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Uma Escola para a Democracia
Sérgio Niza
O que mais me preocupa quanto ao futuro da educação é a busca de estratégias que constituam alternativa a duas formas privilegiadas, de concepção da acção educativa e das decisões políticas. Trata-se de duas linhas ou geometrias de pensamento que se transformaram, nos dias que correm, em padrões de decisão. Designá--las-ei por pensamento em paralelo e por pensamento aditivo. Estas duas lógicas, uma prosseguindo caminhos supletivos e outra procedendo por acumulação atomista, são duas formas herdadas do dispositivo disciplinar de organização do conhecimento e da organização social da Universidade Medieval. Estes dispositivos estratégicos agem, hoje, automaticamente, sobrepondo-se ao conhecimento histórico de que dispomos para a resolução dos problemas contemporâneos das nossas sociedades. Para ilustrar os inconvenientes do que chamo lógica paralela lembrarei, aqui, a triste história da criação das classes especiais tão desejadas pelos especialistas desde o fim do século xix. Em Paris, por exemplo, quando a escolaridade elementar obrigatória se tornara uma realidade, nos primeiros anos do século xx, Binet e Simon (1905) designaram de «anormais de escola primária» as crianças que manifestavam dificuldades em «seguir» a escolaridade ou que se revelavam «indisciplinadas». Assim começou a triagem dos «anormais» da escola como então os designavam, mesmo antes da criação formal das «classes de aperfeiçoamento» («classes de perfectionnement»), em 1909. Irónico eufemismo! Supostamente, os alunos passariam a tais classes, depois de aplicada uma escala destinada ao controlo do grau de instrução das crianças suspeitas de «atrasadas». Para os que apresentavam um atraso escolar acentuado, passava-se em seguida ao exame psicológico para diagnosticar o seu nível intelectual com a primeira escala de inteligência. Sabemos como os professores reagiram mal, através das suas associações profissionais, à utilização dos exames psicológicos e à criação das classes especiais tendo-se, no entanto, rapidamente acomodado a esse beco sem saída. Sabemos, ainda pelos estudos desenvolvidos pelo CRESAS, que essas crianças que frequentaram as classes de aperfeiçoamento entre 1907 e 1950 eram maioritariamente provenientes de classes populares. Hoje, após estudos sucessivos sobre o repetido insucesso dos professores e da escola para resolver e garantir o direito ao sucesso escolar dos seus alunos, e após os esforços infrutíferos dos anos 80 para a integração de crianças com necessidades especiais, um conjunto alargado de estados e organizações internacionais, assinaram a convite da Unesco, em Salamanca no ano de 1994, uma convenção para transformar essa escola de exclusão, numa escola inclusiva: uma escola aberta a todos os cidadãos, com vista à construção de uma sociedade inclusiva. Tudo o que contrarie o acordo assumido em Salamanca, contraria o futuro solidário a que temos direito. O segundo padrão lógico a que chamei de aditivo, prende-se, por exemplo, com algumas actividades, designadas por projectos, hoje correntes nas escolas. Importa desde já clarificar, que os professores não têm adoptado, normalmente, no interior dos seus programas disciplinares, o trabalho por projectos, como metodologia de renovação das práticas pedagógicas. Posso aqui testemunhar, por ter coordenado os trabalhos de inquérito de uma equipa de investigação do Instituto de Inovação Educacional, como os programas de Área-Escola se transformaram, rapidamente, num trabalho exterior e complementar ao do currículo, nas escolas onde ainda têm lugar. As actividades de que falo, correspondem normalmente, a respostas às ofertas municipais ou a programas de financiamento de departamentos do Estado, provenientes, portanto, de várias instâncias concorrentes: uma espécie de assédio, como lhes tenho chamado. Esta forma consumista de utilizar os meios disponíveis e de contrariar as formas integrativas do trabalho de aprendizagem constitui um esbanjamento de meios e traduz-se num reforço de formas primitivas e atomistas de pensar a educação. Porém, os projectos de que precisamos são aqueles que reforcem a congruência do acto educativo pela integração do conhecimento e pela acção solidária das equipas de trabalho. Para que assim possa ser, terá o trabalho por projectos de assentar nas vantagens provadas das estruturas de cooperação e não, como está a acontecer, reforçando estruturas competitivas de gestão curricular e de aprendizagem escolar. É urgente que se multipliquem os ensaios de concepção e de acção ecossistémica na educação para que as formas anquilosadas de pensar o presente e o futuro da educação não continuem a prevalecer na política, na gestão e na acção educativa das escolas, em geral. Resta-me lembrar um outro nível de preocupações contemporâneas que o Senhor Presidente da República explicitou, frontal e admiravelmente, no discurso de abertura desta Semana que em tão boa hora quis dedicar à Educação. Chamou-nos a atenção, nesse primeiro discurso, para o facto de que a liberdade se tem que pensar, também, em função da escola e para a ameaça que pode constituir para a democracia, a incompletude da educação escolar. Aproveito, para sublinhar ainda do discurso do Senhor Presidente, o tema central da responsabilidade social partilhada na educação. Este tema conduziu-o a reconhecer a insuficiência da democracia política para organizar e desenvolver a educação, o nosso «Maior Bem», no dizer de Sócrates. Uma vez isolados estes problemas, farei deles decorrer outra preocupação: a do fraco empenhamento dos professores e dos dirigentes na construção da democracia dentro da escola. Penso, cada vez com maior convicção, que se a cultura da democracia no interior das escolas não for ensaiada e desenvolvida desde já, perderemos mais tarde ou mais cedo a própria Democracia. E não será simulando os sistemas de representação da democracia formal nas escolas, que alguma vez as crianças e os jovens aprenderão a construí-la. A democracia é um processo directo e dialógico, uma estrutura cooperante de resolução de problemas reais, e não pode, por isso, assentar, sistematicamente, num processo diferido. Um aluno que tenha votado noutro para o representar numa instância de decisão ou conselho, proporcionou a esse outro a possibilidade de formar-se para a democracia. Aquele que o escolheu e que fica, passivamente, à espera que esse defenda, ao longe, os seus pontos de vista, não pode esperar formar-se. Formar-se é transformar-se. Trata-se de um processo activo, vital, que decorre da experiência e que não é possível delegar. É certo que não soubemos, ainda, construir uma democracia directa alargada. Mas se aspiramos a uma democracia participada e se a educação decorre de uma responsabilidade social partilhada, a escola que todos sustentamos, como instância de socialização, tem que aprender a corresponder a essa aspiração. Todos sabemos muito pouco da democracia construída em directo. É, porém, esta fragilidade comum, a condição mais estimulante para avançarmos, em conjunto, para a construção da democracia nas relações quotidianas dos alunos com os professores. Enquanto não houver, dentro das escolas, uma democracia participativa, continuarão ameaçadas a Democracia e a Escola. Que se faça, então, Futuro a voz de Platão que nos vem tão do passado: «Um espírito livre não pode aprender como escravo.» |