Discurso do Presidente da República por ocasião das Conferências de São Domingos "O Cérebro entre o Bem e o Mal"


28 de Outubro de 2003


Estou hoje, aqui, convosco, para, antes de mais, vos significar a importância que atribuo à realização destas Conferências de S. Domingos. Penso que precisamos de mais e de melhor debate e creio que necessitamos de dar uma perspectiva ampla aos temas da nossa actualidade. Acho que não nos devemos satisfazer (ou resignar) a que tudo seja tratado de forma superficial, passageira, casuística ou sensacionalista. Felicito a Ordem dos Advogados e o seu Bastonário por esta iniciativa tão interessante e desejo que ela prossiga com o êxito que merece.

Depois, também estou aqui presente por interesse pessoal. Com a vida que levo e as obrigações que tenho, poder passar um pouco de tempo a ouvir tão ilustres figuras, que tanto admiro, a reflectirem sobre um tema que, desde que o homem se conhece, não tem parado de o interpelar, é para mim um grato prazer. Considero, aliás que a reflexão que aqui será feita (e eu, infelizmente, só posso assistir a uma parte dela, mas procurarei informar-me do que for dito) ajuda-me a interpretar, como me compete, os sinais deste nosso tempo tão complexo e em mudança tão acelerada de paradigmas e fundamentos.

O Cérebro entre o Bem e o Mal – é o tema desta jornada de um dia. O Bem e o Mal, considerados a partir de diversos pontos de vista: o científico, o filosófico (ontológico, ético, epistemológico, hermenêutico), o teológico e o jurídico. Os advogados, os juizes, os magistrados todos os dias lidam, directamente ou indirectamente, com estes conceitos magnos. Cada sistema jurídico, ao definir o lícito e o ilícito, é, afinal, em nome do Bem e do Mal que o faz. A política, ao prosseguir o Bem Comum ou o Interesse Geral, elege o que é Bom e o que é Mau para esse Interesse. As escolhas eleitorais traduzem também essa escolha, que é sempre relativa e provisória. Só no limite, aquele em que a política se nega a si própria, é que o Bom e o Mau se tornam no Bem e no Mal. Esse é o horror do totalitarismo. O século XX conheceu, para desgraça nossa, esse limite e esse horror. O holocausto já foi chamado de Mal Absoluto e Hannah Arendt falou, na famosa reportagem que fez do julgamento de Eichmann em Jerusalém, da "banalidade do mal". Também a grande poetisa russa Anna Akhmatova falou do estalinismo (e do gulag) como de algo que habitava o coração das trevas e que negava não só a política, mas a própria humanidade do homem.

Se cito a política e a justiça é para vos dizer que estas duas actividades, que consubstanciam muito da minha experiência do mundo, lidam, quotidianamente, com estes conceitos ou o eco deles. Muitas vezes sem que os seus agentes se interroguem sobre os fundamentos últimos das suas escolhas ou sem que auto-analisem como formaram os seus critérios éticos.

Neste nosso tempo dito da pós-modernidade, e nestas nossas sociedades a que alguém já chamou de pós-cristãs, a questão ética, considerada de modo porventura radicalmente novo, voltou ao primeiro plano do debate. Há uma generalizada falta de ética e de valores, como nunca houve – dizem alguns. Outros respondem: o que há é valores e critérios éticos diferentes. Seja como for, uma coisa é certa: sabemos que o terreno que pisamos deixou de ser estável e sólido.

No século XX, Levinas, Wittgenstein, Sartre, e mesmo Camus e Kafka, entre outros, deram à Ética novos fundamentos. Retenho, embora certamente de um modo simplificado, a mensagem fundamental de Levinas e que me é especialmente grata. A ideia de que a Ética nasce na visão do rosto do Outro, que materializa a nossa abertura, a nossa alteridade e a nossa responsabilidade face ao que é, ao mesmo tempo, igual e diferente de nós; da nossa espécie e todavia irredutível na sua singularidade.

Tempo de dúvidas mais do que de certezas, este. Tempo de perguntas mais do que de respostas, é com perguntas que procuro, modestamente, contribuir para este debate. Olhando o programa deste dia, ocorrem-me algumas. A primeira delas é muita antiga: como é possível haver Mal, havendo Deus? Quem criou o Mal, se Deus é, por definição, Omnipotente e Bem Absoluto? Será que há Mal, como dizem alguns, para que o homem possa ter livre arbítrio e escolhê-lo? E não haveria outra maneira de o homem poder escolher?

Outras perguntas que não deixaram de surgir, a partir do século XIX: não havendo Deus, como encontrar fundamento absoluto para o Bem e para o Mal; ou tal fundamento deixa de ser possível? Será que o relativismo ético é consequência inevitável e inelutável da morte de Deus? E se o Bem e o Mal são construções culturais e sociais, como alguns pensam, como podem então ser conceitos universais, sobre os quais assenta uma ordem? Ainda mais algumas questões: que nos diz a neurobiologia sobre o Bem e o Mal? É possível encontrar no cérebro aquilo que poderíamos chamar uma sede para o Bem e outra para o Mal?

O Mal reside no corpo ou na alma? Que atracção mórbida tem o homem pelo mal que o leva a gostar de ver, fascinado, filmes e noticiários violentos e cruéis, que são a evidência do Mal? Há uma estética do Mal, uma beleza perigosa no Mal, como se revela em certas obras de arte? E que nos diz a psicanálise do Mal e do Bem? Como os relaciona com o inconsciente? E como se exerce assim a responsabilidade moral de escolher o Mal?

E acrescento mais algumas questões: Kant teria razão quando disse que há Mal que gera o Bem e Bem que gera o Mal (é este, de certo modo, o tema do filme Dogville, de Lars von Trien)? Ou: a linha da demarcação que passa entre o Bem e o Mal é clara? Há males menores que podem funcionar como catarse para não se chegar ao Mal maior?
Terminando: se o Mal muda, a justiça deve mudar com ele? E qual o significado ético dos casos limites com que a justiça tem de lidar: os criminosos inimputáveis?

Deixo-vos algumas perguntas com a consciência plena de que é fácil formulá-las mas, pelo menos nalguns casos, difícil e complexo dar respostas. Estes são domínios em que muitas coisas têm mudado. Sabe-se certamente muito mais do que se sabia ainda há pouco tempo; mas conhece-se também com mais nitidez o quanto ainda falta saber.

Reflectir sobre questões que têm a ver com aquilo que nos define como seres livres e responsáveis – a capacidade de assumir escolhas morais – é ainda uma forma de lutarmos por uma sociedade em que a liberdade de cada um não seja obstáculo à liberdade de todos. Não devemos, porém, esquecer, como disse Paul Ricoeur, no seu livro Le Mal – Un défi à la philosophie et à la théologie, "que o problema do mal não é apenas um problema especulativo: ele exige convergência entre pensamento, acção (no sentido moral e político) e uma transformação espiritual dos sentimentos".

São estas palavras, carregadas de pontos de interrogações, que se me oferece dizer-vos como introdução a este debate. Agradeço o vosso muito amável convite. Agora, só me resta escutar e aprender. Muito obrigado pela vossa atenção e parabéns pela iniciativa.