Discurso de SEXA PR por ocasião da Cerimónia de Cumprimentos de ano novo ao Corpo Diplomático acreditado em Lisboa


12 de Janeiro de 2004


Senhor Núncio Apostólico,
Senhores Embaixadores e Chefes de Missão,

Agradeço-lhe, Excelência Reverendíssima, os votos de Ano Novo que me endereçou em nome do Corpo Diplomático acreditado em Lisboa. São palavras que muito me sensibilizam e que aproveito para retribuir, pedindo-vos, Excelências, para transmitirem aos vossos Chefes de Estado e aos vossos Governos os meus sinceros votos de paz, prosperidade e bem estar neste novo ano que agora iniciámos.


Senhores Embaixadores,

No plano internacional, o ano findo, 2003, foi, sem dúvida, muito rico em acontecimentos. Infelizmente, é também certo que a sua inegável intensidade, e até dramatismo nalguns momentos, não se traduziu num balanço muito positivo.

A questão da segurança internacional em torno das novas ameaças representadas pelo terrorismo internacional, da proliferação de armas de destruição maciça e da questão iraquiana marcaram claramente a agenda internacional de 2003.

Lamentavelmente os ataques terroristas não diminuíram durante o ano findo. Antes pelo contrário, registou-se um aumento em relação a 2002, tendo as redes internacionais de terrorismo revelado uma preocupante capacidade de actuação nas mais diversas áreas do globo, demonstrando que os Estados – todos os Estados – se encontram, de alguma forma, desprotegidos e vulneráveis.

Esta é uma luta que será – não nos iludamos – longa e difícil. Este é um combate de todos e que a todos deve envolver. O terrorismo internacional é uma actividade criminosa, com motivações políticas complexas, que visa semear o medo, a discórdia e pôr em causa o funcionamento das instituições democráticas, a paz e a estabilidade internacionais.

O objectivo a atingir parece-me claro – diminuir substancialmente quer a ameaça, quer os danos provocados por eventuais ataques. Para tal, teremos de ser firmes no combate ao terrorismo e pacientes quanto aos resultados desse combate.

A proliferação descontrolada de armas de destruição continua igualmente a ser fonte de enorme preocupação e uma séria ameaça à nossa segurança colectiva.

Trata-se de desafios globais que exigem uma acção concertada e multidimensional e ao qual apenas uma comunidade internacional mais coesa e mais solidária poderá responder. As receitas simplistas são uma ilusão. A sua unidimensionalidade tende a criar tantos problemas como aqueles que pretende resolver. O reforço da cooperação internacional, a confiança no multilateralismo e o respeito pelo direito internacional são elementos-chave e incontornáveis não só nestes combates, como para a existência duma verdadeira ordem internacional.

Neste contexto, a questão do Iraque, apesar de recentemente ter conhecido alguns desenvolvimentos positivos, continua a ser motivo de profunda preocupação. Mas mais do que discutir o passado, importa agora olhar para o futuro.

Julgo que pela importância do que está em jogo naquele país, é necessário abordar a situação presente com um espírito construtivo. A estabilização do Iraque, com o contributo das Nações Unidas, e a devolução, tão rápida quanto possível, do poder aos iraquianos é do interesse vital de todos nós.

Ainda neste contexto, os recente desenvolvimentos diplomáticos no Irão e na Líbia, foram sem dúvida elementos positivos no ano que passou, tanto mais que se privilegiaram claramente as "ferramentas político-diplomáticas".

Também na Coreia do Norte se descortinam alguns sinais – ainda tímidos – no bom sentido, sendo necessário persistir até que se criem as condições que possibilitem a desejável resolução, pela via negocial, dos problemas em causa.


Senhores Embaixadores,

O segundo tema que quero abordar é a Europa. 2003 foi um ano repleto de acontecimentos no plano europeu.

Arriscaria afirmar que poucas vezes na história da construção europeia tanto aconteceu em tão pouco tempo. Todavia, a quantidade não é sinónimo de qualidade e nem todos estes acontecimentos foram, a meu ver, de sinal positivo. Na realidade, estamos perante um ano caracterizado por sinais contraditórios e por alguma indefinição no que respeita ao futuro do projecto europeu.


Senão vejamos.

As expectativas suscitadas pela Convenção acabaram por não ter tradução na Conferência Intergovernamental, culminando no desacordo do Conselho Europeu de Dezembro, em Bruxelas. Aos novos e importantes impulsos políticos na área da segurança e da defesa e ao progresso que a realização das primeiras missões de paz da UE representa, podem contrapor-se as dificuldades e o quase colapso por que passou, nalguns momentos, a Política Externa e de Segurança Comum ao longo do ano.

À assinatura do Tratado de Adesão de dez novos membros, momento memorável e que reflecte o sucesso e a boa gestão do processo de alargamento, sucederam as tensões - quer no seio dos 15, quer mesmo a 25 - no que respeita à reforma dos Tratados e às matérias da PESC. A solidez e afirmação internacional do Euro contrastam com as dúvidas e interrogações suscitadas pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento.

Por último, por oposição a uma maior abertura da Convenção – concorde-se ou não com o método – assistiu-se a uma maior dinâmica dos modelos de decisão informais e de participação nacional restrita, a meu ver indesejáveis.

Há poucos dias assinei o Decreto de Ratificação do Tratado de Adesão dos Países do Alargamento da União Europeia. Esse acto, ao contrário do que é habitual, foi público e solene, tendo os Embaixadores dos países aderentes residentes em Lisboa participado na Cerimónia. Quis com esse gesto significar o apoio inequívoco de Portugal ao alargamento e, ao mesmo tempo, ao processo de integração e construção europeia.

Pretendi também sublinhar a minha confiança no projecto europeu, apesar do recente falhanço negocial do Conselho Europeu em Bruxelas, que não devemos, na minha opinião, dramatizar. Se é certo que não se conseguiu chegar a um acordo sobre alguns pontos do texto do Tratado, também é verdade que este constitui uma útil base negocial que permitirá, assim o espero, concluir em devido tempo o processo de reforma em curso.

Devemos prosseguir um debate sério e reflectido sobre a forma como nos vamos organizar e funcionar numa Europa a 25. Com efeito, a ideia europeia é uma aposta racional. Não é nem deve ser objecto de leituras ou visões unívocas. E os passos em frente são sempre os possíveis em cada momento – uma espécie de síntese entre a necessária ambição vanguardista e aquilo que são os limites do sentimento comum quanto aos equilíbrios vitais do processo europeu.

Evitemos, por isso, o agudizar dos conflitos, o extremar das posições, o acentuar das clivagens, bem como a busca de "bodes expiatórios", atitude que só favorece a diluição da solidariedade e, consequentemente, do quadro integrador existente. A Europa sempre se construiu na base da contraposição de interesses , por vezes duro e frontal, mas sempre também dentro dos limites de um são relacionamento.

O Conselho Europeu de Bruxelas foi ontem, é já o passado. Agora o importante é olhar para o futuro, restabelecer a confiança mútua e fazer de 2004 um ano de unidade e de reforço do projecto europeu.

A Europa merece e precisa duma visão política ambiciosa que saiba conciliar, em cada momento, um forte sentido de coesão económico-social com os avanços da construção europeia no plano político.


Senhores Embaixadores,

O estado das relações transatlânticas foi também um dos pontos mais em foco no decurso do passado ano. Creio que a vivacidade do debate a propósito do Iraque levou alguns a exagerar no diagnóstico da situação e do seu impacto, a médio-longo prazo, no relacionamento transatlântico. Não é nem a primeira vez, nem será última que se verificam divergências agudas entre os dois lados dos Atlântico.

Parece, aliás, normal que isso possa acontecer entre países democráticos e aliados.

Penso que por vezes a paixão se sobrepôs à razão, gerando uma dinâmica de rejeição de qualquer alternativa ou cambiante em termos de gestão da crise do Iraque que, para além de simplista e redutora, foi porventura desnecessária e contraproducente. Parece-me ainda que a lógica de incompatibilidade entre atlantismo e europeísmo que se instalou na altura, sendo os Estados europeus quase que instados a optar por um dos dois, não tem sentido e representa a negação da História recente da comunidade euroatlântica.

Saúdo, por isso, o caminho entretanto percorrido na segunda metade do ano, que vem permitindo, em larga medida, a reconstrução da confiança mútua.

Uma vasta comunhão de valores, uma larga convergência de interesses e os elevados níveis de interdependência económica fazem desta evolução – para além de desejável – uma quase inevitabilidade.

Contudo, nesta temática como noutras a inércia não é boa conselheira. É necessário revelar capacidade de renovação e de actualização das relações transatlânticas. O mundo mudou e as relações transatlânticas devem mostrar-se capazes de se adaptar à mudança. E não me estou a referir a uma simples reforma - mais uma - da NATO. É preciso ir mais longe e mais fundo. Alargando as áreas de cooperação e entendimento, conferindo-lhe maior paridade e equilíbrio, de modo a reflectir a crescente importância da UE no plano internacional, e regenerando agendas e instituições.


Senhores Embaixadores,

Queria agora abordar uma questão, muitas vezes referenciada lado a lado com o desafio do terrorismo, que se arrasta há décadas sem solução política e que a todos nos preocupa – o conflito do Médio Oriente Há pouco mais de três anos, a paz entre israelitas e palestinianos esteve ao alcance da mão. Hoje, mau grado sucessivas tréguas e acordos de cessar-fogo, uma e outra parte parecem incapazes de pôr fim a uma espiral de violência que, para além de alimentar ódios e desconfianças, inibe o reatamento firme e consequente do processo negocial e afecta a estabilidade de toda a região.

Apelo e formulo votos para que as Partes envolvidas dêem passos claros no sentido de travar esta dinâmica. Não é mais aceitável que um problema, cuja solução pode e deve ser negociada, continue num impasse político enquanto se vão criando factos no terreno que tornam cada vez mais difícil tal solução. O itinerário para a paz não pode ser enterrado, deve antes ser posto em prática. O objectivo estratégico que orientou a sua aprovação - uma paz negociada na base do princípio da "terra pela paz" - permanece válido e sem alternativa.

A comunidade internacional, em particular os países que participam no "Quarteto", não pode abrandar os seus esforços para dar ao processo de paz o impulso e a orientação estratégica que, neste momento, manifestamente lhe parecem faltar.


Senhores Embaixadores,

Gostaria agora de fazer uma referência ao continente africano, que é de todos o mais martirizado por guerras, por uma pobreza que alastra, pela fome e pelas epidemias endémicas de efeitos devastadores.

Nenhuma outra área do globo é porventura tão mal tratada pela globalização como África. O nosso relacionamento com o continente africano, na sua imensa diversidade, deve assentar na solidariedade, mas também na responsabilização.

Não podemos alhear-nos dos problemas e das tragédias alheias, mas também não estamos em condições de as resolver. África tem o direito de esperar mais da comunidade internacional do que palavras sucessivamente repetidas de diagnóstico dos males ou promessas reiteradas de ajuda, que muitas vezes tardam em se concretizar ou em produzir os efeitos desejados. Mas também ninguém se poderá substituir aos africanos, enquanto actores primariamente responsáveis pelo processo de desenvolvimento dos seus próprios países.

Os diagnósticos estão feitos. Os problemas são reais e carecem de medidas concretas. A sua dimensão exige uma resposta significativa e uma acção concertada, concretizando uma parceria de verdadeira solidariedade assente nos valores da dignidade humana, por todos nós partilhados.

Tendo presente a dimensão da tragédia e o seu carácter largamente consensual, parece-me que o controlo das epidemias de doenças infecto-contagiosas, em particular da SIDA, é uma área em que urge concentrar esforços.

Gostaria que a CPLP contribuísse também para esse fim e espero que a Cimeira deste ano dê um impulso nesse sentido.

Permitam-me que aqui assinale com satisfação o facto de 2003 ter sido o primeiro ano sem guerra em todos os países africanos de língua oficial portuguesa. Constitui também para mim um motivo de satisfação que tanto a Guiné-Bissau como S. Tomé e Príncipe tenham conseguido ultrapassar em paz os períodos conturbados que atravessaram durante o ano que agora terminou.

Estabilidade e normalidade democrática são condições essenciais ao desenvolvimento, progresso e bem-estar das populações. A comunidade internacional não deve, nem pode abandonar estes países no momento em que, enfrentando tantas e tão grandes contrariedades, manifestam uma invulgar determinação em prosseguir o caminho da democracia, da paz e do desenvolvimento.

Ainda no âmbito da lusofonia, que me seja permitido formular votos de paz, estabilidade e progresso para o Povo de Timor-Leste nestes primeiros – e sempre difíceis - passos após a independência.


Senhores Embaixadores,

Uma palavra também sobre a América-Latina, que continua a lutar, com razoável sucesso, contra a crise económica que assolou o mundo e com incidências particularmente duras nalguns países daquela região.

Tive a oportunidade de participar em mais uma Cimeira Ibero-Americana e estou certo que a reforma aprovada na Bolívia melhorará os mecanismos de concertação política e de cooperação, tornando este processo mais eficaz e mais visível, quer internacionalmente, quer para as opiniões públicas dos países participantes.

Peço também aos Embaixadores dos países que tive o prazer de visitar no ano passado que transmitam os meus sinceros agradecimentos a Suas Excelências os Presidentes da Argélia, da Eslováquia, da Estónia, da Letónia, da Lituânia, da Turquia e do Uruguai pela forma tão cordial como me acolheram. Agradecimentos que estenderia aos Embaixadores da Alemanha, do Brasil, da Guiné-Bissau, da Roménia, da Sérvia-Montenegro e da Suíça, cujos Chefes de Estado nos honraram com as suas visitas, das quais guardo gratas recordações.

Queria terminar com uma nota de confiança e de esperança quanto ao futuro e quanto a um Mundo melhor, desejando-vos um Ano de 2004 de paz e progresso para os vossos Povos e de bem-estar para os Chefes de Estado que aqui representais. Desejo a todos um muito bom ano.

Muito obrigado.