Rendimento Mínimo Garantido:
Rendimento Mínimo Garantido:
instrumento de desenvolvimento do mundo rural

Luís Manuel Antunes Capucha e Maria das Dores Guerreiro

Docentes do ISCTE e investigadores do CIES - Centro de Investigação e Estudos de Sociologia,responsáveis pela avaliação da fase experimental do Rendimento Mínimo Garantido


A problemática da pobreza conheceu nos últimos anos um processo de visibilização que poucos dos que há muito dedicam o melhor dos seus esforços ao respectiva combate ousariam crer. As modernas expressões urbanas do fenómeno são as principais responsáveis por esse processo. A emergência ou drástico crescimento de categorias e grupos em situação de exclusão social, como o das massas de desempregados de longa duração, os sem-abrigo, os toxicodependentes, os imigrantes africanos, as pessoas apanhadas nas teias da pequena criminalidade, os jovens em risco ou vivendo na rua, os grandes idosos sem apoio familiar, entre outros, trouxeram a pobreza para o centro das agendas políticas e mediáticas. Produto do processo de desenvolvimento e de dinâmicas injustas de modernização, esta nova pobreza tende a ser particularmente problemática e perturbadora.

Mais silenciosa, porque mais conformada, mais integrada e, geralmente, mais conservadora é a pobreza tradicional nas zonas rurais deprimidas e periféricas, que no entanto contribui ainda com grande número de efectivos para a contabilidade geral da pobreza em Portugal. O seu peso não é já, talvez, maioritário, dada a debandada em massa que constituiu e constitui ainda a resposta dada pelas populações pobres dessas regiões às suas condições de vida (1). A origem desta situação das regiões rurais periféricas, é o subdesenvolvimento, que aqui também tem o nome de pobreza (2).

É por isso legítimo supor que qualquer medida de combate à pobreza possa ser encarada no interior rural como uma medida promotora do desenvolvimento. Em regiões mais desenvolvidas, tais medidas também o podem ser desde que contribuam para a inserção dos mais desfavorecidos. Se aí o convívio com a miséria é sinónimo de mal-estar social (3), a promoção das condições de vida das famílias mais destituídas melhora em média a qualidade de vida de toda a comunidade. Mas nas regiões rurais periféricas é a totalidade das estruturas sociais, económicas e culturais que está em causa e pode ser atingida por tais medidas.

Propomo-nos aqui abordar nesta perspectiva os efeitos potenciais do Rendimento Mínimo Garantido, num momento em que ele iniciou há pouco tempo o seu percurso regular.

Desde a primeira revolução industrial o campo tem vindo a perder poder em relação à cidade. O processo global de segmentação dos sectores económicos, de especialização produtiva e de flexibilização dos mercados de trabalho, associado à terceira revolução industrial, é o principal gerador da tendência para a acentuação das desigualdades que caracteriza os nossos dias em relação ao que se verificara pouco mais de uma década atrás (4). Os produtos do mundo rural deprimido são cada vez menos concorrenciais e a pobreza que o caracteriza acentuou-se, tal como se acentuou a dos sectores menos qualificados ou menos «competitivos» da população.

Este processo também possui os seus dogmas, um dos quais é a chamada «competitividade». A sociedade globalizou-se, mas isso não significa que a competitividade tenha de ser o único objectivo de todas as políticas, principalmente quando não se percebe bem para que (e a quem) ela serve. Na verdade, pode bem ser que a competitividade não passe de uma justificação ideológica e propagandística ao serviço de interesses particulares, por exemplo dos sectores financeiros do capital. Ora, o objectivo do desenvolvimento não pode ser a competitividade em si mesma, mas a satisfação das necessidades das pessoas, em termos de identidade positiva, trabalho e rendimentos, saúde, educação, autonomia, oportunidades de lazer e realização pessoal, protecção social, entre outros aspectos. Uma economia dita competitiva, mas à custa da qualidade da sociedade e contra ela, não é uma boa economia.

Os poderes económicos cada vez mais escapam ao controlo democrático dos poderes políticos e sociais (5) e tendem, por isso, a impor à sociedade clivagens homólogas das que se registam na esfera da divisão do trabalho. Assim, não apenas certas categorias socio-profissionais, certas faixas etárias, certos grupos étnicos, o género feminino se apresentam em desvantagem face ao mercado, como a própria sociedade se fragmenta: as regiões em declínio industrial contrastam com as regiões em expansão, os grupos em exclusão social separam-se das estruturas normais da sociedade, o mundo rural deprimido interioriza--se e é crescentemente marginalizado.

A lógica da competitividade leva a que pequenas diferenças façam perder oportunidades e por isso crescem, a todos os níveis, novas e maiores desigualdades. Assim sendo, os problemas do desenvolvimento do mundo rural periférico são antes de mais problemas de desenvolvimento global e da respectiva justiça. Na verdade, o desenvolvimento não é uma entidade abstracta e auto-suficente. Ele resulta de decisões concretas tomadas por pessoas, grupos e instituições reais.

Tais opções podem orientar-se em diferentes sentidos. Elas podem beneficiar certos grupos de interesses particulares em prejuízo de outros, que progressivamente são relegados para o exterior dos centros de decisão e privados dos benefícios criados pelo progresso da capacidade de produção de bem-estar, (que, no entanto, é hoje suficiente para satisfazer as necessidades básicas de todas as pessoas). Mas elas podem também ser solidárias e orientadas para a produção de sociedades mais coesas.

A lei do Rendimento Mínimo Garantido recentemente criada em Portugal, com algum atraso em relação à maioria dos países europeus, constitui um bom exemplo (6) do tipo de opções que se impõem, se se pretende efectivamente recuperar as zonas rurais periféricas do ponto de vista da sua participação nos processos de desenvolvimento.

Desde logo, porque o RMG assenta num princípio de discriminação positiva em relação às pessoas e às famílias mais desfavorecidas. Focalizando as situações de mais profunda pobreza, a medida aponta para um princípio de justiça social segundo o qual constitui dever da colectividade providenciar condições de vida dignas a todos os seusmembros. Diz-se hoje que esse imperativo não tem já apenas uma dimensão moral, mas também corresponde a uma necessidade de toda a sociedade, dado não poder haver bem estar no quadro da convivência quotidiana com a miséria e com as suas diversas consequências.

Neste sentido, medidas como o RMG podem ser o prelúdio de um novo pacto social, que não se imporá facilmente mas que ganha crescentes apoios. Esse novo pacto resultará de um acordo mais amplo do que o actualmente existente entre os parceiros sociais e o Estado, no sentido de abranger as categorias que não podem concorrer no mercado e de fazê-las beneficiar também da riqueza que é socialmente criada. Esta opção por um desenvolvimento coerente e por uma sociedade coesa não deixará de ter consequências benéficas para as regiões mais deprimidas, sem as quais tal coesão não passará de uma miragem.

O Rendimento Mínimo Garantido é ainda uma medida tendente a promover o desenvolvimento das regiões deprimidas do interior por uma segunda ordem de razões, que se prendem com o funcionamento das instituições. A lei obriga à criação, em cada concelho, pelo menos de uma Comissão Local de Acompanhamento (CLA) que é responsável pela aplicação e gestão da medida (7), pelo acompanhamento dos beneficiários e pela construção de «programas de inserção» que complementam a prestação pecuniária e visam contribuir para a resolução dos problemas que estiveram na origem da carência económica. Compõem as CLA, obrigatoriamente, os representantes locais dos Ministérios da Solidariedade (através dos Centros Regionais de Segurança Social), do Ministério da Educação (através do ensino recorrente), do Ministério do Emprego (através do Centro de Emprego) e do Ministério da Saúde (através do Centro de Saúde). Podem ainda integrar as CLA, e têm-no feito de forma voluntária e altamente comprometida, entidades como as Câmaras Municipais, as Juntas de Freguesia, as Misericórdias e outras Instituições Particulares de Solidariedade Social. Nalguns casos, em número crescente, também integram estes órgãos sindicatos e associações patronais, bem como representantes de outros Ministérios ou serviços públicos relevantes no plano local.

Esta estrutura organizativa instaura uma profunda transformação nas formas de trabalhar das instituições. Desde logo, aproxima-as daspopulações e faculta um conhecimento muito mais completo dos problemas, necessidades e potencialidades. Na verdade, um dos problemas mais graves das zonas rurais deprimidas é que nelas é menos densa a cobertura territorial pelos diversos serviços e, por isso, mais distante, ocasional e burocratizada a relação com as populações. Ao estimular o encontro entre técnicos de diferentes serviços e instituições em redor de problemas concretos, à escala humana, o sistema das parcerias pode contribuir fortemente para a ultrapassagem desta desvantagem. Pode, pois, argumentar-se, a favor dos efeitos potenciais do RMG sobre o quadro institucional, a cultura de participação e abertura às populações que instaura.

Além disso, permite grandes ganhos sinergéticos através da coordenação de acções e de uma divisão de tarefas mais racional e económica.

Outro aspecto muito importante a realçar é que a dinâmica que tem sido induzida pelos gestores do RMG favorece um outro elemento actuante na modernização das instituições. Trata-se da lenta mas progressiva introdução de hábitos de avaliação crítica das actividades e seus resultados. Não existem boas políticas de desenvolvimento sem avaliações participadas pelos diferentes actores dessas mesmas políticas. O RMG pode facilitar a difusão dessa cultura moderna da avaliação contínua dos desempenhos institucionais, como mecanismo de incorporação do conhecimento e da inteligência nesses desempenhos. O princípio de crítica democrática cruzada entre diferentes actores e a incorporação de conhecimento nas decisões constituem elementos centrais da cultura para o desenvolvimento (8) que o desenvolvimento das zonas rurais periféricas requer.

As parcerias permitem, por fim, aportar à resolução dos problemas o debate crítico entre actores tendencialmente portadores de diferentes visões da realidade local. Este aspecto pode ser decisivo se se considerar que um dos principais bloqueios das zonas rurais é o défice de influência que as penaliza. As CLA constituem um novo palco, com reconhecimento institucional, para que se oiçam os anseios das populações e das instituições das zonas rurais periféricas.

Desde o início da fase experimental do RMG tem-se verificado que a expansão do modelo de coordenação interinstitucional num planohorizontal e base local, corporizado pelas CLA, constitui uma das potencialidades mais promissoras da medida. A correcta aplicação do funcionamento em parceria tem sido, porém, muito desigual nesta primeira fase da vida do RMG. Ficaram, demonstradas três ainda assim coisas: primeiro, que esse modelo é possível, pois verificaram-se muitas experiências de grande sucesso; depois, que a generalização desse modelo implica mudanças de hábitos muito sedimentados e colide com interesses longamente solidificados, pelo que constituirá um processo duro e conflitual que não garantiu ainda o seu sucesso generalizado; por fim, em parte devido às grandes debilidades e carências institucionais que as marcam, tem sido muitas vezes nas zonas rurais deprimidas que os ganhos de capacidade de desempenho de cada instituição em resultado da cooperação nas CLA foram maiores.

Outra ordem de efeitos potenciais do RMG respeita às respostas disponíveis para apoio ao desenvolvimento e ao combate à pobreza que, como vimos, no interior rural são a mesma coisa. Falamos agora já não da organização das instituições e da sua capacidade de trabalho, mas da maneira como são utilizados, potenciados e geridos os recursos disponíveis.

O Rendimento Mínimo Garantido é uma prestação (9) do regime não-contributivo da segurança social associada a um programa de inserção que deve ser oferecido pelas instituições e cumprido pelas famílias dos beneficiários. A medida, tal como tem sido definida pelos seus responsáveis, não se situa apenas no plano do socorro último a pessoas que não possuam outros recursos ou apoios, nem visa criar uma base de protecção mínima que permita liberalizar outras prestações e destruir outras medidas, como aconteceu em países onde foi criada num contexto de dominação política neo-liberal.

Pelo contrário, pretendeu-se no nosso país pensar o RMG como um ponto de partida visando o combate à exclusão pela inserção social e profissional dos destinatários. Para isso criou-se uma base mínima de rendimentos seguros e regulares que permita acudir às mais prementes necessidades e que simultaneamente seja comportável pelo Orçamento de Estado e não desencoraje a procura activa de autonomia económica por parte das famílias.

A par desta base mínima de rendimento propõe-se às pessoas um programa de inserção que, partindo dos níveis mais basilares do apoio psicossocial, da formação escolar de crianças e adultos, da formação de base para competências sociais e pessoais, da habitação, entre outras, atenda depois às questões da formação profissional e do emprego. Naturalmente, o desenho de cada programa de inserção, construído numa base local e de grande proximidade, deve estar adaptado a cada situação concreta de cada pessoa e família.

Como se pode facilmente imaginar, o esforço de inserção é feito pelas famílias, mas também pelas instituições, que devem ter disponíveis os recursos necessários e conjugá-los de forma adequada a cada contexto. Ora, uma das principais razões do subdesenvolvimento das zonas rurais do interior consiste, exactamente, na escassez e fraqueza desses recursos.

A oferta de programas de inserção vai estimular muito fortemente as instituições no sentido de fornecerem melhores serviços de apoio ao desenvolvimento. Por exemplo, muitas famílias vivendo em habitações extraordinariamente degradadas vão ver a segurança social, a autarquia e a saúde a colaborar para finalmente atacarem esse problema. Outras ainda passarão a contar com o apoio de técnicos para regularmente as ajudarem e ensinarem a cuidar da casa, da economia doméstica e da saúde e higiene familiares. Outras, ainda, pela primeira vez contactarão instituições como um banco, ou o médico de família, ou outras.

A escola, a autarquia e a segurança social passarão a colaborar para garantir que muitas crianças possam frequentar a escola.

Muitas IPSS abrirão os seus serviços a crianças e idosos e, provavelmente, à medida que novas necessidades surjam ou se revelem, tenderão a criar novos equipamentos de acção social. Desta forma, para além dos efeitos directos da integração das crianças e idosos em equipamentos que os beneficiam, muitas famílias terão os seus adultos - principalmente os femininos - libertos para o exercício de uma profissão.

Particular destaque na oferta de estruturas de apoio ao desenvolvimento deve ser dado à questão das qualificações da população.
O Rendimento Mínimo Garantido obriga a que a lógica do sistema de formação profissional seja repensado em dois sentidos. Por um lado, dirigindo-o mais para as necessidades formativas dos grupos desfavorecidos e, por outro lado, tornando-o mais adaptado às realidades de cada zona de intervenção. É de esperar que na fase em que as instituições deverão vir propor sistematicamente às famílias acções de formação especial e profissionalizante, se construam estruturas capazes de fornecer essa formação com qualidade não apenas nos centros servidos pelos equipamentos e empresas formadoras, mas também nas regiões onde uns e outros actualmente não existem.

A formação poderá ser fortemente orientada para a criação de emprego. Neste campo os efeitos do RMG podem ser muito mais marcantes em zonas rurais degradadas do que noutros locais. De facto, a contrapartida do atraso das economias nessas zonas e da sua marginalidade é que nelas se preservaram algumas das maiores oportunidades que se oferecem ao chamado terceiro sector da economia, alguns dos quais podem mesmo vir a constituir autênticas vantagens comparativas no futuro.

Estamos a referir-nos, desde logo, ao desenvolvimento da qualidade ambiental e a todo o conjunto de produtos - turismo rural, agricultura de especialidades regionais, agricultura para autoconsumo, floresta, recursos cinegéticos e piscatórios, etc. - com ele relacionados. Podemos ainda incluir entre estas novas oportunidades de emprego as que se ligam ao património construído, ao artesanato e à cultura. Falamos, ainda, dos empregos proporcionados pelos equipamentos sociais, culturais, desportivos e outros a criar.

Não se defende aqui que as zonas rurais recuadas devam ficar reduzidas, nas suas oportunidades, a estes sectores, o que apenas reforçaria a sua marginalidade (10). Defendemos, isso sim, que nessas regiões se podem encontrar particulares condições para a criação de emprego relativamente acessível aos grupos mais desfavorecidos da população e que o desenvolvimento dos contratos de inserção do RMG deverá estimular acções destinadas a promover as iniciativas correspondentes, com óbvios efeitos de desenvolvimento e valorização local.

Por outro lado, as prestações constituem uma injecção de dinheiro nas comunidades locais que, podendo não atingir volume suficiente para inverter as situações de depressão global, não deixará de se fazer notar, por exemplo, no comércio e nos serviços.

O RMG gerou um fenómeno de focalização da pobreza que lhe deu grande visibilidade, reforçando dessa forma uma tendência que se vinha já manifestando para alargar a base social de apoio ao respectivo combate. A situação das zonas mais pobres não deixa de beneficiar com isso, no sentido em que estarão melhor sustentadas as reivindicações de maior justiça na afectação de meios a essas zonas. Tais meios, vertidos em estruturas sociais, escolares, culturais, ambientais, turísticas, de produção artesanal, de serviços à comunidade, de protecção e promoção do ambiente e do património, como as que referimos, não irão apenas beneficiar as famílias que tenham direito ao RMG, mas todas as outras que estejam nas camadas de rendimentos imediatamente superiores, embora marcados por situações de grande precaridade. Por razões de rarefacção populacional, os beneficiários do rendimento mínimo podem não ser muito numerosos em muitos concelhos do interior, mas existem muitas outras famílias e pessoas que, sendo pobres, ficam nas margens da prestação por terem direito à pensão social ou obterem rendimentos da economia de subsistência e de empregos mal remunerados. Também essas poderão aceder às estruturas cuja criação o RMG deverá provocar e estimular, caso a lógica da inserção se torne tão relevante na prática quanto se deseja.

Tal como acontece com as parcerias, também a construção de estruturas capazes de oferecer reais oportunidades de inserção está longe de ser uma batalha ganha. Desde logo, existe uma grande carência em termos de quantidade e formação de pessoal técnico capaz de estruturar as respostas necessárias em cada sector de actividade. Depois, existem rotinas de trabalho fortemente resistentes à inovação, tanto mais quanto elas se escudam na escassez de meios. Por fim, existem recursos inscritos em diversos programas e políticas nacionais e europeias, mas nem sempre existem as capacidades de os utilizar de forma coerente e eficiente.

A fase experimental do RMG teve o mérito de revelar no interior rural um conjunto de muito boas experiências de combinação de recursos externos com recursos internos para a construção de programas de inserção e criação de estruturas adequadas à implementação desses programas. Muitas vezes essas experiências contaram com um grande empenhamento das autarquias, que mobilizaram os outros parceiros num esforço de inovação que transcendeu em muito os beneficiários do RMG e revelou soluções de desenvolvimento integrado efectivamente centrado na qualidade de vida das pessoas.

É de supor que a difusão desta atitude, caso venha a verificar-se, rapidamente torne muito insuficientes os recursos disponibilizados ao nível central e accionados ao nível local. Naturalmente pretende-se que os meios sejam utilizados segundo critérios de justiça e como investimento, isto é, não se trata apenas de distribuir recursos que a sociedade gera crescentemente, mas também de utilizar essa redistribuição como instrumento de desenvolvimento e integração social. Este processo libertará energias que reclamarão apoios e meios crescentes. Em casos bem sucedidos, os investimentos produzem contributos que a prazo os ultrapassam, ponderados os efeitos sociais, ambientais e económicos. Mas, no curto e médio prazo, o investimento a fazer implicará maiores custos. Quer dizer, se a prazo se pretender poupar, o investimento no desenvolvimento terá por enquanto que ser mais avultado (11).

Um terceiro tipo de efeitos do Rendimento Mínimo Garantido sobre o desenvolvimento das regiões rurais periféricas respeita à participação dos cidadãos na vida das suas comunidades.

A condição da participação é relativa ao processo de abertura das instituições que já referimos, à criação de oportunidades resultantes do melhoramento e expansão das estruturas de apoio ao desenvolvimento que igualmente já discutimos, mas também às capacidades das pessoas e das famílias para assumirem plenamente a sua condição de cidadania. Esta é uma última e importante área de efeitos potenciais do Rendimento Mínimo Garantido sobre o desenvolvimento das regiões rurais periféricas. Em contextos onde a quantidade e as qualificações das pessoas são bens raros (12), fazer comque aqueles que agora são marginalizados participem nos processos de desenvolvimento e contribuam com o seu esforço pode ser decisivo.

Uma boa parte de tais efeitos potenciais pode perder-se se o RMG não se tornar numa política de efectiva combinação do apoio financeiro às pessoas e às famílias com a oferta de programas de inserção. Só assim ele cumprirá a missão que lhe tem sido assinalada de constituir um primeiro patamar para a inserção dos mais desfavorecidos. No caso contrário, ele apenas virá a representar mais um passo no destino fatal dos mais pobres: o de se tornarem pessoas eternamente assistidas, nunca agentes do seu próprio futuro e do da sua comunidade.

Pode ser que, dadas as resistências geradas pela incorporação das condições de vida da privação nos valores, nos estilos de vida, nas representações, nas disposições e nas ambições das pessoas em situação de grande carência, o percurso que conduz da exclusão à participação demore muito tempo, até gerações. Esse percurso não poderá ser iniciado, porém, por quem não possua uma base mínima de confiança em recursos fiáveis e regulares. A sustentação de estratégias de investimento na mobilidade ascendente que a garantia do rendimento mínimo, por reduzido que seja, pode proporcionar é um dos seus efeitos principais. Mas também serão sempre passos no sentido do desenvolvimento todos aqueles que se derem em termos de escolarização de crianças e adultos que abandonariam a escola ou permaneceriam analfabetos, ou de acesso a equipamentos de crianças e idosos que sem eles teriam piores apoios e enquadramentos sociais. Tal como serão importantes todos os resultados obtidos na dificilmente avaliável, mas claramente relevante, recuperação da auto-estima e da dignidade de pessoas que as tinham perdido em parte por se verem impotentes para suprir às suas necessidades básicas e às dos seus familiares, por não possuírem um rendimento próprio. Falamos primeiro de resultados deste tipo para mostrar que os efeitos do RMG não se podem reduzir à qualificação profissional e ao emprego que muitas pessoas vão obter, assim acedendo a uma valorização pessoal e profissional e a meios de vida autónomos.

A experiência portuguesa tem mostrado que estes e outros efeitos nas pessoas são os mais facilmente atingíveis, por comparação com os que se conseguem obter no plano da organização e funcionamento das instituições e no plano das estruturas de inserção e apoio ao desenvolvimento. Na verdade, parece haver entre as pessoas mais desfavorecidas uma vontade de aproveitar as oportunidades genuínas que lhes são oferecidas para participarem da qualidade de cidadãos.

Por todas estas razões, o Rendimento Mínimo Garantido pode não ser um instrumento suficiente para promover o desenvolvimento integrado das zonas rurais periféricas e a sua integração nos padrões de vida normais nas regiões mais desenvolvidas. Mas é, sem dúvida, um estímulo nesse sentido e uma oportunidade para um desenvolvimento mais justo, a favor das pessoas e das regiões mais desfavorecidas.
 
 
 
 
 
 

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(1) Trata-se, na verdade, de uma contestação por demissão contra a de exploração e dominação nos campos.

(2) Para um debate acerca das relações entre a pobreza e o subdesenvolvimento das regiões rurais periféricas e de possíveis medidas de promoção do desenvolvimento dessas regiões, ver Almeida, João Ferreira de, Amaral, João Ferreira do, Borrego, Alexandre, Capucha, Luís e Ferrão, João, 1994, Regiões rurais Periféricas: que desenvolvimento, CAIS/CIES, Lisboa.

(3) Para além de ser intolerável do ponto de vista moral.

(4) Ver Cohen, Daniel, 1997, Richesse du Monde, Pauvretés des Nations, Flammarion, Paris.

(5) Ver Habermas, Jurgen, 1976, Legitimation Crisis, Heinemann, Londres.

(6) Naturalmente, não se pode esperar dessa medida, por si só, a superação de todos os bloqueios e problemas de desenvolvimento do mundo rural. Caso esse constitua um objectivo societal, ela constitui, porém, um exemplo que pode ser seguido. Por outro lado, deve realçar-se que, inaugurando o que na Europa tem vindo a ser chamado «nova geração de políticas sociais», ela projecta-se para além da protecção e da acção social. Não constitui, pois, apenas uma medida correctiva, mas também uma medida preventiva da pobreza com pretensões de impacte económico relevante.

(7) Embora algumas das acções, como a decisão de atribuição das prestações pecuniárias, sejam competência exclusiva de instituições específicas.

(8) A propósito desta noção, ver Silva, Augusto Santos, 1986, "Produto Nacional Vivo: Uma Cultura para o Desenvolvimento", in Atitudes, Valores Culturais, Desenvolvimento, AAVV, SEDES, Lisboa.

(9) A que têm direito as pessoas cujo rendimento por «adulto equivalente» seja inferior à pensão social, tida em conta a economia do agregado familiar a que pertencem.

(10) Ainda que sob a fachada de uma suposta valorização da identidade, a qual constitui um elemento facilitador do desenvolvimento, mas não um fim em si mesma.

(11) Quando se discute actualmente em Portugal a questão da regionalização, não podemos deixar de manifestar o desejo de que tal processo desemboque num maior equilíbrio dos apoios prestados a cada região, nomeadamente fazendo-os corresponder não apenas à sua actual dimensão e importância estratégica, mas também ao esforço de combate à exclusão social que os agentes de cada região estiverem dispostos a fazer.

(12) Refira-se que se não se encontrarem nas zonas rurais os meios de promoção das condições de vida das pessoas mais desfavorecidas, elas não deixarão de continuar a alimentar o afluxo de situações problemáticas às zonas urbanas, pelo que todo o investimento nas regiões rurais recuadas é, na verdade, também um investimento noutras regiões, incluindo as mais desenvolvidas.