Discurso de SEXA PR por ocasião da Sessão Solene de Abertura do Ano Académico 2003/2004 do Instituto de Defesa Nacional


16 de Dezembro de 2003


Excelências,
Minhas Senhoras e Meus Senhores

É com muito gosto que uma vez mais respondo ao vosso simpático convite para usar da palavra nesta cerimónia. Faço-o como público testemunho da importância do papel deste Instituto e como incentivo ao desenvolvimento dos seus trabalhos.

Ao longo dos anos, têm variado muito as conjunturas quer nacionais quer internacionais. Tenho-as utilizado, sempre que possível, como elemento da reflexão que nestas ocasiões partilho convosco.

Talvez, num momento de uma acrescida incerteza internacional e num contexto interno de maiores dificuldades valha a pena olhar para Portugal e reflectir um pouco sobre algumas das condições que permitam consolidar um futuro melhor.

É difícil fazê-lo sem identificarmos primeiro, mesmo que hoje de forma muito sucinta, o modo como olhamos para nós próprios. Sei que este é um exercício de distanciação nem sempre fácil. Mas a dificuldade é compensada, julgo, pela utilidade que dele advém.

Fruto de circunstâncias diversas, fomos, até hoje, incapazes de convergir numa leitura comum de alguns traços dominantes da nossa história. Herdámos das últimas décadas do século XIX, uma interpretação decadentista do nosso passado, construída através do inventário de um conjunto de oportunidades perdidas ao longo de séculos. Herdámos do nacionalismo autoritário da ditadura uma versão épica da nossa História e essas visões tão contraditórias construíram as suas raízes na cultura política portuguesa de acordo com uma clivagem que atravessou as diversas esquerdas e as diversas direitas que se sucederam nos últimos 100 anos.

Acumulámos mitos que os historiadores há muito desfizeram com as suas investigações, mas que continuam presentes no nosso imaginário e, por isso, na nossa modo de olhar para Portugal. Poupo-vos ao inventário dessa mitologia. Mas quem é que não ouviu já a muitos que acham que perdemos a oportunidade que tivemos com os fundos comunitários, de compará-la à outra oportunidade que teríamos perdido com o ouro do Brasil? Ou quem não ouviu já repetir que temos uma particular vocação para as relações com África porque desenvolvemos um modelo único de colonização, como se o luso-tropicalismo tivesse sido inventado ontem?

O regime democrático não foi capaz de fazer assegurar as bases para uma síntese equilibrada do nosso imaginário nacional. Criou, é certo, as condições para um amplo trabalho de investigação histórica que reduziu esses mitos aquilo que eles verdadeiramente são: mitos.

Mas o ensino e a divulgação da história estão infelizmente muito longe de corresponder às necessidades do país. A tendência é aliás preocupante. Cada vez mais se estuda e se conhece menos a História de Portugal. Ora, em bom rigor, quem não reconhece bem o seu passado tem muita dificuldade em lidar com o presente.

Desprovidos de um fio condutor mínimo em que todos convirjam sobre as grandes linhas de força do nosso passado falhamos muitas vezes na correcta identificação da genealogia de alguns problemas estruturais. Precisamos, por isso, acrescidamente, de nos pôr de acordo sobre o nosso presente, de identificar com rigor as nossas próprias debilidades e de às ultrapassar com sentido da irreversibilidade do tempo que passa. Talvez fosse útil deixarmo-nos de complacências para com problemas que têm longas e antigas linhagens e para os quais se fica, por vezes, com a sensação de que os encaramos como uma fatalidade à qual nos resignamos. Fado e resignação foram, aliás, elementos de alguns desses mitos identitários.

É minha convicta opinião que o futuro de Portugal depende da resposta que se encontre para um conjunto de problemas que são irresolúveis se a sua solução depender apenas de uma maioria parlamentar, por muito ampla que ela seja. E nós já tivemos maiorias parlamentares superiores a 50%, é bom não o esquecer.

Ao longo dos últimos 30 anos a esta preocupação – que como vêm não é originalidade minha - já se chamou muita coisa. Uns, apelaram à necessidade de um pacto de regime. Outros, a um amplo consenso nacional. Outros, ainda, a uma convergência mínima. Eu já devo ter utilizado, seguramente, todas essas expressões.

O que é que impede então a sua realização?

A convicção de que um partido sozinho é capaz de liderar um profundo processo de reformas? O PS e o PSD já estiveram sozinhos no poder e não conseguiram, embora tenham tentado.

A convicção de que só uma coligação de partidos do mesmo espectro político tem a coesão suficiente para o fazer? O PSD e o CDS já vão na segunda experiência política e não conseguiram, embora o tivessem tentado. E estou, naturalmente, a falar apenas da primeira experiência.

A convicção de que só uma coligação dos dois maiores partidos nacionais será capaz de o fazer? O PS e o PSD já estiveram coligados no poder e não o conseguiram, embora também o tivessem tentado.

As circunstâncias dessas experiências eram diferentes, alegarão muitos. Sem dúvida. São sempre diferentes. A verdade porém é que a persistência de alguns problemas atingiu hoje uma dimensão intolerável.

Mais do que nunca se torna evidente que eles só podem ser encarados com medidas rigorosas assentes num acordo político amplo. Não há tempo para falhar mais uma tentativa.

O que todo esse nosso passado de experiências políticas tão diversas demonstra é que ainda não fomos capazes de encontrar a forma de autonomizar a natural conflitualidade inter-partidária do acordo em torno de algumas questões de fundo. Pelo contrário, por vezes, parece até que as condições de diálogo inter-partidário são hoje menores do que eram há dez anos atrás.

É preciso encontrar um caminho.

Os partidos de esquerda e os partidos de direita do espectro político nacional têm vindo a aprofundar as suas divergências em matérias em que já estiveram mais próximos, designadamente, nas políticas nas áreas da Saúde, da Educação e do Trabalho e da Segurança Social. Estão hoje a consolidar-se concepções políticas divergentes, quer na avaliação dos problemas, quer no formulação de políticas sectoriais. Reconheço que são áreas onde os consensos – e até os diálogos – têm sido, infelizmente, mais difíceis, tal como reconheço que desse separar de águas resulta uma percepção mais clara para o eleitor do posicionamento ideológico dos dois maiores partidos nacionais.

Talvez, o único caminho possível resida na identificação de um conjunto restritíssimo de áreas onde esse consenso é imprescindível. Cinco parecem-me evidentes. O Programa de Estabilidade e Crescimento, a reforma da administração pública, a reforma fiscal em todas as suas vertentes, a reforma das forças armadas e, finalmente, as políticas europeias.

O nosso futuro, naquilo que depende de nós, passa muito pela resolução destes problemas. Esta percepção já não se circunscreve apenas, como no passado, aos círculos académicos, empresariais ou políticos. está a generalizar-se junto da opinião pública que em breve julgará, estou certo, com igual severidade, quer os partidos no poder, quer aqueles que se encontram na oposição por não chegarem a um acordo sobre essas matérias. A pressão para uma convergência em torno destes pontos virá, cada vez mais, estou certo, do eleitorado e dos próprios agentes económicos, sociais e culturais.

Se não é possível acordo nalgumas políticas sectoriais, como idealmente seria desejável, é imprescindível que exista um acordo mínimo sobre as condições de funcionamento do Estado, sobre as condições de eficácia na arrecadação de receitas e sobre a capacidade de desenvolver uma política orçamental alicerçada no consenso quanto a um Programa plurianual de Estabilidade e Crescimento.

Nesta casa, onde se aprende a reflectir sobre as vulnerabilidades e ameaças, é importante que se reflicta também sobre estes aspectos porque eles fragilizam-nos mais do que muitos outros problemas de segurança, porventura mais evidentes.

Acreditamos – é outro dos nossos mitos identitários - na nossa capacidade de improviso e de, como diz o povo “de desenrasca”. Não sei em que realidade esse mito assenta. O que sei, sem dúvida, é que a realidade em que vivemos já não comporta esse tipo de diletantismo. Ser ou não ser capaz, ultrapassar ou não ultrapassar um problema, depende de conhecimento técnico e científico, de constante formação profissional, de rigor e de combate constante a todas as formas de facilitismo.

Um regime que investe pouco na formação da pessoas e assegura mal o prestígio e eficácia das instituições do Estado é um regime que acumula vulnerabilidades e amplia a margem de incerteza do Futuro.

Fruto de circunstâncias diversas, o nosso regime político, a par de tantos feitos notáveis que permitiram a profunda transformação de Portugal em tão curto espaço de tempo, tem deixado acumular alguns problemas que hoje muito nos fragilizam.

A consolidação da expressão eleitoral dos partidos políticos, estejam no poder ou na oposição, dependerá cada vez mais quer da sua capacidade de formular políticas claras e distintivas, quer da sua disponibilidade para procurar os consensos necessários num conjunto restrito de matérias.

E atrevo-me a fazer um prognóstico: será essa capacidade de gerar consensos que distinguirá, cada vez mais, no futuro, os líderes com capacidade de contribuir para ampliar os caminhos possíveis para o nosso futuro como comunidade nacional. É disso que o país precisa.