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Pierre Guibentif Professor do ISCTE
No debate que teve lugar em Idanha-a-Nova, em 13 de Junho de 1997, abordaram-se diversos factores susceptíveis de favorecer ou inibir o desenvolvimento do Interior. Vários intervenientes insistiram em particular num destes factores: «as pessoas». Explicitamente referidas numas intervenções; noutras implícitas, mas bem presentes. Recordemos algumas afirmações (1). Tratar-se-ia de O observador deste debate, face à relevância
do papel assim atribuído «às pessoas», não
pode deixar de registar o seguinte: estas «pessoas» não
têm nome. Este dado trivial merece alguma explicitação
(i). Esta deveria tornar mais evidente a pertinência de três
perguntas: quais as implicações desta «anonimidade»?
(ii); quais as suas causas? (iii) Que fazer - ou melhor: que dizer? (iv).
I
O que sugere que faz falta uma designação directa e clara dos intervenientes no desenvolvimento regional é o simples facto de tais designações existirem em muitos dos campos (2) onde determinadas categorias de pessoas - ou todas as pessoas - assumem um determinado papel. São «os cidadãos» que são convocados a participar nos processos democráticos de eleição ou de decisão. São «os médicos», «os magistrados», «os jornalistas», «os estudantes», «os professores», que se dotam de estruturas representativas, que assumem posições públicas, que reflectem sobre a sua posição ou profissão; são «os telespectadores», cujos interesses, respectivamente desinteresses, as taxas de audiência são supostas traduzir; cujas legítimas expectativas se pretende satisfazer; são «os consumidores» cujas preferências ditariam o desenvolvimento de produtos e de modalidades de comercialização; «os utentes» cujo conforto seria preocupação dos responsáveis de serviços públicos; «os trabalhadores» que desfilam no 1.º de Maio; «as mães» que procuram conciliar vida profissional e vida familiar; «os pais» que procuram novos modos de assumir o seu papel; etc., etc. Face a estas inúmeras designações de papeis específicos, quem se empenha no desenvolvimento de uma região? «as pessoas». Existe, na verdade, uma possível designação, que consiste em referir «as pessoas» por lugares de origem. É inquestionável que «os Transmontanos», os «Beirões» e muitos outros participam no esforço de desenvolver o Interior. Tais designações levantam, no entanto, diversos problemas. O principal relaciona-se com a composição das populações que em determinada altura vivem numa região. Por causa dos movimentos migratórios internos e internacionais, estas populações são compostas tanto por pessoas naturais da região em causa, como por recém chegados, ou ainda por pessoas que adoptaram um modo de vida «pendular», morando numa região, mas trabalhando noutra. Não é líquido que estas categorias também estejam incluídas em designações derivadas dos nomes de lugares. A própria gramática (3) sugere a sua exclusão, quando qualifica estas designações de «nomes étnicos», ou de «nomes gentílicos», isto é nomes derivados «da nação ou da terra donde alguém procede». Apenas por extensão poderão aplicar-se também aos que, numa determinada altura, moram numa terra, sem dela «proceder». Ora parece inquestionável que estas populações também deveriam ser associadas ao esforço colectivo de desenvolvimento regional. Resta a designação das pessoas através
do nome da própria região. Este é uma fórmula
usual para os Estados-nações; em Portugal talvez mais corrente
ainda do que noutros países. Poder-se-ia dizer, por exemplo, que
«o Interior» deve apostar num determinado futuro. Uma tal designação,
no entanto, não se dirige imediatamente aos indivíduos, o
que pode atenuar o seu efeito mobilizador.
II
Recordemos algumas implicações desta anonimidade dos agentes do desenvolvimento regional. No plano das relações concretas de convivência ou de cooperação, não é possível interpelar directamente, pessoalmente, estes agentes, a não ser por perífrases incómodas. Quem pode utilizar expressões tais como «actores do desenvolvimento» são os observadores exteriores; e, entre estes, o sociólogotalvez o faça com particular gosto e à vontade. É pouco provável, em contrapartida, que um orador membro da colectividade em causa possa cativar uma audiência de pessoas desta mesma colectividade, saudando-a pelas palavras «caros agentes do desenvolvimento». No plano do que poderíamos chamar o imaginário social, a ausência de um nome dificulta a formação de representações e atitudes que tanto os próprios agentes do desenvolvimento poderiam ter de si próprio, como deles poderiam ter intervenientes exteriores (um governo central, um consultor externo, um turista ...). Ou seja: a ausência de um nome dificulta a formação de uma identidade (4). Claro que os discursos que se podem ouvir sobre o desenvolvimento regional incluem frequentes referências às «pessoas» envolvidas no processo deste desenvolvimento. Porém, apenas uma palavra específica, não divisível, podendo funcionar para todos como uma unidade de raciocínio, seria susceptível de constituir o «pivot» à volta do qual todas estas referências teriam alguma probabilidade de ficar associadas. Na ausência de um tal «pivot», as várias noções que foram sendo relacionadas com a de «agente de desenvolvimento» dispersar-se-ão, nas conversas e nos pensamentos subsequentes, à medida que se deixará de fazer o esforço de manter a equivalência entre as várias expressões ouvidas - o Interior, as pessoas, os actores, os agentes, os intervenientes, etc. etc. Mais fundamentalmente, a ausência de um nome dificulta
o que o sociólogo terá de chamar um processo de construção
de um actor social (5). Processo esse que resulta de uma interligação
entre os dois mecanismos que se acaba de recordar e que poderíamos
chamar «convocação» e «evocação»:
um parceiro é reconhecido, e consegue impor-se num debate ou num
empreendimento colectivo, na medida em que se impõe uma certa imagem
dele; por sua vez, esta imagem ganha substância na medida em que
se acumula a memória de intervenções que possam ser
claramente e facilmente atribuídas a este parceiro. Em suma, o nome
é o atributo por excelência desta realidade ambivalente: o
sujeito. Na ausência do nome, é lícito presumir da
ausência do sujeito (6).
III
Será que, no domínio em análise, a ausência de um nome poderá autorizar a hipótese da ausência, ou, em termos mais prudentes, da inconsistência de um actor social que seria constituído pela globalidade da população da região a desenvolver? Sem pretender responder aqui a esta interrogação, pode admitir-se que qualquer «consciência regional» é provavelmente menos efectiva do que as múltiplas identidades sectoriais que motivam os esforços heterogéneos cujo efeito agregado é o desenvolvimento que actualmente se poderá medir. Encontramos empresários, agricultores, trabalhadores, habitantes etc. empenhados em rentabilizar os seus investimentos, valorizar as suas terras, garantir a sua subsistência, melhorar as suas condições de vida, etc.; mais do que «agentes do desenvolvimento regional» em primeira linha empenhados neste desenvolvimento. Um outro efeito de preeminência semântica certamente tem a sua importância. Trata-se do primado concedido ao país no seu conjunto, a Portugal, sobre as regiões que o compõem. Insistentemente convocados, enquanto «Portugueses», a associar-se ao progresso do país no seu conjunto, os cidadãos apenas mais recentemente poderão ter começado a relacionar o seu empenho com um processo mais circunscrito de desenvolvimento regional. A associação entre desenvolvimento e nação é um dado que transcende o caso português. Tem-se até sustentado que a noção de desenvolvimento é consubstancial da nossa noção de sociedade (7), que por sua vez tende a corresponder aos contornos do Estado (8). O actual debate sobre a regionalização talvez possa ser uma oportunidade de emergência para novos vocábulos, apropriados a identificações mais circunscritas; na condição, todavia, de ser travado também, numa medida determinante, em arenas essas também de âmbito regional. Finalmente, é provável que a dificuldade
de nomear os agentes do desenvolvimento tenha também a ver com a
dificuldade de definir os conteúdos do próprio projecto de
desenvolvimento, nas tensões entre produção e valorização
dos recursos ambientais, entre inovação e valorização
das tradições, entre mobilização e enraizamento.
IV
O esboço de interpretação da anonimidade do agente de desenvolvimento levou a identificar, em primeira linha, a seguinte alternativa: o desenvolvimento regional pode ser concebido como um projecto, assumido por um actor social, a população da região; também pode ser um efeito da acção conjugada de vários factores, entre os quais a prossecução de projectos sectoriais. Esta alternativa resolve-se na ambivalência do discurso político que há pouco se teria designado de «pós-moderno», que não desiste de invocar os actores, correspondendo a estas invocações, pincipalmente, todavia, medidas que se cingem a influir sobre efeitos de composição. Seja como for, sempre valerá a pena mobilizar mais
eficazmente, no seu conjunto, as populações de regiões
a desenvolver, não apenas nas actividades produtivas susceptíveis
de alimentar este desenvolvimento, mas também nos debates sobre
a orientação e a natureza deste desenvolvimento. Nesta perspectiva,
a emergência de um nome identificando os que se associam nestas actividades
e nestes debates - sendo apenas um factor entre outros - poderá
ser considerado simultaneamente como indicador e como instrumento de uma
mobilização mais intensa. Parafraseando um sociólogo
crítico da intervenção estadual, não se introduzem
palavras por decreto (9). Também é verdade, no entanto, que
uma das principais vocações que restam hoje ao discurso político
é a de propor «às pessoas» palavras nas quais
estas se possam reconhecer.
______________________ (1) Os fragmentos que se seguem são extraídos de apontamentos feitos pelo autor durante o debate, sempre com a preocupação de registar formulações textuais. Para o propósito de presente texto, não pareceu útil identificar individualmente os intervenientes citados. (2) A diferenciação de campos sociais distintos, estruturando as sociedades contemporâneas, é um dos adquiridos mais consistente da sociologia. Vejam-se por exemplo Bourdieu, Pierre, 1989, "A génese dos conceitos de habitus e de campo", in ID., O Poder Simbólico, DIFEL, Lisboa, pp. 59-73; Giddens, Anthony, 1992, As consequências da modernidade, Celta, Oeiras, (nomeadamente pp. 16 segs. sobre o fenómeno da «descontextualização»); Luhmann, Niklas, 1982, The Differentiation of Society, Columbia University Press, New York. (3) Ver por exemplo Cuesta, Pilar Vazquez, Luz, Maria Albertina Mendes da, 1980, Gramática da língua portuguesa, Edições 70, Lisboa, p. 348; Azevedo, Domingos de, 1978, Grande dicionário francês-português, Bertrand, Lisboa, p. 746. (4) Para alguns contributos recentes sobre a problemática da identidade, nas ciências sociais em Portugal, ver por exemplo Sobral, José Manuel, 1995, "Memória e identidades sociais - dados de um estudo de caso num espaço rural", in Análise Social, n.os 131-132, pp. 289-313; Gomes, Jorge Madeirinha, Meireles, Rui, Peixoto, João Miguel, Pimentel, Duarte, 1996, "Identidades culturais e dinâmicas comunicacionais: uma simbiose quase perfeita", in Sociologia - Problemas e Práticas, n.º 20, pp. 185-207. (5) Para alguns exemplos de abordagens construtivistas próximas da perspectiva aqui sugerida, ver o número especial da Law & Society Review dedicado ao tema «Community and Identity in Sociolegal Studies» organizado por Elizabeth Merz (vol. 28, n.º 5, 1994). (6) Esta tese corresponde a uma assunção profundamente enraizada na nossa cultura. Limitemo-nos a uma única referência, o artigo 24.º do Pacto internacional sobre os direitos civis e políticos, que dispõe que «Toda e qualquer criança deve ser registada imediatamente após o nascimento e ter um nome». (7) Cabral, Manuel Vilaverde, 1993, "Desenvolvimento, sociologia do desenvolvimento e desenvolvimento da sociologia", in AA.VV., Estruturas sociais e desenvolvimento (Actas do II Congresso Português de Sociologia), Fragmentos, vol. i, pp. 80-86, Lisboa. (8) Wallerstein, Immanuel, 1995, "Mudança social? ?A mudança é eterna. Nada muda, nunca?", in Revista crítica de ciências sociais, n.º 44, pp. 3-23. (9) Crozier, Michel, 1979, On ne change pas la société par décret, Grasset, Paris. |