Discurso de SEXA PR por ocasião da Cerimónia de Entrega do Prémio Pessoa


22 de Março de 2004


Algumas poucas palavras para manifestar o regozijo e satisfação pessoal com que acolhi esta concreta atribuição do Prémio Pessoa, mas também para, agora do ponto de vista próprio do Presidente da República, salientar a importância do seu significado.

Como pessoa, cidadão, académico e constitucionalista, o Doutor Gomes Canotilho reúne qualidades e méritos que tornam indiscutível a atribuição do prémio. Se perante a evidência dos factos e de toda uma obra, as palavras ainda podem ter alguma importância, não quero deixar de testemunhar a forma como ao longo dos anos pude tomar contacto com essas várias dimensões da personalidade do homenageado, reforçando laços de amizade e sentimentos da mais profunda admiração pessoal e científica.

À individualidade de cultor ímpar da dogmática e da teoria constitucionais alia-se, na personalidade do premiado, a responsabilidade do professor que se orgulha da sua Universidade e trabalha para a preparar para os desafios do futuro e, também, o empenhamento do cidadão que participa, critica, influencia e vive os destinos da comunidade.

No domínio particular do saber onde soube merecer o respeito e admiração de todos quantos tiveram o privilégio e o proveito de poder desfrutar dos seus ensinamentos, o Doutor Gomes Canotilho é, de há muito, uma referência que honra a sua Universidade, mas também o País. Pode, sem exagero, dizer-se que não é hoje possível, designadamente nos países de língua portuguesa, aceder a um conhecimento de excelência no domínio do Direito Constitucional que não tome por base, bússola e enquadramento a lição do Mestre de Coimbra.

A uma produção teórica sólida e verdadeiramente monumental, o Doutor Gomes Canotilho faz acrescer a humildade científica que só os grandes espíritos se permitem revelar. Ao interesse pelo acompanhamento constante das novas tendências, junta-se também a capacidade de acolher críticas, considerar sugestões e absorver novos contributos, o que o leva, frequentemente, a questionar anteriores posições, a reelaborar ou reescrever, a reestruturar uma obra em permanente construção. Mas nunca é inconstância ou desorientação o que essa evolução revela. Sempre, ao contrário, demonstra abertura ao novo, inquietação criativa, busca e aprendizagem permanentes de alguém que, sem conceder nos grandes princípios, conhece por experiência feita a lição de vida segundo a qual só o diálogo com o outro, a interacção, o confronto dialéctico e a tolerância conduzem ao progresso e à emancipação.

O Professor Gomes Canotilho, tendo embora desempenhado cargos políticos de relevo, nunca foi Deputado nem juiz do Tribunal Constitucional, o que pode parecer surpreendente tendo em conta que se está perante alguém que, como poucos, vive tão intensamente a Constituição e defende e pratica uma cidadania republicana activa.

Porém, não é difícil perceber a quem se interesse minimamente por estes temas, que, tanto na Constituição quanto na jurisprudência constitucional, a influência do Professor é, e a justo título, enorme.

Desde a primeira hora o Doutor Gomes Canotilho foi um amigo da Constituição de 1976, soube destacar o que ela continha de essencial e perceber o papel decisivo que ela podia e devia desempenhar na construção do Estado de Direito e na estabilização da democracia portuguesa. De alguma forma, o próprio conteúdo da Constituição, tal como foi percebido e vivido na prática pela comunidade jurídica ficou indelevelmente marcado pelas sucessivas edições do seu Direito Constitucional e pela edição anotada da Constituição que, juntamente com outro insigne Mestre da Faculdade de Direito de Coimbra, o Doutor Vital Moreira, em boa hora empreendeu.

Tão intensa foi e é essa associação entre texto da Constituição e o seu comentário quase oficioso que, ainda hoje, não é invulgar, mesmo em círculos de juristas, uma curiosa e admirável confusão entre aquilo que diz a Constituição e aquilo que dizem Gomes Canotilho / Vital Moreira que, obviamente, não é alimentada por estes, mas é o resultado compreensível da valia do seu trabalho de comentadores e do enorme eco que justamente encontraram.

Numa obra tão vasta, equilibrada e profunda como é a do Professor Gomes Canotilho não é fácil destacar o que poderão ser os seus contributos mais importantes, sobretudo quando não se dispõe de todos os instrumentos que nos permitam avaliar a grandeza da dimensão mais teorética da sua obra.

Mas quem, como eu, tem acompanhado com o maior interesse a evolução do seu pensamento mais directamente vinculado à praxis jurídica quotidiana, não pode deixar de destacar, pelo menos, a tónica superiormente colocada na dimensão republicana, social e democrática do nosso Estado de Direito, na relevância jurídico-constitucional do princípio da socialidade e dos direitos sociais, na compreensão da Constituição como ordem aberta de princípios e de regras jurídicas e, ainda, na reflexão sobre a específica natureza do nosso sistema de governo, particularmente a posição que nele ocupa o Presidente da República.

Por último, mas não menos importante, é a todos os títulos inapreciável a importância da sua lição no que se refere às preocupações com o assegurar da força normativa da Constituição.

Não é possível consolidar, na sua plenitude, um Estado de Direito democrático nos nossos dias sem estabilidade constitucional. A sistemática invocação, do pretenso obstáculo que a nossa Constituição colocaria às necessidades de desenvolvimento não pode senão contribuir para minar essa força normativa e, em última análise, gerar a desconfiança nas instituições do Estado de Direito.

Não que neste domínio haja verdades indiscutíveis ou matérias imunes à crítica. Mas não é desejável persistir em alibis que não têm o mínimo suporte na realidade constitucional. Quem acompanhe, com um mínimo de atenção, a jurisprudência do nosso Tribunal Constitucional percebe que a Constituição é, hoje, objectivamente e sobretudo, factor de coesão em torno dos grandes princípios que devem conformar qualquer Estado de Direito democrático assente na dignidade da pessoa humana.

Também aqui a lição do Professor Gomes Canotilho se revela de uma utilidade inestimável.

Parabéns ao Júri por esta escolha.

Muitos e merecidos parabéns ao Prof. Gomes Canotilho.