Discurso de SEXA PR por ocasião da Sessão de Encerramento do I Congresso - Imigração em Portugal: Diversidade, Cidadania e Integração

Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa
19 de Dezembro de 2003


Minhas Senhoras e Meus Senhores

Permitam que inicie esta intervenção dedicada aos problemas da integração de cidadãos estrangeiros na sociedade portuguesa, lembrando o que é óbvio e bem conhecido de todos os presentes – que Portugal é, desde há muito, pólo irradiador de intensos movimentos migratórios transfronteiriços.

Até meados do século XX, a emigração transatlântica, com particular incidência no destino brasileiro, ultrapassava o fluxo de saídas para a Europa. Sabe-se, contudo, que, a partir dessa altura, foi a emigração para os países europeus mais desenvolvidos que passou a destacar-se.

No curto período que vai de 1960 a 1974, terão abandonado o País cerca de dois milhões de portugueses, ou seja, qualquer coisa como um quinto da nossa actual população residente.

É um número que nos deve fazer pensar.

Antes de mais, porque nos dá uma ideia da enorme vulnerabilidade da economia portuguesa de então e dos níveis de desemprego que teríamos tido de suportar se o êxodo em direcção aos Países europeus mais desenvolvidos não se tivesse verificado.

Em segundo lugar, porque fornece uma primeira, mas expressiva, indicação sobre o grau de complexidade do processo de integração das sucessivas vagas de emigrantes portugueses nas sociedades de acolhimento.

Em terceiro lugar, porque pensar num tão amplo conjunto de cidadãos emigrados não pode deixar de nos remeter para o sofrimento de tantos outros – os seus familiares e amigos – que aqui permaneceram. Julgo, aliás, que não terá sido feita, até hoje, a homenagem devida ao estoicismo das mulheres portuguesas que, em condições de vida muito adversas, souberam garantir a rectaguarda da emigração nessa fase da história portuguesa, ora salvando a pequena exploração agrícola de uma morte anunciada, ora assumindo a gestão parcimoniosa das poupanças familiares, ora encarregando-se de novas missões relacionadas com a educação dos mais jovens.

Lembrar-se-ão muitos portugueses da minha geração quanto nos impressionavam, a partir de certa altura, os depoimentos de emigrantes portugueses sobre as dificuldades de integração por eles sentidas nas sociedades de acolhimento. Dificuldades de comunicação, dificuldades de legalização, dificuldades na obtenção de alojamento condigno, dificuldades em conseguir condições de dignidade mínima no trabalho – enfim, enormes obstáculos para se poderem afirmar, longe da sua terra, como cidadãos de corpo inteiro.Sem esquecer os esforços que as próprias comunidades de emigrantes portugueses desenvolveram para poderem ultrapassar os círculos viciosos da exclusão a que tantas vezes se viam submetidos, vale a pena sublinhar quanto a democratização do País e, depois, a sua aproximação institucional à Europa contribuíram para a dignificação da condição dos nossos compatriotas emigrados.

Os tempos mudaram, mudaram muito.

Equilíbrios políticos e económicos à escala internacional, que pareciam duráveis e estabilizados, sofreram alterações substanciais. Com elas, modificaram-se também as lógicas e padrões dos movimentos populacionais transfronteiriços. E Portugal, um País habituado a ver-se como uma pequena comunidade nacional da periferia geográfica, económica e cultural da Europa, exportadora de mão-de-obra, acorda para uma realidade nova – a da presença no seu território de um número significativo de imigrantes, oriundos, numa primeira fase, das antigas colónias africanas e, depois, dos Países da Europa de Leste e do Brasil.

A emigração de portugueses para o estrangeiro não se extinguiu – é bom lembrá-lo - , se bem que corresponda a volumes bastante mais moderados do que outrora e tenha cada vez mais a característica de saída temporária. No imaginário dos portugueses, é, contudo, a presença, e para alguns, a ameaça de cidadãos estrangeiros à procura de integração na sociedade portuguesa o problema social que, em matéria de movimentos migratórios, hoje tem a primazia. A realização deste 1º Congresso sobre a Imigração, em boa hora promovido pelo Alto Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas, constitui, seguramente, a demonstração de que a sociedade portuguesa e os seus responsáveis políticos não ignoram a gravidade das questões associadas à imigração e estão disponíveis para as estudar em profundidade.

Saúdo o facto de o Congresso ter sido concebido de forma a cruzar os pontos de vista de especialistas das ciências sociais com os de actores directamente envolvidos nas e pelas questões práticas em causa. Esta é uma fórmula que, dando garantias de rigor na análise, impede que o olhar se desvie ou distancie das circunstâncias concretas em que decorre o duro dia-a-dia de muitos imigrantes.

Não me tendo sido possível acompanhar o desenrolar dos trabalhos deste Encontro, tenho grandes expectativas relativamente aos resultados e propostas que dele decorrerão.

De facto, a questão da imigração tem sido motivo de grande preocupação nos meus mandatos e sou particularmente sensível às indicações que nos chegam sobre alguma incompreensão dos cidadãos portugueses relativamente à presença de imigrantes no País.

Julgo que uma chamada de atenção para o modo como historicamente nos relacionámos com a emigração deve ser uma componente fundamental de uma acção pedagógica dos responsáveis políticos do País dirigida a ultrapassar reacções espontâneas ou heterogeridas de medo, rejeição cultural ou mesmo xenofobia.
Foi com a intenção de propor alguns elementos para uma pedagogia da tolerância em relação aos cidadãos estrangeiros que residem entre nós que comecei por me referir à emigração portuguesa de há algumas décadas atrás. Há, contudo, outros elementos de conhecimento obtidos pelos especialistas desta área, muitos dos quais aqui presentes, que igualmente poderão ser mobilizados nesta perspectiva de esclarecimento cívico.

É preciso informar os cidadãos portugueses sobre o papel muito positivo da imigração em matéria de atenuação da tendência, ultimamente muito acentuada, para o envelhecimento da nossa população residente. Sem essa imigração, seriam mais pessimistas as perspectivas futuras de sustentabilidade financeira do sistema de pensões a que todos achamos ter direito. Sem essa imigração, perderíamos a oportunidade de fazer entrar pessoal com qualificações escolares elevadas em sectores de actividade onde elas têm escasseado. Sem essa imigração, ficaríamos, noutros segmentos do nosso sistema produtivo, com postos de trabalho literalmente por ocupar.

Para tornar mais eficazes os esforços de integração de não nacionais na comunidade portuguesa, impõe-se, contudo, prosseguir o esforço de investigação. Só aprofundando o conhecimento quer das condições concretas de existência dos imigrantes, quer das representações que eles e os cidadãos nacionais vão construindo sobre os Outros Diferentes será possível chegar a medidas eficazes de combate à marginalização do segmento social em causa.

Aliás, e como se terá tornado claro ao longo destes dois dias de Congresso, há experiências concretas de trabalho de intervenção social nestes domínios que podemos considerar exemplares. Serviços públicos, sindicatos, autarquias, organizações não-governamentais, instituições ligadas às Igrejas, em particular à Igreja Católica, grupos de voluntários, entre outros, não têm permanecido sem ideias e de braços cruzados perante a magnitude dos problemas que se multiplicam à sua frente. É preciso olhar essas experiências com atenção, captando o que nelas há de generosidade, inventiva, rigor analítico e conhecimento de causa.

Todos sabemos que dificuldades sociais como as que decorrem do aumento do desemprego não são propícias à criação de um clima de abertura e tolerância dos cidadãos nacionais em relação aos imigrantes.

Avançar simultaneamente nas frentes da pedagogia cívica, do combate sistemático à entrada de imigrantes ilegais e das medidas políticas bem fundamentadas e tomadas a tempo, inclusive em matéria de planeamento das necessidades de mão de obra, parece-me ser condição indispensável para que a situação não se deteriore.

Importa também que a legislação já aprovada seja regulamentada com a urgência possível, sem que esta colida com a ponderação que tão delicada matéria exige.

Não é aceitável, por outro lado, que, num domínio onde o grau de desprotecção tende a ser especialmente acentuado e onde abundam situações pessoais de enorme delicadeza, o tratamento dado às pessoas as possa reduzir ao papel de supranumerários facilmente dispensáveis, sem quaisquer preocupações humanitárias.

Procurar agilizar os processos de legalização desses imigrantes de acordo com os critérios instituídos, nomeadamente em termos de inserção no mercado de trabalho, será, sem dúvida, a solução que melhor se adequa às situações de maior precaridade.

Tenho consciência das dificuldades práticas com que se confrontam todos aqueles que, dia a dia, intervêm junto de populações imigrantes. Para eles, considerações de ordem geral como as que aqui apresentei ou mesmo outras, mais fundamentadas, propostas pelos especialistas reunidos neste Congresso poderão parecer demasiado afastadas dos problemas reais.

Julgo, contudo, que os espaços de debate alargado como o que, durante estes dois dias, aqui se concretizou acabarão por se revelar bem mais úteis para a intervenção social do que à primeira vista possa parecer. E isso tanto mais, quanto mais se aperfeiçoarem os mecanismos de discussão e acompanhamento sistemático das medidas e programas de acção nesta delicada área das políticas sociais.

Acredito que a realização do 1º Congresso Nacional sobre a Imigração constitua um marco decisivo na difícil caminhada para a construção de uma sociedade liberta de preconceitos xenófobos e tolerantemente multicultural.

Foi e é essa uma reivindicação dos emigrantes portugueses espalhados pelo Mundo. Espero que, enquanto país de acolhimento, saibamos impor a nós próprios esse mesmo generosos desígnio.