Discurso de SEXA PR por ocasião da Sessão de Encerramento do Seminário Económico Luso-Turco em Istambul

Istambul
17 de Setembro de 2003


Minhas Senhoras e meus Senhores

Tenho muito gosto em vos dirigir a palavra, no encerramento do seminário económico que juntou empresários turcos e portugueses nesta cidade de Istambul, célebre pela sua beleza e pela sua história, que tenho o enorme prazer de visitar pela primeira vez.

Cidade depositária de milhares de anos de civilização, capital de sucessivos impérios, herdeira de um património cultural único, Istambul é também — e isso salta à vista — cidade de modernidade, cidade de futuro, plena de vivacidade e dinamismo.

Basta chegar aqui para nos apercebermos de imediato da pujança da economia turca e do seu vasto potencial. Tenho por isso a esperança que os empresários turcos e portugueses, aqui reunidos, possam encontrar áreas de cooperação, úteis sinergias, zonas de complementaridade de que ambos possam beneficiar e desta forma desenvolver as relações económicas entre os dois países, que permanecem muito aquém do poderiam ser.

Comigo vieram alguns dos mais destacados empresários portugueses, dos sectores financeiro, industrial e dos serviços. A sua presença aqui é, em si mesmo, um voto de confiança no futuro das nossas relações económicas e uma garantia de resultados para esta missão. Sei que, em diversos domínios — penso por exemplo no turismo, nos téxteis, ou no calçado — a Turquia e Portugal são competidores directos. Mas essa competição amistosa não constitui impedimento, e pode até incentivar, pelo cruzamento de experiências, a formação de parcerias entre empresas dos dois países, viradas quer para os respectivos mercados, quer para países terceiros, com os quais a Turquia ou Portugal tenham um relacionamento especial. Essa será também uma boa maneira de nos aproximarmos e de fazermos valer, para benefício mútuo, as características individuais, ao mesmo tempo próximas e contrastantes, dos nossos dois países.

Não tenciono todavia utilizar esta oportunidade para fazer a apologia da cooperação económica entre a Turquia e Portugal. Outros certamente já o terão feito neste seminário. Quero, isso sim, falar-vos da União Europeia, do momento que atravessa, das suas ambições, do seu relacionamento com o mundo e com a Turquia em particular; União Europeia a que Portugal pertence desde 1986 e à qual a Turquia, em 1987, apresentou a sua candidatura, em boa hora aceite pelo Conselho Europeu de Helsínquia; União Europeia que será, estou certo, um traço de união sem paralelo entre os nossos dois países na história do seu relacionamento bilateral.

A Turquia e Portugal têm tido relações amistosas mas não particularmente densas. À medida que se for desenvolvendo o processo de candidatura da Turquia à União Europeia — que Portugal firmemente apoia — seremos chamados a aproximar-nos de forma muita mais intensa.

É nessa perspectiva que vos quero hoje falar. Faço-o por estar convicto de que, uma vez aceite a sua candidatura, definida que está uma estratégia de pré-adesão e fixadas as condições para o início das negociações de adesão — a satisfação integral dos critérios políticos que todo o Estado membro deve preencher — encontram-se reunidas boas condições para essa candidatura singrar e ser bem sucedida. Não quero menosprezar os obstáculos que falta ainda superar, alguns deles reconhecidamente dificeis, para esse objectivo se concretizar.

Todavia, sendo essa a vontade expressa e indomitável de sucessivos governos turcos, dos mais variados quadrantes políticos, e da nação que representam, estou convicto que todas as dificuldades acabarão por ser vencidas e ultrapassadas.

Ora, construir a União Europeia que idealizamos, como uma entidade na qual os nossos povos se possam rever, exige que entre os seus membros, presentes e futuros, se forjem laços de solidariedade, baseados em relações de confiança e cumplicidade e num intercâmbio cada vez mais dinamico de pessoas, experiências e conhecimentos. Como empresários, vós tendes uma responsabilidade especial nesse processo, pois estais na primeira linha desses contactos e desses intercâmbios.
A União Europeia constituiu-se, em primeiro lugar, como um espaço económico e é ainda nessa dimensão que o seu peso se faz sentir de forma mais directa e palpável. A União Aduaneira, em seguida o mercado único, com as quatro liberdades — a livre circulação de pessoas, bens, serviços e capitais — e agora, por fim, a moeda única, o euro, fizeram da União Europeia, no plano económico, não só uma realidade concreta no dia a dia dos seus cidadãos, como também uma potência mundial que nenhum país terceiro pode ignorar.

Mas, embora tenha sido essa a forma de dar progressivamente conteúdo ao projecto extraordinário de unidade europeia, o seu objectivo último sempre foi essencialmente de natureza política.

Tratava-se de assegurar de forma duradoura a paz, num continente devastado pela guerra, criando entre os países europeus um sistema de interesses, disciplinas e sentimentos comuns, uma verdadeira comunidade na qual os povos, sem abdicarem das suas raízes e da sua individualidade, se pudessem sentir incluídos e da qual pudessem ser sujeitos activos. Essa comunidade — cuja diversidade cultural faz também a sua riqueza — assentava, por sua vez, num conjunto de valores partilhados e indeclináveis: a adesão a sistemas políticos democráticos, ao Estado de direito e ao respeito pelos direitos humanos.

O ideário europeu, tido inicialmente por visionário, conheceu, afinal, um sucesso prático e ideológico extraordinário: em primeiro lugar por ter logrado atingir em pleno o objectivo de reconstruir relações de confiança e amizade entre os países europeus e de garantir a sua prosperidade; em segundo lugar por ter suscitado a adesão crescente dos cidadãos, e em particular dos jovens; em terceiro lugar por exercer sobre países terceiros um formidável poder de atracção que levou, primeiro, a sucessivas vagas de democratização e, como corolário natural desse processo, à integração dessas novas democracias no grande espaço comunitário.

Esses alargamentos das Comunidades Europeias, agora União Europeia, por sua vez, têm sido acompanhados pela expansão da esfera de acção e intervenção da União e, como era natural e inevitável, pelo aumento da complexidade dos mecanismos pelos quais se rege, tanto no plano interno como externo.

O próximo alargamento — o maior e mais complexo desde o Tratado de Roma — colocou a União Europeia perante uma tripla exigência, a saber: adaptar o funcionamento interno da União à necessidade de trabalhar não com 15 mas com 25 países; aprofundar as políticas da União, em particular no domínio da acção externa; redigir as normas por que se rege de forma a torná-las mais facilmente inteligiveis para os cidadãos.

O projecto de Constituição para a Europa adoptado pela Convenção visa dar resposta a estas exigências. Este projecto introduz inovações importantes na estrutura da União, algumas das quais representam avanços significativos no processo de integração europeia, aceites de forma consensual. Outras, porque tocam em matérias que afectam a repartição de poderes entre os Estados e entre estes e as instituições da União, como o regime das presidências, a composição da Comissão ou processo para a formação de maiorias qualificadas, suscitam ainda alguma controvérsia. Estes são pontos que, nem sempre tendo para o público uma visibilidade imediata, revestem no entanto compreensível sensibilidade para os Estados.

O tratado constitucional irá fixar, espera-se que por muitos anos, a arquitectura institucional da União. Estou consciente do melindre de que se pode revestir a negociação, no seio da próxima Conferência Intergovernamental, de alguns matérias que encontraram formulações provisórias no texto aprovado pela Convenção. Todavia, atendendo à importância do que está em jogo, não creio que os Estados membros possam ou devam abdicar de ter a última palavra, até porque é deles que emana o poder constituinte, e serão eles que terão de ratificar o texto definitivo que for alcançado, devendo em muitos casos submetê-lo ao referendo dos seus cidadãos.

Não se trata de pôr em causa todo o trabalho feito, mas sim de encontrar formas de preservar equilíbrios fundamentais para que a União possa continuar a ser uma entidade na qual o princípio da igualdade entre os Estados tenha efectiva expressão. Estou em crer que será possível levar a cabo esse exercício sem deitar por terra o trabalho meritório efectuado pela Convenção em muitos domínios.


Minhas Senhoras e meus Senhores

Desde a queda do muro de Berlim, registaram-se progressos extraordinários no processo de construção europeia. Cito apenas, a título de exemplo, os dois alargamentos da União, a criação do Euro, o aprofundamento da cooperação em matéria de justiça e assuntos internos e, apesar das suas insuficiências, os progressos registados na afirmação internacional da União, não apenas como força económica, mas também política e diplomática.

O alargamento não só da composição da União como da sua esfera de acção constitui em grande parte uma resposta à profunda alteração do sistema internacional que resultou do colapso da União Soviética. Com efeito, se é universalmente reconhecido que a dissolução do mundo bipolar catapultou os Estados Unidos da América para uma posição preponderante a nível mundial, não é menos verdade que tal circunstância também alterou profundamente as condições de afirmação da União Europeia na cena internacional. Encurralada, durante a Guerra Fria, entre as duas superpotências, ela adquiriu, desde então, uma muito maior capacidade própria de acção estratégica.

É natural, por isso, que os temas de política externa, segurança e defesa assumam, nos debates em curso sobre o futuro da Europa, uma importância cada vez maior. O campo de afirmação que se abriu para a União Europeia com o fim da divisão da Europa, a sua crescente dimensão geográfica e peso económico, e a consolidação de uma cultura política comum entre os seus Estados Membros necessitam de encontrar expressão numa política externa e de segurança própria, que permita à União defender os seus interesses e fazer valer os seus pontos de vista.

A política externa e de segurança comum tem certamente ficado aquém das ambições da União. Não pretendo com esta afirmação negar ou menosprezar os progressos já realizados. Actualmente, a União Europeia é um interlocutor incontornável em práticamente todas as questões importantes na vida internacional e, na Europa, tem vindo a assumir responsabilidades crescentes na área da segurança, designadamente na Macedónia e na Bósnia Herzegovina. Mas é igualmente verdade que, em questões de grande relevo — foi notóriamente o caso em todo o debate acerca da questão do Iraque — nem sempre tem sido possível conciliar os pontos de vista dos Estados-membros, em especial os de maior dimensão e, mesmo quando tal é possível, nem sempre a União se tem mostrado capaz de actuar com a objectividade, unidade e celeridade necessárias. É também sabido que, no domínio das capacidades militares de intervenção, os países da União Europeia padecem de algumas fragilidades.

Para colmatar estas lacunas, o projecto de tratado introduz uma série de inovações, com dois objectivos chave: em primeiro lugar, aumentar a capacidade da União de se exprimir de forma unida e coerente em todos os grandes temas de política internacional; em segundo lugar, lançar as bases para que ela possa ter um papel cada vez mais activo e relevante na problemática da segurança e defesa. Para atingir o primeiro objectivo, é proposta a criação do cargo de Ministro dos Negócios Estrangeiros, dotado com poderes significativos. Para alcançar o segundo, está prevista, designadamente, a criação de uma Agência europeia do armamento, da investigação e das capacidades militares, encarregada de tarefas de planeamento e harmonização das necessidades militares europeias.

O reforço da Política Externa e de Segurança Comum corresponde a uma necessidade e visa satisfazer uma ambição: necessidade de criar mecanismos que permitam à União defender os seus interesses num mundo globalizado e cada vez mais competitivo; ambição de desempenhar um papel de primeiro plano em todas as dimensões da política internacional e não apenas na económica.

A União Europeia tem uma visão da sociedade internacional essencialmente cooperativa e multilateral, que, aliás, espelha a sua própria maneira de funcionar internamente. Todos estamos naturalmente conscientes que a realidade nem sempre corresponde a esta visão.

Exemplos como a desintegração da Jugoslávia, a proliferação de guerras civis em África, o conflito entre Israel e os palestinianos, a questão do Iraque, sem esquecer, naturalmente, o terrível flagelo do terrorismo internacional, recordam-nos constantemente esse facto.

Perante desafios intoleráveis à ordem internacional, a União Europeia e os seus Estados membros já demonstraram, por mais de uma vez, que estão dispostos a recorrer à força. Todavia consideram que ela deve ser sempre encarada como um último recurso, que deve ser usado com prudência, de forma proporcional e em conformidade com o direito internacional.

Essa predisposição natural da União Europeia para as soluções cooperativas e multilaterais leva-a também a encarar os Estados Unidos da América como o seu parceiro natural. Com efeito, os Estados membros da União Europeia são, na sua maioria, aliados dos Estados Unidos na Aliança Atlântica. As economias europeia e norte-americana estão cada vez mais integradas. Acima de tudo, as sociedades dos dois lados do Atlântico assentam num conjunto de valores partilhados, que resultam de uma herança histórica comum.

A suspeita, alimentada por alguns, de que a União Europeia se quer erigir como rival dos Estados Unidos não tem por isso fundamento.

Pelo contrário, a aliança entre os Estados Unidos e a Europa é a pedra base para a segurança e a prosperidade de ambos e uma condição indispensável de ordem na sociedade internacional.

Nesta parceria, houve todavia um termo fundamental que se alterou nos últimos anos. Cada vez menos pode ser concebida, como sucedia durante a Guerra Fria, como uma relação entre um parceiro dominante e um conjunto de parceiros mais ou menos subordinados. Cada vez mais, tem de ser vista como uma parceria entre iguais, com tudo o que isso significa, num plano de respeito, complementaridade e confiança mutúos.

Este desejável quadro de relacionamento impõe um espírito de aberta e paciente concertação, visando sistemáticamente evitar desentendimentos que só podem prejudicar objectivos que são, afinal de contas, largamente partilhados. Confio, no entanto — e vão nesse sentido os sinais mais recentes — que o tempo e a experiência acabarão por sanar definitivamente alguma crispação que se instalou no relacionamento transatlântico devido à questão do Iraque. A situação naquele país mostra, afinal de contas, que soluções unilaterais para problemas altamente complexos comportam custos e riscos muito elevados que, por vezes, nem mesmo os mais poderosos podem suportar sózinhos. Considero, por isso que a União Europeia e os Estados Unidos têm toda a vantagem em se entenderem. Estou convencido que esse interesse mútuo fundamental acabará sempre por prevalecer.


Minhas Senhoras e meus Senhores

Situada num ponto charneira entre a Europa e o Médio Oriente, numa região marcada pela instabilidade, a Turquia tem, e continuará a ter, um papel de grande importância em toda a problemática da segurança europeia.

A parceria com a República da Turquia, formalizada com adesão do vosso país à Aliança Atlântica, em 1952, fundou-se, num primeiro momento, essencialmente em interesses comuns, mas assenta cada vez mais em valores partilhados.

O reconhecimento da vocação europeia da Turquia por parte da União Europeia, consubstanciado pela aceitação da sua candidatura de adesão, representa, para o moderno Estado turco, uma prova evidente do sucesso da opção inequívoca pela via da modernização e da democratização, iniciada sob a égide de Ataturk.

Mas esta decisão reveste-se também de grande importância para a União Europeia. Com efeito, na aceitação da candidatura turca está implícita uma visão da União Europeia como construção política e jurídica aberta e regida por valores abstractos e não como o produto histórico de uma determinada tradição cultural e religiosa com fronteiras geográficas bem definidas.

O sucesso da candidatura da Turquia significará assim uma reafirmação eloquente da natureza fundamentalmente laica dos sistemas políticos pelos quais os países europeus e a própria União são governados bem como dos valores supremos em que assentam — o respeito pelos direitos humanos, pelo Estado de direito e pela democracia. — que consideramos de aplicação universal.

Por isso quero concluir esta intervenção, que já vai longa, exprimindo o desejo e a esperança de que o vosso sucesso seja um estímulo para outros países, aos quais a Turquia está ligada por laços de história, também eles optarem pela via da democracia, da tolerância, da abertura da modernidade e do progresso.