Discurso de SEXA PR por ocasião da Sessão Solene de Abertura do Congresso da Justiça

Reitoria da Universidade de Lisboa
18 de Dezembro de 2003


Nos oito anos que levo de mandato presidencial, a questão da Justiça tem estado na primeira linha das minhas preocupações e da minha continuada intervenção.

E isto porque se trata - hoje todos o reconhecem - de um elemento estruturante da cidadania e da vida económica e social, que tarda em sair da crise - também ela por todos reconhecida - a que conduziram os desafios e as solicitações dos tempos novos.

Naquela continuada intervenção, privilegiei, ano após ano, a sessão solene de abertura do ano judicial, para inventariar disfunções do sistema de administração da Justiça e sugerir vias de superação da crise.

Sempre com a clara consciência de que se trata de obra de tomo, cuja concepção, e sobretudo execução, se prolonga no médio e longo prazo, e que tem de ser empreendida com a cooperação, entre si, de todos os agentes da Justiça - magistrados, advogados, solicitadores e funcionários judiciais - alargada, todavia, a quantos cultivam experiências e disciplinas que se relacionam, nas suas várias vertentes, com o fenómeno judiciário.

É por isso que, desde 1998, venho insistindo na necessidade de instituição de um fórum permanente de reflexão e discussão sobre os problemas da Justiça e suas possíveis soluções.

Fórum que, em concertação com o Conselho Superior da Magistratura e com o Conselho Superior do Ministério Público, congregasse as associações profissionais de todos os agentes da Justiça para um trabalho interprofissional e interdisciplinar, que permitisse a construção permanente de denominadores comuns de análise e de propostas.

Tal fórum - fui sugerindo - poderia ser alargado às universidades, às autarquias, aos deputados à Assembleia da República, e funcionar mesmo como uma entidade de consulta no decurso do processo legislativo, fosse ele da iniciativa de deputados, fosse do Governo.

Não admira, por isso, que ao saudar, hoje, os Senhores Congressistas, veja nesta vossa realização uma resposta ao apelo que continuadamente tenho feito, e os incite a fazer todo o possível para que este Congresso seja apenas o primeiro momento de uma indispensável e institucionalizada cooperação entre todos os agentes da Justiça.

Se for isso, se dos vossos trabalhos resultar a institucionalização das formas e dos quadros de cooperação, entre todos os profissionais do foro, para a restruturação e reforma da Justiça, então o Congresso, tendo posto alta a fasquia, tê-la-á atingido plenamente.

Sucesso que não poderá ser mais caro ao Presidente da República, quando está em causa a cidadania, a cidadania da Justiça, que, desde a primeira hora, tenho procurado promover.

Senhores Congressistas,

Os temas do Congresso atravessam todo o sistema de administração da Justiça, desde a legitimação do poder judicial ao acesso ao direito, sem esquecer a formação das profissões forenses, e os vários segmentos em que se dividem e especializam tribunais e jurisdições.

A reflexão sobre esses temas e as conclusões que V.Exªs sobre eles formularem constituirão, por certo, um elemento essencial a ter em conta quer pela Assembleia da República, quer pelo Governo, a quem cabe, formalmente, a responsabilidade pela restruturação e reforma do sistema de administração da Justiça.

Mas tenha-se por certo - venho lembrá-lo uma vez mais - que o sistema de administração da Justiça atingiu uma dimensão e uma complexidade tais que se exige que tanto as soluções sobre a organização judiciária do território, seus quadros e meios materiais a ela afectos, como a definição de procedimentos e de tramitações processuais, passe no crivo dos profissionais da engenharia e gestão de sistemas organizacionais complexos.

E isto porque - não haja ilusões, nem se continue, teimosamente, a olhar para o lado - são saberes de que, enquanto profissionais forenses, não temos a menor ideia, e sem cujo concurso não haverá nenhuma reforma digna desse nome.

É óbvio que a primeira resistência a vencer é a nossa, a de profissionais do foro, no temor de perdermos o comando da reforma. E porque atrás da engenharia e da gestão de sistemas, vem a auditoria aos tribunais e às suas profissões, de par com exigências de produtividade a que temos estado, tantas vezes, arredios, como se a comunidade, ao conferir-nos a função de administrar Justiça, nos tivesse atribuído um privilégio, em vez deste poder-dever de dar a cada um o que de direito lhe pertence.

Temor tanto mais de afastar, quanto a grande maioria dos profissionais do foro são trabalhadores infatigáveis, que sofrem, no quotidiano, o desconforto da falta de instalações e de instrumentos condignos, pari passu com a frustrante desqualificação do seu trabalho no altar das disfunções do sistema.

Senhores Congressistas,

A conjuntura pôs em destaque alguns dos temas mais essenciais do processo penal, como é o caso da prisão preventiva, das escutas telefónicas, dos direitos dos arguidos e da protecção das vítimas. E ainda bem que assim foi, porque se trata de segmentos essenciais do Estado de Direito.

Mas a reforma da Justiça está bem longe de se esgotar nestes temas, que a actualidade singularizou, por mais importante que seja a questão do reforço das garantias, aí onde a prática exige aperfeiçoamentos, ou por mais premente que seja a necessidade, apesar de melhorias introduzidas nos últimos 5 anos, de se dispôr de uma tramitação processual que viabilize uma Justiça equitativa, célere e pronta.

Foi a pensar nessa tramitação processual que, com incompreensão de alguns, filha, porventura, de me não terem ouvido atentamente, falei, em 1998, em excesso de garantismo das leis de processo, que coexiste, aliás, como, na mesma altura, sublinhei, com zonas de inaceitável desprotecção de arguidos e de vítimas. E fá-lo-ia de novo, nos mesmos termos em que o fiz, agora com o conforto de medidas legislativas, entretanto tomadas, com o aplauso de todos, e que respondem directamente a algumas das interrogações que, então, levantei - refiro-me ao regime de adiamento de audiências e ao sistema de recursos.

O que estava em causa, então como agora, é tão só a necessidade de restrição de meios processuais de utilidade discutível, ou a sua desadequada tramitação.

O que nada tem a ver com as legítimas garantias dos cidadãos. Ou melhor, tem tudo a ver. Pois é, entre outras razões, por esses excessos, como tive ocasião de sublinhar, que o sistema bloqueia e fica insuficientemente disponível para a tutela dos direitos das pessoas e dos interesses da comunidade, que é a sua razão de ser.

Senhores Congressistas,

Se a cooperação entre os profissionais do foro é um elemento incontornável de uma reforma da Justiça, que lhe permita ser ocasião habitual de exercício da cidadania, o resultado prático e sustentado de tal reforma passará por uma formação profissional que dê a todos os agentes da Justiça uma concepção comum dos valores do Estado de Direito e uma recíproca compreensão do modo como eles se exercem em cada profissão forense.

E a esta luz, importa ponderar em que medida tal desiderato será, ou não, melhor atingido com um período de formação comum, pelo menos de magistrados e de advogados, que integre os modos como em cada uma destas profissões se expressam os valores comuns do Estado de Direito, e se prolongue em estágios práticos, nas diversas sedes profissionais, que traga aos estagiários de cada profissão forense uma vivida e reciproca compreensão da prática das demais.

Nesta ponderação, fica evidenciado que o tema da reforma da Justiça passa, também, por uma reforma das práticas, sem o que ficaremos numa espécie de estética legislativa, que nada acrescenta à necessária e inadiável cidadania da Justiça.

Senhores Congressistas,

O país espera muito do vosso trabalho.

Mas espera, sobretudo, que ele possa contribuir para que os poderes do Estado reordenem o sistema de administração da Justiça, em termos de ela ser, finalmente, equitativa, célere e pronta.

O Presidente da República manter-se-á atento, e não faltará com o seu estímulo e com a sua palavra aos poderes do Estado, sobretudo à Assembleia da República, onde tem assento a mais ampla representação política, para que, com a concertação possível, não tardem na sua acção.

É o que a cidadania da Justiça, que falta cumprir, espera de todos nós.