Discurso do Presidente da República por ocasião do Dia Internacional da Mulher


08 de Março de 2004


Minhas Senhoras e meus Senhores

O Dia Internacional da Mulher, que hoje se comemora, tem, este ano, um sabor muito especial, uma vez que se festeja também o trigésimo aniversário do 25 de Abril.

As jovens gerações de hoje, que são já filhas da liberdade e da democracia, devem uma justa homenagem às mulheres e aos homens que lutaram contra a ditadura, que pugnaram pelo princípio do “salário igual para trabalho igual”, que se bateram pelo acesso das mulheres aos órgãos de decisão e que batalharam pela aplicação dos direitos enfim consagrados na Constituição e em outros textos legais, segundo o princípio “iguais nas leis, iguais na vida”.

O século XX, que foi marcado pelo feminismo enquanto movimento social, teve em Portugal um começo tardio. Mas hoje, trinta anos volvidos da Revolução dos Cravos, podemos regozijar-nos por termos conseguido ajustar o passo com a história. A igualdade jurídica entre homens e mulheres, que faz hoje parte do acervo da democracia portuguesa é, como, de resto, nos restantes países europeus, um dado adquirido e inquestionável.

Mas, interrogar-se-ão por ventura: “se assim é, por que razão continuar a assinalar o Dia Internacional da Mulher ?”

Esta é, de facto, uma questão, e mesmo uma crítica, que, com alguma frequência, vejo formulada, curiosamente até mais por vozes femininas do que masculinas.

Aos sobrolhos franzidos e olhares dubitativos, responderei com quatro exemplos, que nos devem fazer reflectir:

- Desemprego em Portugal (dados de 2003): afecta 7,3% de mulheres e 5,6% de homens, numa população activa em que 46,2% são mulheres e 57,7% são homens;

- Acesso a lugares de chefia e a cargos de responsabilidade: na Administração Pública Central, apesar de as mulheres constituírem mais de metade dos efectivos, a nível dirigente conta-se apenas com uma taxa de feminização de 14,5% (categorias de directores-gerais) e de cerca de 33% nas categorias de subdirectores-gerais e directores de serviço; já quando se somam os quadros superiores das empresas aos da administração pública, obtemos 32% de mulheres (dados de 2000);

- Divisão das tarefas na vida doméstica: segundo inquéritos recentes, em média, as mulheres trabalham mais duas horas por dia do que os homens no conjunto da actividade profissional e a vida familiar e dispõem, cada dia, de menos uma hora do que os homens para o lazer;

- Violência, assédio e maus tratos: cada mês, morrem cinco mulheres vítimas de violência doméstica; em 2003, foram relatados à Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) cerca de 14.000 crimes respeitantes a situações de violência no seio da família, em que 91,5% das vítimas são mulheres.

Com estes exemplos, entendo apenas chamar a atenção para a falácia que consistiria em concluir que se a igualdade jurídica está conseguida, então o feminismo é um anacronismo e o Dia da Mulher, uma efeméride obsoleta e sem sentido.

Enquanto as diferenças simplesmente derivadas do género forem patentes nas estatísticas, revelando desigualdades baseadas na mera diferenciação dos sexos, há obrigação de considerar a “Mulher” como um tema político prioritário, um assunto de interesse comum e geral, uma causa de sociedade, que deve ser objecto de políticas apropriadas.

De facto, atenta a situação prevalecente em Portugal nem a democracia paritária é ainda uma realidade plena; nem a igualdade de direitos e oportunidades configura adequadamente o quotidiano das portuguesas e dos portugueses; nem a emancipação das mulheres se afirma apropriadamente “intra-muros”, passada a porta de casa; nem a igualdade sexual transformou inteiramente o sistema tradicional de dominação masculina.

Entendo, pois, que o Dia da Mulher deve continuar a ser celebrado, justamente enquanto exercício de consciencialização colectiva, por forma, por um lado, a lembrarmo-nos do caminho percorrido e, por outro, a assinalar os entraves e obstáculos que ainda temos de ultrapassar. Naturalmente a minha preocupação e interesse por todas estas questões não se esgotam na celebração do Dia Internacional da Mulher, mas encontram nesta data uma ocasião privilegiada de lhes dar todo o merecido e justo destaque, porque nunca nada do que já foi adquirido está definitivamente garantido.

Permitam-me, pois, que a este respeito manifeste brevemente três preocupações: a primeira diz respeito à igualdade de oportunidades, quer no domínio da formação, quer do trabalho, quer da política; a segunda incide sobre a chamada conciliação entre a vida profissional e familiar; e a terceira concerne as situações de violência a que a mulher continua exposta, que não têm melhorado com o tempo.


Igualdade de oportunidades

Neste campo, a minha preocupação prende-se com o facto de ser necessário fazer mais e melhor, consolidar o acervo, desenvolvê-lo e aperfeiçoá-lo, mas também combater os riscos de retrocesso. Ou seja, registaram-se grandes progressos no acesso das mulheres à educação e à formação; na afirmação das mulheres no domínio profissional e do emprego; na sua participação em órgãos de decisão, quer se trate de cargos de responsabilidade (por exemplo, na esfera económica), quer seja no exercício de cargos públicos, em geral e políticos, em particular. Mas, por um lado, nada do que já foi adquirido está, na verdade, garantido; por outro, a situação não é satisfatória do ponto de vista da paridade, a partilha de poder não é ainda efectiva nem se concretiza numa real parceria de homens e mulheres, englobando todos os campos, do religioso ao político, ao social, ao militar, ao empresarial e ao familiar. Por último, há um risco, improvável, mas não de excluir, que os novos desafios colocados pelo mundo contemporâneo comprometam a evolução positiva registada nos últimos anos, fazendo desequilibrar o fiel da balança da igualdade entre homens e mulheres. Penso, por exemplo, na crise do mercado de trabalho; nas exigências de uma economia, sempre mais competitiva, baseada no conhecimento, que reclama aos trabalhadores uma educação ao longo da vida; no envelhecimento da população, que coloca a sociedade perante novas necessidades, a que o Estado-providência, poderá não estar em condições de responder, ligadas à prestação de serviços a idosos; ou ainda, na queda da natalidade que poderá favorecer políticas com um impacto negativo para a situação das mulheres.

Gostaria, aliás, de frisar este ponto, especialmente em atenção às gerações mais jovens, talvez mais sujeitas à tentação perniciosa de considerar que a solução para as dificuldades presentes, está no regresso “à tradição e ao natural”, ou seja, à antiga distribuição de papéis, o que constituiria, a meu ver, um indesejável retrocesso até do ponto de vista da democracia paritária.

É pois necessária uma atenção redobrada de todos, até porque a igualdade de oportunidades começa naturalmente com garantias legais, mas é para ser vivida no quotidiano, traduz uma mentalidade e exprime-se em atitudes que importa serem partilhadas pela sociedade em todos os campos, em todos os níveis de decisão, de responsabilidade e de escolhas, tanto na vida pública como privada.


Conciliação entre a vida profissional e familiar

A minha segunda preocupação prende-se precisamente com a necessidade de definir e aplicar políticas adequadas da família, que encorajem a paridade e a parceria entre homens e mulheres, tanto na esfera profissional como familiar. Esta é obviamente uma área melindrosa primeiro porque implica entrar no que se considera ser a esfera privada, e torná-la pública, ou seja, politizá-la, fazendo-a objecto de políticas concretas; depois, porque, em última análise, exige uma transformação profunda das mentalidades e das atitudes da sociedade em geral e, como se sabe, este é um processo lento e moroso que, muitas vezes, requer uma mudança de gerações.

Alguns autores referem-se a este problema em termos de necessidade de combater uma certa cultura masculina adoptada pelas mulheres emancipadas – no sentido de que, para se afirmarem no mundo profissional, muitas mulheres renunciaram pura e simplesmente a ter uma vida familiar e, tantas vezes, até privada. Não creio, no entanto, que esta tenha sido a opção predominante porque a maioria das mulheres escolheu, na realidade, desempenhar os dois papéis e assumir a sua dupla condição de mulher e de profissional, aceitando a duplicação das suas tarefas.

Por conseguinte, o cerne do problema prende-se, a meu ver, com a construção de novos equilíbrios ao nível da família e com a necessidade de se repensarem os usos do tempo dos homens e das mulheres, de se definir uma nova linha de partilha das tarefas e dos papéis na esfera da vida privada e pública. Isto implica mais políticas de compatibilização da maternidade e dos cuidados infantis com o mundo laboral; mais políticas de incitação à partilha das tarefas domésticas e familiares entre homens e mulheres, não só a nível da educação dos filhos, mas também dos cuidados aos idosos e doentes – um domínio que exige atenção crescente até pelo envelhecimento progressivo da população – bem como da partilha equitativa do trabalho doméstico.

Mas, o que está aqui em jogo, não é só a aplicação de políticas destinadas a corrigir uma situação de desigualdade, mas também, como já disse, uma transformação das mentalidades, das atitudes e dos comportamentos dos homens e das mulheres, que exige, esta, um esforço quotidiano e concertado, que depende de cada um e exige de todos, vontade, conciliação e incessante diálogo.


Situações de violência

A minha terceira preocupação diz respeito ao problema grave, em Portugal, das situações de violência em sentido lato a que a mulher está frequentemente exposta e que revestem configurações e características diversas, mas que não se têm esbatido com o tempo. Já, há dois anos, neste mesmo dia tinha manifestado esta preocupação. Hoje, sou forçado a reiterar que a violência na família é um problema social e político sério.

Estudos recentes denunciam a gravidade da situação, embora no plano da legislação se registe uma evolução positiva, com a criminalização da violência doméstica e uma maior protecção das vítimas. Mas, haverá, indubitavelmente, que reforçar ainda mais as políticas de prevenção e desenvolver uma verdadeira cultura de luta contra todas as formas de violência, quer se trate de violência física ou psicológica, de violência na família, na sociedade ou no local de trabalho.

Em particular a violência doméstica deve ser vista como um problema de saúde pública, na linha do que preconiza a Organização Mundial de Saúde. Cabe certamente aos profissionais de saúde um importante papel de prevenção e de intervenção, embora reconheça que se trata de um terreno extremamente complexo, exigindo respostas igualmente complexas.

Devemos também estar atentos a outras formas de violência, porventura, menos óbvias, a que chamaria situações de “violência simbólica”, que tendem a condicionar a afirmação das liberdades individuais e podem constituir um atropelo à dignidade humana, especialmente na pessoa das mulheres. Incluo nesta categoria um leque muito amplo de situações estigmatizantes, indutoras de grande sofrimento pessoal e humano, mas que podem ser corrigidas mediante a aplicação de políticas adequadas de informação, prevenção e acompanhamento. Penso designadamente na educação sexual, no planeamento familiar e nos debates sobre a delicada problemática do aborto, campos em que não posso deixar de lamentar a lentidão dos progressos realizados. Mas ocorrem-me igualmente outros exemplos, como o do terceira idade, especialmente quando declinada no feminino, uma área ainda muito negligenciada, não só em termos sociais, como de políticas, e que é objecto de tantos estigmas e estereótipos eivados de preconceitos.

Permitam-me que lance um apelo a todas e todos aqui presentes: não permitam que a prevalência dos valores mercantis e económicos da sociedade consumista e individualista em que vivemos se transforme num factor de retrocesso para a situação dos direitos humanos, laboriosamente conquistados durante o século passado. Foram dados passos decisivos na direcção certa, devemos agora evitar que o imobilismo deixe sem resposta os problemas do nosso tempo e nos impeça de mudar o futuro.


Minhas amigas e amigos

À semelhança do que tenho feito nos anos anteriores, aproveito este Dia Internacional da Mulher para dar maior destaque e valorizar o trabalho das mulheres portuguesas. Vou assim, através da imposição de insígnias das Ordens Honoríficas, homenagear um conjunto de Mulheres que se têm distinguido, contribuindo para enaltecer a sua profissão, para elevar a qualidade do serviço público ou ainda para dignificar a condição dos seus semelhantes, especialmente a da Mulher. Em nome da República, quero sublinhar o trabalho e mérito que têm evidenciado nas vossas carreiras, o exemplo que as vossas vidas constituem. Espero que este meu gesto sirva de estímulo a uma crescente afirmação das mulheres portuguesas.

Esta é também, e deve continuar a sê-lo, um grande desafio do nosso regime democrático, fundado em 25 de Abril de 1974. Passados trinta anos, é a hora de fazermos um balanço prospectivo, um balanço que olhe o futuro. Para isso, busquemos inspiração e energia nesse dia fundador, ao mesmo tempo já distante no tempo mas tão presente na memória dos que o viveram. Esse dia que uma grande mulher, uma grande escritora e uma grande portuguesa, Sophia de Mello Breyner, cantou em um poema de uma beleza que permanece intacta:

“Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo”

Muito obrigado a todas e todos.