A Escola entre o Local e o Global 

Armando Trigo de Abreu
Presidente do Instituto de Cooperação Científica e Tecnológica Internacional
 
 

    Na introdução do Senhor Presidente da República a este debate dedicado à Educação e ao futuro existem dois temas que gostaria de comentar brevemente. Trata-se, por um lado, do apelo à iniciativa local em matéria de educação e, por outro, do desafio do conhecimento que hoje se coloca a um nível global nas nossas sociedades mais ou menos mundializadas.

    São estas duas palavras-chave que eu gostaria de interrogar em seguida. No entanto antes de o fazer talvez seja oportuno reagir a algum pessimismo que transparece em intervenções anteriores, lembrando que nos últimos vinte anos a educação se tornou em si própria persuasiva. Ou seja, não só continua a aumentar e a difundir-se a procura instrumental da escola, como aparelho de promoção social daqueles que a frequentam, geradora de competências específicas utilizáveis nos trajectos individuais num movimento de mobilidade social ascendente, mas também se começa a considerar a escola como um local de acesso à cultura e ao conhecimento. Por um e por outro motivo o trajecto escolar e o modelo de ascenção social mediatizado pela escola vem cada vez mais a ser integrado nas estratégias familiares de ascenção social, fazendo com que as situações de não-escola ou de abandono da escola, com as suas imagens de desemprego ou desocupação dos jovens e com o trabalho infantil, sejam mais residuais e se encontrem em regressão, pese embora a atenção que continuam a merecer - e felizmente - por parte da comunicação social e - menos felizmente - por alguns guardiões impolutos da competitividade internacional que se especializam em ver o argueiro no olho do vizinho.

    Esta atenção que reforça a imagem persuasiva da educação e reforça o papel desta nas estratégias familiares visando o melhor futuro dos jovens não deve no entanto fazer esquecer o forte progresso que nesta área se registou e que tende a confinar à excepção aquilo que há vinte anos era talvez muito próximo da regra, em algumas situações socioeconómicas e geográficas.

    Passando para os dois temas da minha intervenção gostaria de sublinhar em primeiro lugar as transformações que se perspectivam sob a designação geral de apelo à iniciativa local e salientar a novidade da incorporação no universo-escola de um conjunto de actores diferenciados que ainda andam frequentemente afastados dela.

    O apelo à iniciativa local, na verdade, parece-me que deverá ser entendido sobretudo como uma chamada à colaboração na escola, necessariamente dotada de apelativa autonomia, de representantes da vida local - pais, obviamente, mas também autarcas, empresários, investigadores e homens de cultura - que possam tornar a escola num nó de convergência estratégica de projectos ancorados na realidade local e que reconhecem à escola um efeito estruturante sobre um futuro comum.

    Esta colaboração e esta abertura representam uma ruptura decisiva tanto com a escola-repartição como com a escola-domínio exclusivo dos professores, modelos que sob a forma pura ou em regime híbrido têm dominado o panorama educativo nas últimas décadas, e não só em Portugal. Escola-repartição seria a expressão local de um sistema centralizado, normativo nos conteúdos e na prática repousando sobre uma administração escolar toda poderosa e omnisciente, sem lugar para a invenção e a variação locais e repelindo mais do que acolhendo a participação dos alunos, professores e agentes económicos e culturais locais. Embora a caricatura seja, a traço grosso, a realidade felizmente passada, não se encontra longe.

    A esta escola foi sucedendo a escola-domínio exclusivo dos professores, detentores das competências educativas que, dentro das barreiras legislativas ou apenas reguladoras, interpretam por si o projecto educativo da escola, não ignorando as condições locais muitas vezes, mas sendo os seus exclusivos intérpretes dentro dos muros da escola. Mais ou menos fiel à realidade, mais ou menos informado pelas burocracias sindicais este modelo começou a ceder, deve reconhecer-se claramente, pelo activismo das associações de pais, a favor de uma presença na esfera da escola do mundo exterior, se assim se podem chamar, os pais, os autarcas, os empresários, os cientistas e os homens de cultura.

    A latitude desta participação, a sua forma e a sua operacionalização no interior da escola são certamente ainda interrogações. Mas importa sublinhar que nela se associam duas verificações importantes: primeiro, que a escola tem um dever de colaboração - não apenas instrumental e formativo -, no desenvolvimento de um projecto local de progresso; segundo, que os projectos educativos e os problemas educativos ganham em ser formulados e resolvidos com um diálogo activo e permanente com aquilo que era costume designar--se por «forças vivas locais». Entre o desenho estratégico das instituições educativas locais, o acompanhamento das actividades da escola e a gestão diária do estabelecimento de ensino há uma latitude e locais de intervenção que serão testados e ensaiados pela prática, atenta às condições locais e à unidade de propósito educativo, mas a abertura da escola ou a interpretação da escola como uma forma específica da acção das comunidades locais tem virtualidades que convém afirmar.
 
    O segundo tema que gostaria de comentar situa-se, se possível, num outro extremo de preocupações. O primeiro refere sobretudo as sinergias locais que é possível estimular e desenvolver em torno dos projectos educativos, o segundo refere o desafio da cidadania global e da participação da escola na construção da sociedade do conhecimento que progressivamente se afirma a nível global.

    Este segundo desafio - o modo como poderemos integrar a sociedade do conhecimento - é de uma importância enorme.
O conhecimento vai ser o elemento estruturante do sistema mundial, provocando uma nova divisão mundial do trabalho e reorganizando no longo prazo as hierarquias das nações e das regiões.
    O modo de aceder a este conhecimento global e o modo de participar no seu desenvolvimento exige novas formas de literacia e de comunicação, que tal como os jornais e os livros contemporâneos devem ser apropriadas adicionalmente - não os substituindo - de forma generalizada.

    Não sei se está em curso a gestação de uma nova cidadania mundial sob a égide da WWW mas não duvido que os instrumentos necessários para nela participar são elementos essenciais de um projecto educativo moderno e virado para o futuro.

    Neste contexto devem registar-se iniciativas recentes com forte incidência sobre desenvolvimento da base material dessa nova conectividade e também sobre os conteúdos essenciais para a formação das tecnologias que suportam a incorporação em sociedade global: os programas «Internet nas Escolas» e «Nónio» parecem poder vir a assegurar os mecanismos essenciais da nova cidadania, tendo em conta, todavia, um novo conjunto de atribuições para o sistema educativo para o professor.

    Resisto a designar o novo Professor por «Cyber-guia» mas não devemos ignorar as necessidades reais de formação e de orientação nesta área, a que a escola não pode apenas servir de suporte material ou de abrigo. A nova sociedade global não dispensa, como a antiga, a respectiva aprendizagem. É nesse enlace entre o global e o local que existe um conjunto de novas missões para o sistema educativo, missões tecnológicas, de linguagem mas também éticas e comportamentais que constituirão a norma e a forma de estar na sociedade do futuro.

    Julgo que a extensão para o local e para o global são desafios contemporâneos e simultâneos à escola e aos actores sociais que nela devem confluir.