O Futuro, a Educação, a Instituição e o Saber Escolar

Eduarda Dionísio
Professora do Ensino Secundário
 
 

Começo pelo Futuro

    Em 1869, Auguste Blanqui dizia: «Ocupemo-nos com o hoje. O amanhã não nos pertence, não temos a ver com ele. O nosso único dever é preparar-lhe bons materiais para o seu trabalho de organização. O resto não é da nossa competência.»

    É, para mim, pelo menos incómodo, pensar num futuro (próximo) que não é, de facto, uma «terra de ninguém». Em princípio, esse futuro pertence aos que vêem e desejam como uma natural continuidade do presente (que evidentemente terá de ser «melhorado») e não àqueles a quem, como eu, o presente dificilmente deixa imaginar um outro futuro que seria, quase ponto por ponto, o contrário do presente que temos e, evidentemente, do passado que tivemos. É uma terrível desigualdade.
 
 

Passo à Educação
Dois lugares mais ou menos comuns

    1.º O problema da educação não é o problema do ensino, que não é o problema do sistema educativo (com os currículos à cabeça), que também não é o problema dos financiamentos e da gestão das escolas ou dos regimes disciplinares. A educação será também tudo isso.

    2.º lugar menos comum: As questões da educação não podem ser colocadas - e cada vez com mais razões - exclusivamente (nem talvez prioritariamente) dentro do quadro de um Ministério da Educação.

    (Lembro que esta designação é de 1936 - Carneiro Pacheco, Mocidade Portuguesa, etc?. Veio substituir a republicana, mais modesta e simpática, de «Instrução Pública»?)

    Se o Estado e a Sociedade se reconhecem numa organização social que admite a desigualdade, a injustiça, a incompetência como componentes naturais de qualquer sociedade, a competição e a obediência como valores em si, e que encara a cultura como um terreno à parte, que vem «depois», confundindo-a com um «luxo» necessário a algumas «elites» e uma «distracção» necessária ao «povo», é difícil colocar a questão da Educação que tende a ser substituída pela do «Ensino» que «prepara para a vida» e que toma abusivamente o seu nome.

    Num quadro assim, nenhum ensino poderá competir com outras componentes do terreno educativo determinantes, essas:

    1.º A aceitação da «paisagem virtual» do país (e do mundo) fabricada e imposta pela Comunicação Social (nomeadamente a Televisão) que vai submergindo as pessoas, e do sacralizado critério das «audiências», que norteia a própria televisão estatal;

    2.º O espectáculo da actividade política em geral e da governação em particular, cujo sistema de referências é, no essencial, o da sociedade de consumo, e que vai identificando o Estado com essa sociedade onde as pessoas são pouco mais do que consumidores de produtos (e às vezes de ideias), utentes de serviços vários, espectadores do mundo.

    (É significativa a presença do Estado na inauguração do Edifício Colombo e pelo menos curiosa a designação de «Scala de Milão do consumo português» que lhe foi atribuída por um então membro do governo.)

    3.º Uma política cultural feita de «momentos Excepcionais» e «grandes obras», à margem do quotidiano e das questões sociais, que impõe uma «cultura do príncipe», ignorando a existência, distância e proximidade das culturas «populares» (e aqui incluo as das minorias étnicas), da cultura de «massas, das culturas «tecnológicas» e das culturas «eruditas» (e aqui tenho infelizmente de continuar a incluir a «literária, artística, científicas»), reduzindo a Cultura a uma questão de «artistas» e de público».
 
 

Passo à instituição escolar

    Três equívocos. A manterem-se, eternizarão as disparidades entre discursos, medidas e práticas - ou seja, a pouca credibilidade da escola.

    1.º equívoco: a escola como salvação.

    * A escola não é um lugar onde se possa impor ou transmitir valores e saberes que a Sociedade não utiliza e o Poder não promove.

    E, de facto, não é preciso (antes pelo contrário) saber ouvir, falar, ler, escrever, contar, pensar, propor, justificar, inventar, ser dono de si próprio, para ser esse tal «bom consumidor» e «ter sucesso»; e não é colectiva nem solidariamente que as soluções de vida e de felicidade se encontram.

    * A escola também não é um local de tratamento das doenças inerentes à própria organização social. E a aproximação das escolas no modelo empresarial só aumentará a sua ineficácia neste domínio.

    2.º equívoco: liberdade de ensino, ensino público, participação na educação.

    * A liberdade de ensino não é sinónimo de incremento do ensino particular e de actividades comerciais e industriais que aplicam à transmissão do saber e à educação as regras do mercado. A desvalorização do ensino público, além de obviamente acentuar desigualdades, torna cada vez mais improvável a integração do ensino na educação.

    (Basta pensar nos negócios dos livros escolares, das explorações particulares, dos anos zero das privadas, etc., etc.)

    * A participação das populações na tarefa da educação não pode ser confundida com o assento nos órgãos de gestão das escolas de eventuais representantes de empresas e de pais.

    (Seria, aliás, interessante avaliar as reais funções, representatividade e autonomia das associações de pais e ter a certeza de que a qualidade de «pai» gera interesses e saberes comuns capazes de justificar esta forma de associação e «participação».)

    * Uma rentabilização dos edifícios escolares semelhante às das fábricas - por turnos - impossibilita a sua utilização como eventuais pólos aglutinadores de uma comunidade. A desvalorização do associativismo tradicional e o alheamento dos sindicatos e das organizações de desenvolvimento local das questões da educação (mobilizados que estão pela obtenção de fundos europeus para acções de «formação») dificultam também uma mudança de perspectiva neste domínio.

    3.º equívoco: a qualidade do ensino.

    Essa «qualidade» que as «notas» (que encolhem ou dilatam ao sabor de mil circunstâncias) nunca poderão medir, não é assegurada prioritariamente pelas avaliações, nomeadamente pelos exames (e o seu dispendioso espalhafato burocrático) nem pelas fórmulas e cálculos que fazem aceder ao Superior, nem por medidas uniformizadoras, como são, por exemplo, as actuais OGPs.
 
    Seria, sim, urgente encarar a inadequação das aprendizagens dos professores aos trabalhos que as escolas lhes reservam e o perigo da sua progressiva conformação a modelos híbridos parentes do «missionário» (abnegado) e do «técnico» (obediente) e que as chamadas «acções de formação (e respectivos «créditos») vão acentuando.
 
 

Passo ao saber escolar

    O sentimento da ineficácia da escola prende-se com as características do trabalho e do saber escolares que, apesar de formalmente alterados, mantêm a sua esterilidade.

    Os programas e as práticas escolares, nas suas contínuas oscilações, continuam a não conseguir resolver a aparente contradição entre a memorização e reflexão, método e criação, rigor e     imaginação, investigação e opinião, obrigação e prazer. Alheios a qualquer preocupação de intervenção pública, o trabalho e o saber escolares, essencialmente reprodutores, centram-se em aprendizagens formais e aplicam-se sobretudo a «descrever», através de nomes e números, realidades parcelares cujo sentido é um pormenor.

    A própria hierarquização (a todos os níveis) dos graus de ensino e os aberrantes tratamentos dados ao grau «inferior» (um pré-escolar de que, desde 1911, se vai prescindindo) e ao grau «superior» (destinado a uma multidão de «raros apenas» que se digladiam no antes, durante e depois) tem consequências perversas em todo o trabalho e saber escolares. Substima-se (omitindo ou retardando) a aquisição, construção e desenvolvimento de «ferramentas»; sobrevaloriza-se (introduzindo prematuramente e repisando) conhecimentos «finais» (terminologias, definições, classificações). A obrigação do saber e o desinteresse pelo saber desde cedo substituem o prazer da aprendizagem.
 
 

Para acabar, o passado

    Três observações com vista ao tal futuro:

    1. Não foram as «campanhas de adultos» dos anos 50 que alfabetizaram o país.

    2. Não foi a «democratização do ensino» que «deteriorou» o ensino nem fez «baixar o nível cultural do povo português».

    3. As mudanças mais importantes no terreno da educação não foram o resultado de Reformas Educativas, mas de situações de grandes transformações sociais, onde o futuro aparecia a cada um como radicalmente diferente do presente, e onde o saber-fazer eram fonte de garantia da felicidade no presente.

    São exemplo disso as Sociedades Filarmónicas, depois de Cultura e Recreio - e seus múltiplos derivados; o movimento popular de 74-75 e suas heranças (hoje, muitas delas, institucionais). Em qualquer destes casos, obviamente irrepetíveis, as aprendizagens, prenderam-se com a necessidade, a curiosidade, a vontade, a acção, o gosto de fazer, o prazer do esforço e do convívio, a solidariedade, a capacidade de troca. Educação queria dizer autoformação, apetrechamento, libertação. 

    Pensar na Educação talvez tenha de começar por aqui, e talvez apareçam como menos complicados os tais «desafios do futuro», caso contrário, continuar-se-á a puxar pelas folhas.