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Educação ou a aposta na relevância
Guilherme d?Oliveira Martins
« cumpre revolucionar os próprios métodos, o ambiente social em que a criança vive, apelar para as acções e para os hábitos pelas acções instituídos.» António Sérgio, Educação
Cívica.
«O que é o homem culto? É aquele que: 1.º Tem consciência da sua posição no cosmos e, em particular, na sociedade a que pertence; 2.º Tem consciência da sua personalidade e da dignidade que é inerente à existência como ser humano; 3.º Faz do aperfeiçoamento do seu ser interior a preocupação máxima e fim último da vida.» Bento de Jesus Caraça, A Cultura Integral do
Indivíduo.
Está dito e redito que não basta investir em educação e que as mudanças neste domínio não têm efeitos imediatos. Se se quiser ter resultados, então não se pense no curto prazo, mas pelo menos no horizonte de uma geração. São, aliás, vários os exemplos de situações em que, por ausência de uma definição clara de objectivos e por uma incompreensão das necessidades sociais, os investimentos em educação se tornam, de facto, pouco relevantes, não contribuindo para o desenvolvimento da sociedade e para a valorização pessoal dos cidadãos. E assim surge a tentação de nos centrarmos nos debates em torno do que tem maior visibilidade, como o ensino superior, em lugar de olharmos, no seu conjunto, a educação como uma realidade contínua - desde a mais tenra idade aos graus mais elevados da Universidade. Deixamo-nos, de facto, iludir pelas atitudes com repercussões imediatas, esquecidos de que na educação estamos sempre a lidar com a complexidade, com toda a sociedade e com o longo prazo. Nas apreciações mais fáceis, quer críticas quer conformistas, surge, deste modo, amiúde a ideia de que ou nada vale a pena ou tudo está feito, e bem feito. São as faces de uma mesma moeda. E hoje há dificuldades evidentes em mudarmos de paradigma, passando de um tempo em que o «sistema educativo» foi tudo, com a sua coerência e o seu «sentido estratégico», na lógica das «grandes reformas», à semelhança da criação de um «homem novo» - definitivo e completo -, para um outro tempo, onde se revela indispensável compreender a diversidade, dar coerência ao pluralismo e partir da escola como centro da vida educativa e das mudanças necessárias para a sociedade. Nesse sentido, depois da lógica das alterações globais e instantâneas, estamos a ponto de compreender que as transformações se fazem pela coexistência do que permanece e do que tem de mudar. Os filósofos políticos falam assim de complementaridade entre as instituições, caracterizadas pela ideia de obra que persiste no meio social, e o contrato social, com uma exigência de acordo constitucional e de encontro de vontades. Deste modo, o gradualismo ganha um novo sentido - não o da continuidade, mas o da exigência de mobilização das energias disponíveis para mudar, com passos seguros, a vida humana no sentido de uma sociedade melhor que não seja uma sociedade terminal perfeita e reconciliada, mas que seja uma sociedade plural, com conflitos reguláveis de modo pacífico, com respeito das diferenças e da autonomia individual. Daí o ter-se recuperado o termo «radical» na vida política contemporânea, não como sinónimo de excesso, mas como factor de exigência democrática - para significar a necessidade de compreender as raízes da sociedade, num diálogo permanente, com graus diferentes de conflitualidade, entre o que permanece e o que muda. E a verdade é que na educação esta relação dialógica torna-se muito presente, com fundas consequências positivas e negativas - sentindo cada um, a cada passo, a intranquilidade desses sentimentos contraditórios. Qualquer mudança suscita sempre dúvidas, resistências e perplexidades. Mas qualquer compasso de espera gera também insatisfação, angústia e desilusão. Torna-se, deste modo, fundamental conhecer e compreender a realidade de que partimos, suscitar a participação dos cidadãos e a partilha de responsabilidades, favorecer a avaliação e a prestação de contas relativamente ao que se faz, de modo a tornar a mudança um processo sustentado e sustentável no sentido do aperfeiçoamento. Longe da tentação, muito comum nos países latinos, de pensar que «a sociedade se muda por decreto», na fórmula consagrada de Michel Crozier (que noutra circunstância nos propôs um «Estado moderno» como «Estado modesto»), exige-se-nos a percepção de que a administração pública mais eficaz e mais atenta aos cidadãos é a que incorpora as experiências positivas e as «boas práticas» e que o bom decreto é o que parte da realidade e da prática, apto a entender a flexibilidade e o pragmatismo. O «pensar global decidir local», que se tornou, justamente, máxima para os dias de hoje, mas não tanto prática, como seria desejável, pretende exactamente assumir essa atitude «radical», no sentido etimológico - que a vida educativa incorpora especialmente. Afinal, como ligar as questões
da Educação aos grandes temas da sociedade contemporânea?
Antes do mais, compreendendo que hoje a mobilidade e a incerteza dominam
a realidade que nos cerca.
Deste modo, a educação vê-se perante uma situação dilemática - a de ter de compatibilizar a democratização e o direito de todos à educação com a qualidade, o rigor e a exigência. O serviço público de educação tem, assim, de garantir a educação para todos, sem que as referências e os objectivos correspondam a um nivelamento por baixo, até porque as aprendizagens dos nossos jovens se revelam hoje insuficientes, à saída do ensino formal, perante a emergência de inovações e progressos nos domínios científicos e técnicos. Daí a necessidade de tornar transparentes, fiáveis e justos os instrumentos de avaliação social e de comparação relativamente ao que é ensinado e aprendido - uma vez que a igualdade de oportunidades, a correcção das desigualdades e a promoção de patamares exigentes e incentivadores de qualidade estão intimamente ligados entre si. As políticas de diferenciação positiva têm, pois, de se aperfeiçoar na vida educativa, para que a democratização não crie novos fenómenos de exclusão ou de marginalização decorrentes da ausência de avaliação, da falta de prestação de contas e de relações estáveis de confiança no seio da comunidade educativa e da opacidade do funcionamento dos processos de ensino e de aprendizagem. Nesta ordem de ideias, devemos considerar algumas questões fundamentais a ponderar numa política educativa, situada e adequada relativamente à sociedade portuguesa de hoje - com níveis baixos de qualificação dos seus cidadãos. Perante naturais resistências, doze anos passados sobre a aprovação da Lei de Bases do Sistema Educativo, cientes de que a ideia abstracta de «sistema» cedeu lugar à noção de um «sistema vivo», centrado na diversidade das escolas e das comunidades, que tem de ligar mérito e democracia, diferenças e justiça, esforço e realização pessoal, auto-estima e solidariedade voluntária, conflito e coesão, competição e cidadania, torna-se necessário analisar estes diversos temas à luz das exigências do planeamento, da avaliação e da correcção de trajectórias perante os dados da experiência. É o apelo às acções de que falava Sérgio. A esta luz poderemos apontar objectivos mobilizadores como: a) Garantir uma sólida formação de base, apta a melhorar as aprendizagens, os hábitos de trabalho e de organização, bem como a compreender a diferenciação positiva na sociedade e o recurso à experimentação e a favorecer a autonomia individual, a inserção comunitária e a responsabilidade pessoal;
A Educação está, assim, sempre orientada para a cidadania. Nunca é, por isso, neutra. Impõe-se, por isso, que se ligue permanentemente à coesão e integração sociais, à prevenção da exclusão e à diferenciação positiva, de modo a garantir várias respostas coerentes com uma preocupação de qualidade. O desafio perante o qual nos encontramos obriga a precaver-nos contra a tirania da uniformização. Precisamos, por isso, de escolas que deixem de ser «fábricas de aulas» ou supermercados de transmissão de saberes, passando a existir estabilidade e valorização do corpo docente, participação dos pais e encarregados de educação na vida educativa e abertura à comunidade, bem como partilha de responsabilidades e diversidade de parcerias criadoras, através da complementaridade entre «poder local forte e escolas fortes». É certo que os concursos nacionais favorecem uma certa instabilidade (que tem como contrapartida a previsibilidade e o tratamento igualitário), é verdade ainda que há a tentação de privilegiar os aspectos formais de avaliação em detrimento da eficácia educativa e todos sabemos também que a «autonomia» tende a ser lida a partir do ponto de vista dos docentes. É chegado o momento de responder aos problemas através de uma diferenciação inteligente - que procure harmonizar direitos e deveres, profissão docente e função educadora, exigência e capacidade para compreender os vários ritmos - e as necessidades sociais de mobilização das energias disponíveis, percebendo que as referências de qualidade não são apenas concessões à lógica estreita da competição e da concorrência, mas modos de motivar e de mobilizar quem se vai revelando apto a responder melhor aos objectivos propostos. É de «educação para a cidadania» que temos de falar. As comunidades comportam identidades e diferenças. É o dilema liberdade-igualdade que está em causa - ou, se quisermos ser rigorosos, o apelo à igual consideração e o respeito por todos. A sociedade dos privilégios não pode dar lugar à sociedade das exclusões. E a democracia contemporânea está confrontada com a necessidade de entender essa exigência. Não basta formular preocupações nem enunciar princípios - aquilo de que a educação precisa hoje é de compreensão da complexidade, da ligação entre humanidade e técnica e entre conhecimento e compreensão do mundo que nos rodeia, entre autonomia, responsabilidade, respeito mútuo e solidariedade voluntária. As mudanças em educação e formação são geracionais. Não podem determinar-se por lógicas momentâneas ou de curto prazo. Obrigam a ponderar seriamente o que está em causa - e como evolui a sociedade. Reclamam o entendimento da dimensão internacional, da complexidade, da identidade social, histórica e linguística, das qualidades de trabalho, rigor e organização ou do saber de experiências feito. Educar para a incerteza e a complexidade entram na ordem do dia - mas sem qualquer tentação simplificadora, uma vez que se trata de preparar o melhor possível os jovens cidadãos. Neste sentido, a relevância das formações tem a ver com a capacidade da escola antecipar exigências da mudança e da inovação - o que obriga a um envolvimento activo da comunidade educativa na resposta a este desafio. Do que se trata é de garantir uma «apropriação activa de conhecimentos» e a «construção da autonomia». A sociedade da informação que evolui para uma sociedade do conhecimento reclama este caminho - de levar a escola a privilegiar a dimensão humana e técnica e a importância do saber como factor de enriquecimento das relações interpessoais. Em concorrência com a televisão e as novas tecnologias de informação e comunicação, a escola hesita. A escola torna-se incapaz de assumir, só por si, a função que se espera dela: a socialização das crianças e dos jovens e a criação de uma cidadania, baseada na responsabilidade pessoal. A escola enfraquece-se e precisa de se reencontrar - não de modo abstracto, mas como projecto de cidadania, de pluralismo, de complementaridade e de coesão. Não se trata de fazer remendos ou arranjos corporativos, mas de assumir ou não a escola no centro de uma democracia, onde o conhecimento diferencia e pode excluir, mas também dignifica e favorece a concretização prática na vida do princípio segundo o qual «todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos» |