Sessão Comemorativa dos 30 Anos da Crise Académica

Coimbra
01 de Abril de 1999


Esta sessão memorável e histórica e de grande densidade emotiva culmina uma Jornada dedicada especialmente a Coimbra, no âmbito das comemorações dos 25 anos do 25 de Abril de 1974.

Sobre o sentido deste programa comemorativo já me pronunciei noutras oportunidades. Há datas que, corporizando grandes referências cívicas, devem constituir ensejos não só para lembrar um acontecimento marcante ou prestar homenagem a um gesto decisivo, mas também para efectuar uma ponderação histórica de percurso.

Trata-se de ponderação que tem no horizonte problemas e escolhas que se nos colocam hoje. Acontece que é precisamente com o futuro - a sua avaliação - que à política se pede que se ocupe e preocupe. Não é afinal o futuro que nos compete sondar e inspirar, ajudar a criar e a garantir ?

Entendo que este aniversário do 25 de Abril constitui um momento de um significado que merece ser valorizado, o momento em que uma geração transmite a outra um testemunho, entrega de forma simbólica uma herança - e espera que ela seja como tal recebida e prosseguida. Hoje, é precisamente uma dessas passagens de testemunho que aqui acontece.

Por esse património de um Portugal democrático combateram as gerações anteriores, em nome de um sistema de valores que funda na liberdade a dignidade do homem e a convivência das sociedades.

Compreende-se que me referira em primeiro lugar à crise académica de Coimbra, que hoje evocamos, e que se inscreve no ciclo da ruptura que culminou, em 25 de Abril de 1974, com o fim da Ditadura. Identificarei em seguida os traços mais marcantes do regime que saiu dessa ruptura, a benefício do debate em curso, e ocupar-me-ei, por fim, das questões estudantis e universitárias, tal como surgem três décadas volvidas sobre 1969.

A Crise de 1969 e a Democracia

Os acontecimentos registados em Coimbra há 30 anos tiveram repercussões profundas na luta pela Democracia em Portugal, e projectaram-se historicamente no 25 de Abril de 1974.

Há circunstâncias que singularizam a crise de Coimbra no contexto das crises académicas do Regime Autoritário.

Em primeiro lugar, foi uma das mais duras e prolongadas lutas estudantis de sempre, pois se materializou numa greve a exames, com a consequente perda de ano para um número muito considerável de alunos, e estendeu-se durante vários meses.

Em segundo lugar, ultrapassou claramente o âmbito exclusivo do protesto estudantil, para envolver professores, a Universidade no seu conjunto, e suscitar a adesão de uma cidade.

Em terceiro lugar, a natureza eminentemente política que o protesto tomou, com o tipo de instrumentos utilizados para o desmobilizar e reprimir, designadamente a incorporação militar compulsiva de centenas de participantes no movimento grevista, pôs em causa, não apenas um sistema escolar, mas um regime político autoritário, com o seu sistema de repressão.

Não nos esqueçamos, entretanto, que a crise de Coimbra estalou poucos meses após a substituição de Salazar por Marcello Caetano à frente do Estado Novo, funcionando como teste aos propósitos liberalizadores do regime.

Convidei para me acompanharem neste dia os dirigentes estudantis de 1969, a quem quero prestar homenagem, aqui na Universidade onde há 30 anos foram exemplo de inconformismo, de coragem, de determinação. Quero reafirmar que o vosso sacrifício, juntando-se ao de outros, conduziu ao 25 de Abril.

Não os podendo referir a todos, nomearei a direcção da Associação Académica de 1969: Alberto Martins, Osvaldo de Castro, Celso Cruzeiro, Fernanda da Bernarda, José Gil, Matos Pereira, José Salvador.

Em nome da República, agradeço-vos - a vós e a todos - o contributo da Liberdade.

Não devo esquecer, nesta oportunidade, todos os que compunham a inesquecível equipa de futebol da Académica que disputou em 1969 o final da Taça de Portugal. Vejo alguns nesta sala. Permitam-me uma nota pessoal: eu também estive no Estádio e ainda hoje recordo a emoção com que assitimos no intervalo ao súbito erguer dos cartazes que contestavam a actuação das autoridades.

Mas quero também citar professores. Não gostaria de esquecer ninguém, e por isso presto homenagem aos já falecidos, Paulo Quitela e Teixeira Ribeiro, que foram secundados, na independência com que arriscaram as suas próprias carreiras, por outros docentes, mais jovens, alguns dos quais tenho a honra de ver nesta sala.

Em vós saúdo o gesto que resgatou uma Universidade, reconduzindo-a à tradição essencial que dela fazia um espaço de liberdade crítica e de autonomia intelectual.

Este momento é adequado para estabelecer o nexo entre os movimentos estudantis e o 25 de Abril.

Não foi só, aliás, em Portugal que os movimentos estudantis reclamaram uma liberdade insuportável para o poder estabelecido. Em diversos contextos, a denúncia viva, a acção generosa em nome de grandes ideais - como a independência dos povos coloniais, a paz, a não discriminação racial, o respeito pela oposição, pela minoria, pela diferença - constituiu para gerações e gerações uma escola da vida cívica, e um incitamento à participação política.

Na movimentação se descobrem direitos, se inventam formas de acção, se aprende a tomar a palavra, a exercê-la, a solidarizar-se com colegas e companheiros, a partilhar decisões e ser responsável por elas.

Podemos afirmar, neste sentido, que os movimentos estudantis desenvolveram uma cultura da liberdade.

Em Portugal esse foi porventura o seu grande contributo para a Democracia que construímos com e depois do 25 de Abril.

A Democracia e o debate actual

E porque hoje quero celebrar aqui, na Universidade e em Coimbra, o 25 de Abril, devo ir um pouco mais além, na identificação do conteúdo dessa data de que comemoramos o quarto de século.

O 25 de Abril representa o fim do medo, dos múltiplos medos que tomavam conta da sociedade e das consciências individuais. Não me refiro apenas ao medo da perseguição com fundamento em convicções ideológicas e políticas, mas também ao medo gerado pela distância imposta por barreiras intelectuais e políticas e pelo isolamento.

Vencidos os medos, foi possível, em primeiro lugar, aplicarmo-nos colectivamente na refundação do Estado de Direito e, em segundo lugar, reorientarmos a vida colectiva para a partilha e a solidariedade num outro espaço, o espaço europeu, do qual nos tínhamos afastado.

O fecho do ciclo implicou naturalmente o fim da guerra, a descolonização, e o desenvolvimento de um novo conceito de relação entre Portugal e os outros países de língua portuguesa, baseada no respeito mútuo e na cooperação.

(Seja-me permitido, a este respeito, invocar o alto simbolismo de que se reveste o acto em que terei a honra de participar da atribuição do Doutoramento Honoris Causa ao Presidente da República de Moçambique, Joaquim Chissano, por esta mesma Universidade de Coimbra, no próximo dia 23 de Abril).

O Estado do Direito consolidou-se, nestes 25 anos decorridos depois de 1974, em torno da liberdade eleitoral e do pluralismo político, do reconhecimento dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e na divisão de poderes, na independência dos tribunais e na previsão de formas de participação directa dos cidadãos na vida política.

A integração europeia, que a democracia projectou e conduziu, foi, por seu turno, um factor de estabilização democrática. Contribuiu para a racionalização e o enquadramento das estratégias de modernização económica e social do país. Permitiu que Portugal definisse, de forma clara e consistente, uma nova posição internacional. Constituiu, por tudo isto, uma oportunidade para sublinhar os traços históricos da identidade nacional numa dimensão de abertura e de diálogo, onde se exprime a nossa vocação universalista.

Este duplo caminho - simplificadamente Estado de Direito e Europa - foi posto à prova e deu a Portugal e aos portugueses uma nova esperança e uma nova confiança. Foi um caminho que exigiu determinação e convicção nas políticas, e consenso nacional no seu traçado e aprofundamento.

Consenso não significa unanimismo. O consenso não dispensa o contributo deferenciado das posições críticas. Consenso implica acordo no objectivo estratégico, respeito pelas regras do apuramento da vontade, e conjugação de esforços na formação da opinião plural. Mais: o consenso não exclui a necessidade e a riqueza do debate, não só sobre as políticas, como sobre os valores em que assentam.

É esse consenso que importa preservar e em certa medida reafirmar no debate europeu que estamos a travar e que é fundamental que seja travado. É um debate crucial porque o momento põe à prova a capacidade europeia de levar mais longe a sua unidade e a sua identidade, e porque o apuramento do sentido da nossa vontade colectiva condiciona as escolhas políticas que temos pela frente.

A democracia é o único regime que pode garantir a paz. Por isso não podemos deixar passar ao lado o debate essencial que há a fazer sobre a nova Europa e as novas questões europeias, não podemos por isso perder a oportunidade de nos fixarmos naquilo que é verdadeiramente importante.

Não se encontra também esgotado o debate acerca da reforma do sistema político e do reforço da participação dos cidadãos. Também aqui, há inúmeras questões a discutir sem tabus nem limitações, mas também com coragem de estabelecer consensos. O Estado de Direito tem ser aperfeiçoado, para melhor garantir aos cidadãos igualdade de oportunidades e capacidade de iniciativa.

Questões estudantis e universitárias da actualidade

Uma palavra final, para me reportar de novo aos movimentos estudantis, e à situação universitária, hoje provavelmente também em fase de reavaliação de percurso.

Além duma feição eminentemente reivindicativa, quase "sindical", que vem do passado, e que certamente permanecerá ainda em aberto, os movimentos académicos têm pela frente desafios muito importantes.

Um dos traços caracterizadores dos movimentos estudantis do final da década de 60 foi o de terem questionado a própria escola, na sua função e na sua prática quotidiana.

Atrever-me-ia a considerar que também neste aspecto o legado dos movimentos estudantis precedentes não se deve dar por esgotado.

Precisamos tanto de inconformismo, como de generosidade cívica e de capacidade reivindicativa.

Mas para isso é necessário ganhar alguma distância, ou seja caminhar em sentido inverso da tendência para o envolvimento directo na gestão do sistema.

A intervenção académica é uma realidade incontornável na nossa sociedade. Importa que seja ela própria o mais participada possível, atenta aos fenómenos de indiferença ou alheamento, e apostada em lhes dar combate, removendo com imaginação e sentido do risco as dificuldades que lhe dão origem.

E importa também que ela tenha um sentido mais claro e determinado em torno do desenvolvimento de uma cultura da inovação e da aspiração da qualidade para o sistema educativo português.

Não me parece incompatível a capacidade crítica com a predisposição favorável à criatividade e à mudança. Pelo contrário! O sistema de ensino necessita tanto de inconformismo como de criação, a todos os níveis. Exige tanto a mobilização dos recursos para dizer não ao que está velho e inadequado, como de mobilização para inovar, inventar, exigir e erguer a qualidade.

Este desafio é aliás, hoje, para todos, estudantes e professores.
 
 
Minhas Senhoras e Meus Senhoras,
 
Trinta anos decorridos sobre a Crise de Coimbra, a Universidade Portuguesa está profundamente transformada. São inúmeras as mudanças que tiveram lugar num período de tempo tão curto.

Não será este o momento apropriado para debater exaustivamente as questões actuais da Universidade, mas não quero deixar de partilhar convosco três notas breves, aliás directamente relacionadas com princípios defendidos pelo movimento estudantil de 1969.

A primeira nota refere-se à defesa da "democratização do ensino" tema presente na sociedade portuguesa desde finais da década de 60. Os 40.000 estudantes daquela época são hoje quase 400.000, frequentando instituições públicas e privadas, politécnicas e universitárias, um pouco por todo o pais. Julgo ser justificado neste contexto repetir o que tenho dito sobre a matéria.

Ninguém tem dúvidas sobre a relevância social desta expansão, que abriu o ensino superior a novos públicos mas todos reconheceremos também que ela trouxe problemas e dificuldades que é preciso enfrentar com determinação.

Uma Universidade não surge do nada, não se estabelece através de uma mera conjugação de vontades pessoais, de interesses económicos e de apoios locais. A fundação de uma Universidade exige um tempo longo de preparação, de formação dos seus docentes, de consolidação de uma cultura científica e de um espírito académico; exige uma planificação atempada e a inserção numa rede nacional de escolas do ensino superior.

Os mecanismos de avaliação em curso e as respectivas conclusões aguardadas para data próximo permitirão certamente uma visão mais esclarecida e rigorosa desta questão. Com conhecimento de causa e informação detalhada a comunidade aceitará sem dificuldade medidas de fundo que ponham cobro a situações inaceitáveis e que permitam, ao mesmo tempo, valorizar as escolas, nomeadamente do sector privado, que realizam um trabalho sério e qualificado.

Os factos provam que o Estado não pode abdicar de um papel activo na organização da rede do ensino superior e na sua regular fiscalização. Até porque, em situação de crise, é sempre do Estado que se exige uma intervenção reparadora, a defesa dos anseios e das expectativas dos alunos e das suas famílias. Neste aspecto, é preciso que todos estejamos conscientes dos problemas que teremos de resolver, fruto em grande parte de um crescimento incoerente e desequilibrado.

A segunda nota chama a atenção para a defesa da autonomia da universidade.

A autonomia tinha, para os estudantes de 69, o sentido da liberdade: liberdade de espírito, liberdade de crítica, liberdade de associação. Mas, na época, acrescentou-se, quase em jeito de profecia: "só a instituições inovadoras a autonomia servirá como instrumento de inovação".

Hoje, possuímos todos, e em especial V. Ex.as, uma experiência de grande significado neste domínio. E podemos confirmar que a autonomia, por si só, não resolve todos os problemas, contribuindo mesmo, nalguns casos, para agravar erros e defeitos.

É tempo, pois, de juntar ao conceito de autonomia uma cultura de avaliação, que dote as instituições, os alunos, as comunidades científicas, o Estado e a sociedade em geral de instrumentos de aferição, de regulação e de conhecimento público sobre as Universidades.

A autonomia é um meio, não é um fim. Não deve servir para que as instituições fiquem reféns de interesses particulares, para que se fechem dentro de um corporativismo antiquado.

A autonomia que advogo é o contrário do isolamento das Universidades. É a criação de formas de ligação e de articulação com o exterior. É a prestação de contas, a divulgação pública de iniciativas e de projectos científicos.

Mais do que nunca, precisamos de um ensino superior de grande qualidade, actualizado e exigente, em ligação constante com a produção do saber e do conhecimento.

Precisamos de professores dedicados e competentes, de escolas que contribuam para a formação integral dos jovens, no plano científico, cultural e cívico.

A terceira nota que recupero nos documentos da chamada "crise académica" é a crítica a um "ensino ineficaz e ultrapassado", a defesa de uma Universidade Nova contra a Universidade Velha daquele tempo....

Criticava-se, então, a rigidez das estruturas universitárias. E é preciso reconhecer que a critica continua válida em muitos aspectos.

Desde logo, nos modelos de gestão e de funcionamento. Parece-me essencial imaginar soluções diferentes, que respondam às exigências do tempo presente.

Pela minha parte, gostaria de incentivar experiências criativas que contribuam para uma melhoria do ensino.

Mas a rigidez manifesta-se, igualmente, nas dificuldades de vária ordem para conceber e pôr em prática cursos com características diferentes, organizados de forma flexível e inovadora, por exemplo através da associação ao mundo da ciência, da arte e das empresas.

Já existem bons exemplos, mas reconheçamos que é necessária uma nova pedagogia do ensino universitário, que garanta elevados níveis de exigência, mas que assegure uma maior flexibilidade na frequência dos cursos, nos percursos de formação e nos modos de ensinar e de aprender.

Finalmente, gostaria uma vez mais de chamar a atenção para a importância de adaptar as estruturas universitárias ao acolhimento de novos públicos.

Para além dos alunos jovens, que seguem um processo de formação inicial, as instituições terão de se abrir a adultos que procuram uma segunda oportunidade educativa, a profissionais que buscam uma actualização dos seus conhecimentos, a pessoas que querem valorizar-se culturalmente, isto é, a uma série de grupos que não se enquadram no perfil tradicional do estudante.

Não devemos esquecer que o ensino superior é, por definição, um espaço de produção de saber e de conhecimento. É fundamental que os professores estejam actualizados do ponto de vista científico e que os jovens tenham acesso a laboratórios, bibliotecas e centros de investigação que lhes permitam adquirir uma verdadeira formação superior.

Não consigo conceber a vida estudantil sem uma referência constante aos valores da humanização e sem uma participação regular em actividades associativas, artísticas e culturais. O tempo de estudante é essencial para o nosso futuro como pessoas e como cidadãos. O ensino superior é um espaço de cultura, no sentido mais amplo do termo: cultura científica e tecnológica, cultura humanista, cultura artística e literária.

O futuro das Universidades depende, em larga medida, da capacidade de renovação que demonstrarem, da compreensão de que as suas finalidades só serão cumpridas se adoptarem novos meios e métodos de acção.
 
 
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
 
Quero terminar, voltando a 1969, cuja evocação nos trouxe aqui, à Coimbra onde então Manuel Alegre fazia votos que "mil flores floresçam onde só dores florescem". Floresceram, não tenho dúvida!

Quero concluir com palavras de grande respeito e agradecimento pelo que todos, sem excepção, fizeram em 1969.

Quero congratular-me por termos vivido estes anos entretanto decorridos, onde demos o nosso contributo à democracia e a Portugal. Quero congratular-me por este momento.
 
 
Obrigado, Coimbra!