designo esta estratégia para significar uma terceira atitude que anuncia o advento de sínteses criadoras. Esta estratégia, ao nível da intervenção sobre as drogas, obedece a princípios que representam uma ruptura com os princípios que governam a guerra da droga (a guerra na estratégia do terror interventivo e na estratégia da engenharia da química psicotrópica). Princípios da estratégia mediadora (definidos por oposição aos princípios do terror interventivo):

a) Princípio da imanência

O fenómeno da droga e seus actores não é um fenómeno estranho ou alheio às sociedades actuais. Bem pelo contrário, ele exprime, noseu exagero, um estado imanente ao normal funcionamento das sociedades modernas que se reclamam do desenvolvimento, do progresso e da técnica (5).

 

 

b) Princípio da tolerância

Diz-nos este princípio que somos obrigados a conviver com o fenómeno da droga e a tolerá-lo, quer na vida das sociedades, que o engendram, quer nos estilos de vida dos indivíduos, que gerem de diferentes modos o uso da droga (6). A ideia de que a guerra da droga está perdida já se tornou lugar comum. A atitude arrogante da agonística das drogas tende a dar o lugar a uma atitude de humildade perante o fenómeno.

c) Princípio do mal menor

O ideal da irradicação tende, cada vez mais, a ser substituído pela política realista da redução: «redução da procura», «redução dos riscos» e «redução dos danos». Quer dizer, abandonamos a ideologia de uma sociedade sem drogas. Contentamo-nos em reduzir custos e males individuais, institucionais e sociais inerentes ao consumo e ao
mercado.

d) Princípio da irreversibilidade

Existem situações de consumo de drogas que são irreversíveis. Tais situações colocam questões humanitárias e éticas. Assumi-las e responder-lhes implica experimentações que põem radicalmente em questão os «tabus» que durante décadas dominaram o discurso e as «tácticas» do combate à droga (v. g. a experimentação sócio-sanitária suíça).

A conjugação dos quatro princípios revela-nos uma estratégia que, contrariamente ao terror interventivo, é determinada pela sensibilidade ética, pela vontade de conhecimento científico, pelo domínio da razão argumentativa e pragmática, numa palavra, por uma filosofia da praxis.

2. Descontinuidades nas estratégias de conhecimento

O conhecimento do fenómeno das drogas caracteriza-se, simetricamente à intervenção, por três descontinuidades: o terror explicativo, a investigação operacional, a investigação científica crítica.

I) O terror explicativo é o corolário do terror interventivo

Esta estratégia de intervenção age sem conhecimento crítico, satisfaz-se com os a priori do pensamento animista e das práticas técnicas ritualizadas. A droga é explicada por um discurso coagulado que fixa e naturaliza as evidências imediatistas da problematização social e da intervenção técnico-administrativa. Assim, fica vedado o caminho à evidenciação crítica operada pelo método científico e pelo pensamento filosófico.

II) A investigação operacional

Trata-se da investigação regida exclusivamente pelo princípio da razão instrumental: a produção de conhecimento limita-se ao saber fazer técnico em ordem ao controlo dos comportamentos-problema. Estão, neste caso, alguns modelos que definem objectivos, métodos e, mais recentemente, manifestam as preocupações de avaliação.

O fenómeno da droga é, assim, aprisionado na razão técnico-
-assistencial, constituída na cultura institucional dos dispositivos sócio--sanitários e penais. Reduzido à categoria de doença e de delinquência, sobre ele se aplicam sistemas de conhecimento cujos referentes paradigmáticos são esquemas explicativos como normalidade-patologia, físico-psíquico, sintoma-doença, responsabilidade-irresponsabilidade, culpa-pena, pena-comportamento, etc.

Os dois grandes sistemas de captura conceptual, droga-doença, droga-delinquência, convocam algum do adquirido de diferentes disciplinas clínicas (a medicina, a psiquiatria, a psicanálise, a psicologia) através da formação universitária de base dos técnicos que operam nos dispositivos médico-psicológicos e penais da droga.
O fenómeno da droga é integrado nas disciplinas médico-psicológicas como mais um dos seus objectos, neste caso um objecto enigmático, que tem dado mais aos métodos, técnicas e estratégias dessas disciplinas, do que delas tem recebido, em criatividade teórica e dinamismo pragmático.

III) Ciência do comportamento adictivo: um novo paradigma da investigação

Sinais da emergência de um novo paradigma de investigação vão surgindo aqui e além. Eis alguns dos mais significativos:

a) Abandono dos modelos: droga-doença, droga-delinquência em proveito do conceito de «forma de vida»;

b) Descentração das disciplinas clínicas, designadamente, dos modelos médico-psicológicos;

c) Análise dos paradigmas actuais do pensamento científico e sua aplicabilidade à composição de novos modelos explicativos;

d) Emergência e desenvolvimento do pensamento crítico-filosófico;

e) Constituição de esquemas interdisciplinares e de programas de investigação multidimensionais, capazes de integrar o complexo de variáveis que se cruzam no fenómeno droga: psicofisiológicas, psicológicas, sociológicas, antropológicas, históricas, económicas, jurídicas, linguísticas, éticas;

f) Adopção de métodos capazes de estudar o fenómeno nas suas manifestações espontâneas, fora dos quadros dos dispositivos assistenciais e penais (por exemplo, as etnometodologias);

g) Experimentação sócial e sócio-sanitária, científica e eticamente controladas.

 

 

3. A crítica e a investigação-intervenção

Como corolário das descontinuidades operadas aos níveis da investigação e da intervenção, dir-se-á que a articulação entre o conhecimento e a praxis, se organiza em três níveis: acrítico, pré-crítico e crítico.

I) Nível acrítico ou a impossibilidade da investigação/acção

Neste nível a acção (intervenção) anda à solta: no reino que vai do terror interventivo à intervenção técnica ritualizada. A intervenção cega, rainha deste reino de trevas, não só rejeita como bloqueia a produção de conhecimento que vai para além do imediatismo emotivo-cognitivo ou da rotina das práticas institucionais, ritualizadas nos códigos da cultura técnica dos dispositivos da droga.

II) Nível pré-crítico: a investigação/acção técnica

Fixada na razão instrumental, repousa, este nível, na crença de que o fenómeno da droga é, por natureza, enigmático, uma «caixa negra» impossível de desvendar: assim se torna a investigação científica inútil. Basta, então, transpor ou inventar um conjunto de técnicas, enquadradas, eventualmente, por um ou outro sistema teórico já estabelecido. Algum experiencialismo quebra, a este nível, a rotina da intervenção técnica ritualizada, no geral, enquadrado pelo que convencionaram chamar experiências ou projectos piloto. Mas, os ganhos teóricos do experiencialismo são nulos e os seus efeitos práticos dificilmente avaliáveis. Lamentavelmente, o experiencialismo tem dominado sobre a investigação científica fundamental e aplicada, em nome do inadiável agir e, sobretudo, de um agir que tem de entrar em cena nos espectáculos da tecnocracia administrativista das drogas (7).

III) Nível crítico

Nível de investigação/acção que emerge da articulação entre a intervenção mediadora e o campo interdisciplinar de uma ciência autónoma do comportamento adictivo. Habitando o pensar crítico, a intervenção é geradora de conhecimento, assim como a investigação é transformadora das práticas. Acreditando que o fenómeno da droga não é uma «caixa negra», a investigação/acção crítica vence a gravidade que atrai o pensamento para os pontos da ilusória segurança: ora para os modelos intuitivos e operacionais da prevenção, do tratamento e da repressão das drogas, ora para os modelos explicativos dependentes dos paradigmas disciplinares estabelecidos.

II

Para um novo paradigma:

programa para um dispositivo crítico de investigação

A Fala social sobre o fenómeno da droga está polarizada nas políticas: repressão, despenalização, liberalização. Atacá-lo (com a artilharia pesada ou as armas químicas que as tácticas da guerra das drogas foram inventando), controlá-lo, deixá-lo à solta (segundo as diferentes formas que o sentimento da guerra perdida vai configurando), eis a substância da questão. As políticas são os catalisadores da problematização da droga. E a politização das políticas, é a sua catálise: a colonização política do fenómeno da droga, pela persistência da sua presença, tem destruído composições discursivas de primordial importância; a saber, a destruição do conhecimento crítico (científico e epistemológico). Na função catalítica da politização das políticas, encontramos a razão do estado catastrófico do conhecimento científico do consumo da química psicotrópica.

Como hão-de julgar os séculos futuros uma sociedade que, devendo muito dos seus progressos ao conhecimento científico, o recusa a um fenómeno que tanto a aflige? Ignorabimus! Aconselha, no entanto, o simples bom senso que não podemos adiar por mais tempo a construção de um sólido e sistemático pensamento crítico-científico do fenómeno da droga.

Discutamos, então, as linhas gerais dessa arquitectónica do saber das drogas (ou máquina de produção de conhecimento das drogas) que aqui chamamos dispositivo crítico para uma ciência do comportamento aditivo (8). Façamo-lo em quatro direcções: I) Na primeira direcção, definem-se os princípios reitores da constituição do dispositivo crítico; II) Na segunda, apresenta-se a sua estrutura e o seu modo de funcionamento; III) Na terceira, «trata-se do seu espaço-tempo; IV) Por fim, discute-se, sob a forma de epílogo, da sua normatividade discursiva.

Antes, porém, de proceder ao breve desenvolvimento das quatro direcções de análise esclarecerei o conceito de dispositivo e a perspectiva de ciência que ele implica.

O conceito de dispositivo, no âmbito da filosofia e história do saber e das ciências designa as ligações «clandestinas» entre esferas culturais separadas pela modernidade: o saber e a ciência, o poder, a justiça, a moral e a subjectividade. Assim, ao conceber um sistema de produção de conhecimento sobre drogas em termos de dispositivo crítico, resisto à representação cientista da ciência (representação ainda dominante) como esfera isolada da praxis social-histórica: isolada, e a ela oposta, como se a procura da verdade como ideal (que é profundamente ideológico) assim o exigisse. Dito breve, a ciência do comportamento adictivo que procuro e cujo perfil aqui apresento, não pretende uma verdade objectiva das drogas descoberta na posição vertical em relação à experiência cultural geral e das drogas em especial, experiência feita de uma «liga» cujos elementos são saberes práticos, práticas discursivas e normatividades múltiplas. A necessária distância crítica de uma ciência crítica do comportamento adictivo situa-se antes em plano horizontal: arrancando da Experiência, a ela devolve, não a verdade, mas a unitas multiplex dos possíveis jogos de verdade sobre o fenómeno da droga.

Inscreve-se, pois, esta perspectiva, na tradição pragmatista representada pelo pensamento de M. Foucault, (com quem aprendi o conceito de dispositivo como elemento do método arqueológico e genealógico do saber), de Th. S. Kuhn (de quem retiro o conceito de paradigma e de comunidade científica, como conceitos chave do método de construção das ciências), de Dewey e de Rorty ao conceberem o conhecimento como acção cujo sentido vital tem por modelo a solidariedade humana. Devedora é, ainda, esta perspectiva à filosofia da praxis, em especial, ao conceito de ética da comunicação de J. Habermas.

Assim entendidos, não se estranharão as considerações inabituais deste texto sobre a produção do conhecimento crítico das drogas. Efectivamente, elas não relevam do quadro da fala dominante sobre a droga. Pelo contrário, representam uma transgressão em relação às formas habituais do dizer sábio das drogas. Mas não são, afinal, as transgressões especulativas, os discursos inabituais, a condição necessária ao advento de novos paradigmas?

1. A política científica do dispositivo

Um dispositivo de produção de conhecimento crítico sobre drogas exige a definição de princípios gerais, a ter em conta pelos diferentes actores, para que possa constituir-se e funcionar uma identidade da área científica. O conjunto destes princípios é, para este domínio, o que é uma Constituição para um Estado. Metaforicamente, o conjunto dos princípios fundadores representam a constituição epistémica do dispositivo, definem o quadro geral da sua política científica.

 

a) Princípio da descolonização e da autonomia

A guerra da droga mobilizou, para o domínio da alteração dos estados de consciência pelas substâncias psicotrópicas, quatro grandes categorias de empreendimentos de controlo: morais, político-jurídicos, médico-psicológicos e mediáticos. Do longo processo de colonização do fenómeno por tais empreendimentos «civilizacionais», resultou a sua naturalização em quatro grandes registos: a droga mal social (o «flagelo da droga»), a droga-delinquência, a droga-doença, a droga-espectáculo (o chamado «mundo da droga» explorado sensacionalisticamente pelos mass-media). Estamos, assim, espontaneamente inclinados a enquadrar a droga em quadros de referência dicotómicos: bem-mal, lícito-ilícito, normal-patológico, o mundo da boa vida comum e o submundo das vidas marginais.

Pois bem, um novo quadro de referência (ou novo paradigma), exige o abandono das vias traçadas e batidas pela colonização das drogas. Dito doutro modo, para alcançarmos o conhecimento da droga, obrigamo-nos a um processo de descolonização que equivale a um inicial estado de espírito científico traduzido pela fórmula do «ir por onde não conheces», seguindo o conselho de S. João de Cruz. Estado de angústia? Sim, mas daquela que necessita todo o acto criador e, em especial, o acto criador que institui por si e em si o nomos do conhecimento: a angústia criadora da ciência do comportamento adictivo, autonómica.

b) Princípio da sólida construção teórica como condição da sábia intervenção prática.

A intervenção crítica supõe o conhecimento do fenómeno sobre o qual intervém. Tal conhecimento, ao aspirar ao nível crítico, exige a produção de teorias. Como dizia K. Lewin «não há melhor prática do que uma boa teoria». No nível crítico, é a própria distinção entre teoria e prática que se torna supérflua. Como definimos então a teoria? No sentido mais radical e etimológico, da thêoria. O teórico é o espectador que vem participar no desenrolar de um drama (no sentido original de acção), mas, pelo seu papel de espectador activo, cria, também ele, o sentido do drama no qual ele próprio se vê representado com toda a humanidade. Os cientistas theôrioi da droga não a representam cognitivamente como coisa-objecto da natureza. Trocando o regime da representação pelo da dramática concreta da droga, elaboram quadros de referência conceptuais suficientemente gerais e abstractos para nele caberem, para além da droga, todos os comportamentos sociais que a lógica da sua significação denuncia e desoculta: as dependências, as servidões, o consumo, o espectáculo, o prazer, o individualismo, etc.

c) Princípio da dupla estratégia: para além do cientismo e do moralismo

A produção teórica opera por duas estratégias geralmente antagónicas: empírico-crítica (objectiva) e hermenêutica (axiológica). A natureza do fenómeno da droga, compreendendo ao mesmo tempo facto e valor, exige a articulação das duas estratégias. O princípio da ultrapassagem do antagonismo, empiria-axiologia, não significa, porém, qualquer eclectismo. O ecléctico é, por princípio, estéril e medíocre. Visa sim, um caminho que evite o cientismo e o moralismo. O cientismo no domínio das drogas, reclama-se da neutralidade axiológica; liberto de valores morais (value-free), vai direito a «factos objectivos» constitutivos da ontologia do fenómeno da droga, na esperança da sua previsão e controlo. O moralismo, impregnado da mística humanitária, e na completa ignorância dos factos e das leis que as articulam no comportamento adictivo, vai direito aos «valores» que proclama como «supremos», neles esperando encontrar resposta para a única questão que lhe interessa: o que devemos fazer? Reprimir, penalizar? Educar? «Atacando», ao mesmo tempo, facto e valor a estratégia do dispositivo da ciência do comportamento adictivo que aqui se propõe não é nem um behaviorismo (ou ciência natural do comportamento) nem um humanismo. Foge de um e de outro por uma atitude agnóstica em relação à própria possibilidade de distinção entre facto e valor, natural e humano, ontologia e moral.

Como? Entre o etológico, ou biologia do comportamento, e o ético, não há solução de continuidade, mas sim uma formação ascendente (designei-a, noutro lugar, de sistema etoético) composta por vários níveis de integração que permitem uma doce passagem do facto ao valor, da ontologia à teleologia. Dessa formação, emerge um sujeito concebido como artista de si próprio, capaz de se criar outro a partir das suas matérias factuais (biológicas, psicológicas, sociais). Chamei-lhe sujeito autopoiético: aquele que transforma os seus factos objectivos em valores subjectivos, distribuídos por diferentes e múltiplos planos de significação existencial. É a esses planos ou formas de vida que se dirige a estratégia empírico-hermenêutica requerida por um novo paradigma das drogas: em ruptura com o cientismo, cego quanto à face axiológica dos factos; em ruptura com o moralismo, cego quanto à face objectiva dos valores. Conceitos alternativos à «droga-doença», à «droga-delinquência», à «droga-vício»? Aí está, pelo menos um: a droga-plano existencial. Isto é: a estrutura, a função e a significação da vida concreta onde se efectiva a hypostasis dos factos e dos valores.

 

 

 

 

d) A formação do espírito crítico

O nível crítico da investigação exige um processo permanente de formação do espírito científico e filosófico. O processo de formação compreende várias fases (níveis) que vão do intuicionismo e experiencialismo ingénuos até à formação científica madura.

Inspirando-me em Bachelard e Th. Kuhn, definirei três níveis da formação para a investigação científica.

1.° Nível: a investigação pueril (investigação curiosa)

Pelo gosto do jogo e seus prazeres, as crianças e os adolescentes multiplicam experiências sem consistência nem continuidade. Inconsequentes. É a experiência pela experiência, ditada mais pela curiosidade e pretensão à originalidade, do que pela vontade de produção e construção de conhecimento sólido perdurável. É o amadorismo científico: não define métodos, não se enquadra teoricamente, não define metas.

Existe investigação amadorista e pueril no domínio das drogas? Quantas experiências ditas piloto têm sido feitas sem método, sem enquadramento teórico, sem objectivos científicos e sociais claramente definidos, sem consistência e sem continuidade? Miséria do espírito científico no domínio das drogas.

2.° Nível: a investigação doutoral (ou as panaceias-científicas)

É a investigação própria do primeiro voo abstrativo (no geral, conducente a uma tese de doutoramento). Deslumbrados com a sua performance científica, eventualmente, com êxito e sucesso social e técnico, os autores da peripécia científica não cessam da repeti-la, exibi-la, reproduzi-la, «vendê-la». Estão, neste caso, os «modelos» com algum grau de abstracção que se tornaram «receituários», senão mesmo, panaceias explicativo-interventivas.

Existem, no domínio das drogas, investigações do tipo panaceia explicativa e interventiva, procedentes do espírito doutoral? Poderão vir a existir, na medida em que as Universidades investirem na droga. Como ainda não abundam teses de doutoramento em drogas, o perigo não é, ainda, grave.

3.° Nível: a investigação no ponto da «tensão essencial»

O cientista, em permanente estado de angústia e intranquilidade criadora, abre-se à dialéctica de dois momentos: o da desconstrução dos paradigmas, mesmo daqueles que lhe serviram de guia, e o da reconstrução ou invenção de novos paradigmas, na busca dos quais se relança. A tensão essencial é a reconstrução permanente das estruturas do seupensamento científico, em função da natureza dos seus objectos, e em função da intersubjectividade científica. A tensão essencial obriga à ideia de comunidade científica e à leitura do seu espaço-tempo: sempre situado entre tradição e inovação, o sítio do permanente processo de invenção crítica e produção do conhecimento.

 

 

2. A estrutura funcional do dispositivo

Neste parágrafo se define a natureza, o método, o objecto e o funcionamento próprios do novo campo científico que o fenómeno da droga obriga a inventar.

a) Natureza

A lei do efeito, segundo a qual temos de ter em conta as substâncias, os indivíduos e os contextos, se quisermos compreender o efeito das drogas, é de maior alcance do que normalmente os técnicos da droga pensam. Com efeito, o enunciado desta lei define, tacitamente, a natureza do sistema de conhecimento científico requerido pelo objecto problema: uma Biopsicossociologia (9). Fica claro: o saber das drogas não é mais um ramo das ciências constituídas. Não é ramo das ciências bio-médicas (dando conta das substâncias, já lhes escapam os indivíduos e os contextos); não é ramo das ciências psicológicas e do comportamento (dando conta dos indivíduos, já lhes escapam as substâncias e os contextos); não é o ramo das ciências sociais (dando conta dos contextos, já lhes escapam as substâncias e os indivíduos).

A Biopsicossociologia do comportamento adictivo é, antes, um campo transdisciplinar paralelo (e não dependente) a domínios próximos, como aqueles que têm por objecto a loucura (psiquiatria) ou o fenómeno criminal (a criminologia). Não se trata de verdadeiras disciplinas científicas, cujos objectos se recortam quase «naturalmente» na arquitectura dos níveis da realidade, como a Física, a Química, a Biologia, a Psicologia e as Ciências Sociais. A Psiquiatria, a Criminologia e a Ciência do Comportamento Adictivo são disciplinas constituídas, não em torno deníveis da realidade, mas de problematizações biopsicossociais da experiência humana da existência. A ciência das drogas não é, pois, mais um ramo das árvores do Éden do Pensamento. A sua natureza não é arborescente mas rizomática: na esfera do saber posiciona-se, não na vertical, mas na horizontal. Desenvolve-se subterraneamente como subterrâneo é o seu objecto, o consumo das drogas. Como transdisciplina-rizoma atravessa territórios disciplinares múltiplos (a química, a fisiologia, a medicina, a psicologia, a sociologia, a economia, a história, o direito), mas sem se confundir ou depender deles. E entrecruza-se, em certos pontos, com as duas disciplinas (também caules subterrâneos) que habitam na sua vizinhança: a Psiquiatria e a Criminologia.

 

b) Método

A ciência do comportamento adictivo não tem método único e próprio. Definida, como foi, a sua política e a sua natureza, temos de concluir, por determinação lógica, pela polivalência e articulação táctica de diferentes métodos. Fundamentalmente, a experimentação, a observação e a interpretação.

I) A experimentação, desde a laboratorial à experimentação social (v. g. na experiência social holandesa e mais recentemente suíça) tenderá mais, se forem conjugadas, para a produção de enunciados explicativos ao nível estruturo-funcional da lei do efeito evidenciando mais o lado factual do consumo.

II) A observação, desde os diferentes métodos e técnicas de observação psicológica até à observação etnográfica (que faz da rua o laboratório) privilegiará a descrição das estruturas, funcionamentos e processos dos indivíduos consumidores e seus contextos eco-sociais.

III) A interpretação, através das diferentes técnicas dos métodos narrativos, explorará a dimensão temporal e a construção de significações, tendendo mais a iluminar a face axiológica do fenómeno.

No entanto, os métodos só ganham sentido pelo enquadramento teórico-paradigmáticos que, como se viu, não é o da droga doença nem o da droga delinquência, mas sim droga plano de significação existencial, ponto de convergência da droga-facto e da droga-valor. Assim sendo, todos estes métodos são bons, úteis e sábios, se conduzirem ao esclarecimento dos nossos sistemas de vida e à invenção colectiva de novas formas de existência. Serão maus, inúteis e enganosos, se redundarem no cientismo, no tecnicismo e no moralismo.

c) Objecto

Ciência de problematização, o seu objecto não é naturalmente dado mas socialmente construído. Obriga-se, assim, o cientista das drogas a um trabalho de análise do sistema de crenças que envolvem o seu objecto de estudo, das formas como a experiência cultural o constitui e o torna objecto equivalente aos objectos da natureza, o naturaliza, o reifica (momento da desconstrução do objecto). Depois, no momento seguinte, reconstrói-o, colocando-o em relação com o maior número possível de outros objectos. Por este processo, o objecto inicial é transformado em sistema ou conjunto de elementos logicamente articulados entre si. Assim, por exemplo, deixando de definir o objecto pelo critério lícito/ilícito (socialmente constituído pelo poder jurídico--político-moral), os elementos do subsistema das substâncias são todas as substâncias (legais ou lhegais, problemáticas ou não) «cuja natureza química altera a estrutura ou função da vida do organismo» (conforme a definição de droga pela OMS). Abandonando a grelha normal-patológico (própria do saber médico-psicológico), para descrever os comportamentos de consumo, os elementos que integram o subsistema dos indivíduos consumidores e seus comportamentos, situam-se aquém e além dessa única figura a merecer estudo e cuidado: «o doente» que se chama toxicodependente cliente dos centros de tratamento. Os comportamentos de consumo e seus contextos deverão ser estudados desde as experiências desviantes das subculturas juvenis, dos processos de aprendizagem social da criança em contextos de uso desviante de drogas, até à white collar addiction (10) do director de empresa socialmente integrado.

A reconstrução lógica do objecto, pelo salto abstractivo que a caracteriza, conduz a uma outra narrativa do fenómeno, cuja coerência articula novas noções, tradutoras de novas evidências-objectos (dependências, addiction, autonomia, saber do uso, uso responsável, abuso, experiência de sensações, tipos de consumo, estilos de vida, etc.). O sistema dos objectos reconstruídos, não abandona o objecto ou explanandum inicial (a toxicomania, patologia-delinquência, ou a droga fenómeno social). Abstraindo-os, guarda apenas a sua lógica e abandona a sua carga ontológica. Assim ficam integrados, na sua secura conceptual, como elementos de todo o vasto sistema dos explananda da ciência das formas de vida, nas quais o consumo de substâncias é elemento significante, a ciência do comportamento adictivo.

 

d) Funcionamento

O processo de produção de conhecimento científico sobre o fenómeno das drogas compreende, na perspectiva científica em que me coloco, dois grandes ciclos: o ciclo epistémico, que tem por objectivo a construção de teorias a partir das matérias delimitadas pelo sistema de objectos; o ciclo praxeológico, o qual tem por objectivo a aplicação das teorias às situações concretas e a objectos específicos (11). Sendo os dois ciclos interactivos, podemos dizer que este modelo de funcionamento se enquadra, em termos genéricos, no modelo de investigação/acção.

No primeiro ciclo, metaforicamente «ascendente», porque de exigência abstractiva, o cientista das drogas consagra-se a um conjunto de operações encadeadas umas nas outras no sentido da progressiva abstracção: refina a reconstrução lógica dos objectos, procede à selecção dos conceitos que melhor traduzam essa lógica, estabelece séries conceptuais, articula as séries conceptuais em sistema teórico; concluída a teoria, procede ao teste da sua consistência interna, confronta-a com outras teorias das drogas; finalmente, e saindo do domínio específico das drogas, confronta a sua teoria com os paradigmas gerais do pensamento científico, assim se obrigando à participação na comunidade científica alargada. Bem entendido, o processo de construção teórica serve-se, para além de teorias da construção da ciência e da epistemologia, das metodologias empíricas acima enunciadas (experimentação, observação, interpretação).

No segundo ciclo, metaforicamente «descendente», porque de natureza aplicativa, o cientista devolve a teoria à experiência sócio-cultural pela mediação dos dispositivos de intervenção. O ciclo praxeológico, ou da aplicabilidade, compreende vários níveis de acção. Assim: I) Aplicação da teoria geral (v. g., uma teoria geral da dependência e da autonomia) a problemas concretos com ela relacionados (v. g., teoria das toxicodependências); «trata-se da passagem da teoria geral às teorias particulares; II) Aplicação das teorias particulares aos modelos e técnicas de intervenção (v. g., prevenção, tratamento, reinserção, aprendizagem de novos estilos de vida, etc.); III) Avaliação dos modelos e técnicas de intervenção inspirados na teoria; IV) Detecção de erros, revelados pela experiência, contidos nas hipóteses teóricas gerais e particulares; V) Tradução da linguagem científico-técnica para vocabulário que permita aos decisores optar por estratégias de acção. Em suma, três grandes passos constituem o ciclo aplicativo: a passagem da teoria geral à particular (no nível científico); a passagem do nível científico para o nível técnico; a passagem do nível técnico para o nível político. E, aqui, repito, mais uma vez, o sentido da ciência que defendo, utilizando as palavras de Max Weber: «a ciência é uma vocação fundada sobre a especialização, ao serviço da tomada de consciência de nós próprios e do conhecimento das relações objectivas» (1959, p. 91-92) (12).

 

 

 

3. O espaço-tempo do dispositivo: o campo tensional

Fez-se, até este ponto, a apologia da constituição de uma ciência do fenómeno da droga, fenómeno que, apesar de complexo, tem andado praticamente arredado da nobre forma de conhecimento que é o pensamento crítico: o pensamento científico e filosófico (deste último, mormente, a epistemologia ou filosofia da ciência). Mas, sinais existem de uma vontade de ciência, por parte das esferas política, jurídica e profissional. Talvez o fracasso e o cansaço do terror interventivo, da dominação política, jurídico-penal, moral técnico-assistencial, motivem o deslocamento do olhar na direcção do conhecimento científico. Os solitários e, as mais das vezes, marginalizados, lutadores da guerra doconhecimento da droga poderão, agora, ser convidados a subir aos púlpitos das catedrais do reino científico. Os perigos de tal mudança na estratégia da guerra da droga são muitos, e os cientistas da droga devem estar conscientes deles. Enuncio, apenas, o que agora se me afigura maior: a avocação no processo da investigação científica das drogas, de uma tradição de vícios cognitivos, de erros estratégicos, de técnicas
a-críticas e pré-críticas, inscritas na cultura institucional dos dispositivos de luta contra a droga. Porque a ciência não é naturalmente pura e neutra. No seu caminho, são permanentemente lançados «obstáculos epistemológicos» que obrigam o cientista a uma permanente «psicanálise» do seu pensamento (
13). Essa vigilância critica é-lhe tanto mais necessária quanto o fenómeno da droga exige a constituição de uma ciência especial (tal como a definimos) que, só pelo facto de ter de articular factos e valores, dimensão empírica e dimensão axiológica, faz dele um sistema de pensamento tensional. Como tensional é também o espaço-tempo cultural em que se situa. Porque, se a ciência pode e deve entrar em cena, na dramática da droga, não pode nem deve, por outro lado, desempenhar o papel de protagonista. A ordem do discurso das drogas é criada a partir da desordem discursiva. E, pela sua natureza, convoca a intervenção interactiva das macro-estruturas culturais normalmente isoladas sobre si próprias: a ciência, a técnica, a justiça, o político e a ética. Podemos, por isso, dizer que a droga, enquanto sistema complexo, é um atrator gerador de um campo cultural tensional, mas, ao mesmo tempo, um analisador, enquanto revelador, provocador das relações, dos actores e das forças sociais contraditórias que, nele e por ele, se jogam (14).

Chamo ligação tensional da investigação científica das drogas com os dispositivos de «luta contra a droga» aquela que evita dois tipos dominantes, mas opostos, de relacionamento (ou ligação): a atitude de absorção do conhecimento científico pelas políticas de intervenção; ou a atitude contrária, que consiste na absorção destas últimas pelo primeiro. A primeira atitude, equivale a um pacto demoníaco, pelo qual a ciência vende a sua alma essencialmente crítica: legitima «cientificamente» as políticas, constituídas e aplicadas à sua revelia, fundadas em crenças, esquemas explicativos apriorísticos, interesses, poderes… A segunda atitude, equivale a uma angelização da praxis: exemplificam-na as eternas discussões «interdisciplinares», tendo como fundo paradigmas científicos inconciliáveis, sobre problemas e situações que reclamam uma inadiável solidariedade humana (como na infecção pelo vírus HIV em toxicodependentes, as hepatites, a estigmatização, etc.)

Não sendo aqui oportuno desenvolver o conceito de droga como atrator e analisador enunciamos, no entanto, duas das principais articulações ou ligações tensionais da ciência das drogas.

 

a) A ligação com o sistema de justiça

A relação tensional da investigação científica com a esfera da Justiça, ao enjeitar a pretensão à fundamentação e determinação científica das políticas, quer proibicionistas, quer abolicionistas, cria, como alternativa, um sub-campo de estudos específicos capazes de, no entanto, esclarecer a relação entre o fenómeno da droga e as questões criminais (15).

Tal subcampo é constituído por várias linhas de investigação que devem ser determinadas por análises prévias de carácter epistemológico, capazes de evidenciar, a partir da história e da filosofia das ciências, os modos de explicação das interacções entre dois fenómenos. No nosso caso, as interacções entre o fenómeno da droga e o fenómeno criminal.

Uma primeira linha, cujo método é de natureza histórico-filosófica, dará conta da emergência e transformações da lei, assim como dos modos da sua aplicação: linha de investigação que tem por objecto processos históricos largos da criminalização das drogas. Com efeito, no discurso jurídico-penal das drogas, cruzam-se diferentes e mesmo antagónicos paradigmas criminológicos como, por exemplo: o paradigma clássico, regido pelo esquema livre arbítrio-falta-expiação e o paradigma da «defesa social» (centrado mais no indivíduo que no seu acto), rege-se pelo esquema-determinação (biológica, psicológica, social) — comportamento-tratamento. Essa confusão de paradigmas, nas políticas criminais das drogas, é bem evidente na híbrida figura do consumidor doente-delinquente. Assim se desmentiria a ideia de que o jurídico-
-penal se opõe ao clínico-sócio-sanitário.

Uma segunda linha dará conta do efeito da criminalização da droga sobre o sistema penal, tentando responder a questões como: a entrada das questões criminais relacionadas com drogas fizeram sair do sistema, impedem a entrada e menosprezam outras questões?

Uma terceira linha procurará investigar os efeitos da criminalização sobre a evolução do fenómeno, quer em termos do consumo, quer em termos do tráfico.

Uma quarta linha estudará a relação entre o consumo de drogas e a prática de delitos. Existem relações? De que tipo? Haverá aqui que estudar, por exigência de método interdisciplinar, não só os comportamentos de consumo da população prisional, mas diferentes indivíduos (consumidores e não consumidores) nas suas diferentes dimensões (neuronais, emocionais, cognitivas, comportamentais), bem como os seus sistemas de vida (16).

Uma quinta linha, de metodologia psicossocial, tem por objecto de análise a interacção entre contacto com o sistema de justiça do consumidor de drogas (quer de drogas leves, quer de drogas duras), e seus efeitos ao nível da desorganização e reorganização da identidade psicológica e social e suas repercussões no sistema de vida, bem como, na significação existencial.

Finalmente, a sexta linha, tenta responder à questão de saber se, a necessidade de o Direito dizer a norma em matéria de drogas, pode (através de metodologias de investigação/acção) passar por estratégias narrativo-mediadoras. Quero dizer, a possibilidade de experimentação de paradigmas de intervenção judiciária alternativos, quer à punição simples, quer ao tratamento na prisão (as chamadas alas de prisão sem droga) ou, ainda, outras formas terapêuticas. Designo tais estratégias de narrativo-mediadoras porque, nelas, o actor das drogas, em contacto com a justiça, não é concebido como ser delinquente ou doente ou ainda ambos, mas o gestor de um sistema de vida que se encontra, num dado estado da sua trajectória existencial, em contacto com um sistema que, ao dizer-lhe a norma, lhe cria também as condições para vir ali dizer-se, e nessa sua narratividade mediada, poder inventar-se como sujeito ético-normativo, como sujeito de justiça no seio de uma intersubjectividade na qual ocorrem rupturas e se estabelecem elos.

b) A ligação com o sistema sócio-sanitário

A relação da investigação científica com o sistema sócio-sanitário das drogas é de natureza tensional, logo pelo facto de o consumo das drogas, na perspectiva da ciência crítica do comportamento adictivo, não poder ser reduzido a uma doença. O que não significa que, entre a investigação científica e o sistema sócio-sanitário, se não estabeleçam relações constitutivas de um subcampo de estudos cujas linhas gerais sumariamente se apresentam.

Linha de investigação histórico-filosófica. Trata-se, nesta linha de pesquisa, de fazer a história crítica da patologização do consumo das drogas ou de como o fármaco evidencia, na história do ocidente, a sua natureza contraditória: meio de vida e meio de morte; de como, de tal evidenciação, se passa da problematização moral do consumo de substâncias psicoactivas para uma problematização patológica. Ora, como na criminalização, também na patologização do consumo das drogas, se cruzam diferentes e, mesmo, contraditórios paradigmas: foi a patologização segundo o paradigma psicanalítico, segundo o paradigma sistémico, segundo o paradigma cognitivo-comportamental, segundo o paradigma da saúde pública. Análises elaboradas segundo o método arqueológico e genealógico, a serem algum dia feitas, hão-de mostrar-nos continuidades subjacentes às diferentes descontinuidades. De interesse especial se reveste demonstrar, pelo referido método, a profunda continuidade entre a moral, o punitivo e o clínico-sócio-sanitário. Assim se desconstruiria a ideia, aceite como indiscutível, de que os dispositivos técnicos (da «profilaxia da droga» como lhe chamavam, noutro tempo) são imunes aos a priori morais e antagónicos aos sistemas repressivos.

Linha avaliativa. Tenta esta linha de estudos, de metodologia comparativa, responder às seguintes questões: Quais os efeitos, sobre o consumo das drogas, das múltiplas campanhas e programas de prevenção, tratamento, reinserção? Em suma, quais os efeitos dos dispositivos sócio-sanitários na chamada «redução da procura»? Produzem os dispositivos técnicos melhores ou piores resultados do que os modelos não técnicos de inspiração religiosa, moral ou punitivos? O que é um bom e um mau resultado em matéria de prevenção e tratamento de drogas? (17)

Linha epidemiológica. Nesta linha se concebem e efectuam estudos sobre a prevalência e incidência do consumo, que ultrapassem a tradicional dicotomia entre os métodos quantitativos (dominantes) e os métodos qualitativos (como, por exemplo, os fecundos métodos etnográficos); entre os métodos hipotético-dedutivos e os métodos indutivos. É no abandono dos métodos de saúde pública, inspirados no centralismo médico-positivista, que um novo paradigma epidemiológico das drogas vai abrindo caminho (18).

Linha de observação e análise diferencial. Esta linha de estudos visa os seguintes objectivos: caracterizar as formas de consumo, criar instrumentos de observação biopsicossociais, capazes de medir, com rigor, o grau e tipo de dependência; desenvolver metodologias de análise das interacções entre os sistemas de vida de consumidores e o sistema sócio-sanitário.

Linha clínica. Consagrada às doenças físicas, doenças infecciosas e às perturbações psicopatológicas associadas ao consumo das drogas (esquizofrenia, depressão, patologia do desenvolvimento, etc.). Sem, no entanto, esquecer os estudos sobre o consumo moderado de drogas e álcool e seus efeitos para a saúde. A clínica das toxicodependências constitui, ainda, uma importante fonte de conhecimento sobre os processos da toxicodependência desde que definido o quadro epistémico da clínica enquanto método de investigação.

Linha da experimentação-intervenção. A ruptura com o terror interventivo ou com a engenharia do comportamento (modelos acríticos ou pré-críticos de intervenção), só se opera com programas experimentais de prevenção e tratamento, cuja concepção e execução obedeça aos seguintes princípios gerais: definição clara e precisa dos objectivos que se propõem os programas; definição do quadro conceptual do programa; selecção e teste de adequação dos métodos e técnicas de intervenção, em função do quadro de referência teórico; definição do método de avaliação do programa. Onde estão os programas que seguiram as regras elementares de investigação científica? Encontramos sinais desta ruptura paradigmática nas práticas do sistema sócio-sanitário? Olhemos para as experiências Suíças (Genève e Lausanne). Não tanto para os aspectos mais visíveis e espectaculares: a prescrição de estupefacientes a toxicómanos em decadentes condições de vida (física, psicológica e social); não para mais um pilar na luta contra a droga (a redução de danos), mas para opróprio processo do programa experimental, o qual observou os princípios elementares acima expostos para a experimentação de um programa de intervenção: definiu objectivos precisos (diminuição do consumo de heroína ilegal, melhorar a condição de vida médico-psico-social, etc.); dotou-se de um quadro de referência que implica dimensões biológicas (v. g., pré-
-disposições genéticas, disfunções mentais), psicológicas (ansiedade, depressão), sociais (factores familiares e sócio-culturais); ou, ainda, do ponto de vista criminológico, o modelo económico-compulsivo e sistémico (Lausanne): muniu-se de um sistema rigoroso de avaliação em duas direcções, saúde e criminalidade, executado por equipas de investigadores e coordenado por cientistas séniores nos domínios da medicina e da criminologia.

A experiência é desencadeada por uma tomada de consciência crítica da política sócio-sanitária, tomada de consciência que projecta a transformação do sistema em duas direcções: na direcção da ciência (constatação do fracasso dos modelos dominantes de intervenção, necessidade de experimentação de novas formas de intervenção cientificamente enquadradas); na direcção da ética (crítica da ideologia de uma sociedade sem drogas, sensibilidade à miséria física, psicológica e moral, preocupação com a marginalização e a exclusão).

O facto de os programas experimentais terem convocado a reflexão e a aprovação do sector político, da comissão da ética e da esfera científica, é bem o sinal do que acima se afirmou: o fenómeno da droga é um analisador, um atrator cultural que obriga à interacção de esferas normalmente separadas e incomunicáveis. Eis, pois, uma experiência emergente do campo tensional. O fenómeno da droga se, por um lado, vem revelar na superfície profundas rupturas sociais, por outro lado, obriga a um inabitual pacto comunicacional entre estruturas culturais até aqui fechadas sobre elas próprias.

 

4. O pacto comunicacional

A droga diz respeito a todos?

— Mas nem todos observam o mesmo diante da «coisa» que se chama droga.

O cientista, o técnico, o jurista, o político, o moralista, o cidadão, o consumidor de drogas têm diferentes experiências da droga. Diremos, assim, que a experiência cultural da droga é composta por um mosaico de experiências diferentes, dispostas sobre um fundo de natureza tensional. A experiência científica contraria, normalmente, a experiência do sentir comum, não raramente, a experiência técnica. Por seu turno, a experiência jurídica constitui-se num difícil jogo de equilíbrio ao tentar adaptar-se, ao mesmo tempo, a forças experienciais contrárias: ao conhecimento científico e técnico, de um lado, à experiência comum do outro. E assim…

Vamos todos agora discutir a droga?

Perguntemo-nos antes: em que dimensões?

A despenalização, a legalização?

— Nós, cientistas, somos mudos no debate.

Os factos cientificamente estabelecidos?

— Nós cidadãos, nós políticos, nós juristas, nós moralistas, nós consumidores de drogas, somos mudos no debate.

Acordos e convenções internacionais?

— Nós cientistas, nós cidadãos, nós consumidores de drogas, somos mudos no debate.

A droga é «boa», a droga é «má»?

— Só nós, consumidores de drogas, não somos mudos no debate.

Perguntamo-nos ainda: existe alguma questão suscitada pela droga, cuja generalidade seja capaz de catalisar as experiências de todos?

— Sim, aquela que nunca colocamos e que, paradoxalmente é a mais fundamental:

Que nos acontece? Como devemos nós viver?

Que nos aconteceu, a nós modernos, para nos tornarmos animais de consumo e do consumo da química psicotrópica? Podemos nós, ainda inventar uma arte de viver e conviver com as drogas?

Quanto a esta questão ninguém pode ficar mudo. Para ela podem convergir as experiências de todos, para ela, converge toda a experiência cultural. O debate sobre drogas recorta-se sobre um fundo discursivo que implica uma hermenêutica da experiência da nossa existência.

O pacto comunicacional é uma ficção que traduz esta exigência de fundo, bem como enuncia as condições para o debate do qual ninguém se pode abster, porque a todos diz respeito. As condições do pacto comunicacional definimo-las em quatro enunciados: Vida-Morte, Rosto, Dom, Razão.

Vida-Morte. Esta primeira condição decorre da exigência que consiste em referirmos a nossa experiência particular da droga à experiência geral da nossa condição de existentes. Sob esta condição, a droga é discutida no plano da vida e da morte. Como qualquer um outro que se debate com a existência, a propósito do aborto, da eutanásia, do suicídio, etc. Debate, afinal, com a questão geral, que é ética, da possibilidade de dar destino ao que está destinado: aos níveis biológico, fisiológico, psicológico e social.

Rosto. Se a primeira condição projecta o debate na direcção da universalidade, a segunda condição, enunciada como «rosto», projecta-o na direcção da singularidade. Inspirados na filosofia ética de Levinas, diremos que o fenómeno da droga tem «rosto»: é expressão singular de um outro que me interpela. Já o dissemos, a droga não é um objecto da natureza mas uma densidade antropológica e, enquanto tal, é fala, linguagem. Durante décadas reificámos «a droga» na ideologia do «flagelo» e na ontologia das substâncias. É tempo de a olhar no rosto, de a hospedar, de encontrar os códigos da sua expressividade. E, antes de falar, compulsivamente sobre ela, como coisa muda, deixemo-la agora falar.

Antes de tomarmos a palavra sobre a droga, deixemo-nos tomar pela palavra que ela é: incarnada em substâncias, indivíduos e situações. Aí vem ela dizer: os envolvimentos da sociedade do desenvolvimento; as dependências das sociedades das liberdades; as servidões das sociedades da democracia; o mal-estar das sociedades do bem-estar (19).

Dom. Como a droga se exprime segundo a sua própria natureza, assim todos os demais actores do grande debate sobre as drogas vêm dizer a experiência particular na experiência geral, cada um segundo o seu dom. Não temos de falar todos a mesma linguagem comum, a qual, de tão saturada de estereótipos, se tornou incapaz de exprimir a diversidade das experiências: axiológicas, cognitivas, afectivas, sensoriais, fisiológicas, etc. A experiência do fenómeno da droga, sob a condição do dom, implica a suspensão dos juízos, das atribuições, das atitudes, das acções, dos sentimentos constitutivos da experiência artificial «do mundo da droga», experiência construída pelos simulacros e interesses dos empreendimentos morais, políticos, mediáticos, feitores do estado da alma alienada a que se chama «opinião pública». Experimentar o fenómeno da droga segundo o dom da narratividade singular equivale à recusa crítica de qualquer interesse (individual, social, político ou comunitário) e de qualquer filtro ou obstáculo que nos vede o acesso directo à experiência da transcendência na imanência que é a história da nossa vida e da nossa morte individual e colectiva.

Razão. Sob esta condição, o debate sobre a droga obriga-se à razão argumentativa. Dominado por paixões, emoções, interesses, o discurso sobre as drogas tem sido mais governado pela etologia do comportamento do que pela ética do conhecimento. A elevação do debate ao plano onde só reine a procura da verdade, na consciência do limite e da finitude, torna o pacto comunicacional sobre as drogas digno desta Humanidade que tanto se tem orgulhado das luzes da sua razão.

 

 

 

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(1) O tema que tratei, foi-me solicitado pela organização do seminário sob o enunciado «Em busca de um novo paradigma». Agradeço, pois, à organização do seminário o facto de me terem proposto tratar um tema que vem ao encontro das minhas predilecções de investigação epistemológica.

(2) Neste texto contei com as sugestões críticas dos meus colegas Doutor Luís Femandes e Doutora Celina Santos que, além disso, contribuiu, como de costume, para a revisão da forma.

(3) Utilizo o conceito de paradigma no sentido que lhe atribuiu Kuhn, Th. S., 1972, «La structure des révolutions scientifiques», in Filosofia da História da Ciência, Flamarion. Emerge um novo paradigma, ou quadro de referência geral e estável, quando ocorre uma «revolução científica» na história de uma ciência após um período de crise em que o paradigma, até aí dominante, não é capaz de dar conta de um dado fenómeno. No caso do fenómeno da droga parece evidente este processo. Que os paradigmas de conhecimento e de intervenção, que até aqui dominaram, entraram em crise, surge como uma evidência. É, assim, de esperar uma revolução no domínio do conhecimento e nas políticas da droga.

O conceito de paradigma, na sua transposição do domínio da epistemologia para o domínio das drogas, merece reflexão mais cuidada, inoportuna, no entanto, no quadro deste texto.

(4) A estratégia da exclusão agonística para o exterior, dos actores («alienus») do mercado da droga, regida pelos princípios da irradicação e da lógica do «tudo é bom» (ou tudo vale) revela bem os seus efeitos perversos nas milícias contra os ciganos duplamente «alieni»: pela sua condição de «cigadania» e pela sua condição de comerciantes de droga.

(5) Tendo em conta este tipo de sociedades e o estado do seu desenvolvimento, o consumo de droga é normal (o que não é idêntico a saudável). E nisto, nada digo que não tenha sido já dito há cem anos pelo sociólogo Durkheim, a propósito da criminalidade. Assim, criminalidade, drogas, comportamentos desviantes em geral, são o lado oculto do progresso e do desenvolvimento acríticos. A ordem liberal acrítica paga-se com desordens e servidões, o bem-estar acrítico paga-se com o crísico mal-estar.

(6) Não esqueçamos aqui a máxima latina: abusus non tollit usum, (o abuso não impede o uso). O facto de muitos indivíduos abusarem das drogas (os toxicodependentes) não anula o facto de haver, também, muitos outros que as usam moderadamente: tais indivíduos existem e não são tão pouco quanto se pensa.

(7) Se os dispositivos da droga (nacionais e internacionais) tivessem capacidade de aprender com a experiência, retirariam frutuoso proveito com a sistematização de todos os «projectos» e «experiências piloto» estéreis feitas ao longo dos últimos 20-30 anos. Conviria, aliás, constatar o enquadramento teórico, os objectivos, a metodologia de um ou outro que possa ter vingado no irónico processo de «selecção natural» que consiste na exclusão, pelo próprio fenómeno da droga, dos programas que se destinavam a excluí-lo.

(8) A ideia-programa de uma ciência do comportamento adictivo que aqui apresento não aparece agora ex nihilo. Ela representa a reconstrução de um processo de ensaio-erro de investigação científica em torno das drogas que tem o seu começo quando, em 1977, iniciei a minha actividade no Centro de Estudos da Profilaxia da Droga. São, pois, vinte anos de persistência de actividade investigatória em torno das drogas (primeiro solitária, depois solidária com os colegas da equipa universitária a que pertenço) que ditam o muito limitado exercício epistemológico que aqui apresento e que mais não é do que a tomada de consciência do método (caminho) de investigação que pequenas passadas foram desenhando.

(9) O conceito de Biopsicossociologia começa a banalizar-se na cultura tecnico-assistencial. Nessa banalização perde todo o seu poder heurístico. Direi, pois, e tenho-o teorizado, não há uma mas várias Biopsicossociologias: dito metaforicamente, umas são inspiradas no modelo de rapsódia (simples justaposições de especialidades, ou de noções advindas de diferentes disciplinas), outras inspiradas no modelo da sinfonia, aquele que aqui se concebe para as drogas (integração harmoniosa de diferentes conceitos sob o rigor de uma maestria paradigmática).

(10) Forjo este conceito, por analogia com o conceito de white collor crime de Sutherland.

(11) Este modelo de funcionamento do dispositivo crítico das drogas é próximo da Epistemologia de Rescher. O autor teoriza o processo de produção do conhecimento científico em geral na sua obra Cognitive systematization, 1979, Oxford Blackwell.
O funcionamento deste processo desenvolve-se em duas fases ou provas interactivas: a prova integrativa e a prova aplicativa.

(12) O sublinhado é meu. Esta definição é dada pelo autor a propósito das relações entre a ciência e a política na sua obra, Weber, Max, 1959, Le Savant et le Politique, tradução francesa, Libraire Plon.

(13) Utilizo as formulações do físico e filósofo da ciência G. Bachelard.

(14) Desenvolvi a ideia do fenómeno da droga enquanto analisador das estruturas culturais da modernidade numa conferência proferida nas Universidades de Montreal e Ottawa subordinadas ao título «Science, éthique et esthétique: la drogue et le crime comme analyseurs», 1993.

(15) No plano de estudos da licenciatura, mestrado e doutoramento da Escola de Criminologia da Universidade de Montreal já existem cursos e seminários que têm por tema «droga e questões criminais».

(16) Um programa de estudos por mim dirigido demonstra que, contrariamente ao senso comum, não existe uma relação causal entre o consumo da droga e a prática de delitos (cf. Relatório Droga-Crime: Estudos Interdisciplinares, Centro de Ciências do Comportamento Desviante — Universidade do Porto).

(17) Bem tentei, durante quatro anos, conseguir levar por diante, no grupo Pompidou do Conselho de Europa, um projecto de avaliação das estratégias de prevenção das drogas na Europa… A colonização técnico-administrativa resistiu até ao fim às minhas tentativas de infiltração de alguma racionalidade científico-avaliativa.

(18) Dou como exemplo dessa abertura o Institut de Recherche en Epidémiologie de la Pharmacodépendance de Paris, criado e dirigido pelo Professor R. Ingold.

(19) Ficou claro: uma ciência crítica do comportamento adictivo não tem apenas um estatuto epistémico (produção do conhecimento), mas também um estatuto ético (a produção do conhecimento da subjectividade). A condição rosto dá conta desta última dimensão do saber que consiste em interpretar (através dos diferentes métodos: clínico, etnometodológico, etc.) aqueles com os quais não sabemos comunicar, mas com os quais temos o dever de falar. Pela simples razão de terem o direito de ser ouvidos enquanto, sujeitos ético-jurídicos.