Discurso na Assembleia Nacional de Cabo Verde

Cidade da Praia
30 de Março de 2004


Senhor Presidente da Assembleia Nacional
Senhoras e Senhores Deputados
Minhas Senhoras e meus Senhores

Quero, em primeiro lugar, agradecer-lhe, Senhor Presidente, as suas calorosas e amigas palavras de boas vindas. Sinto-me feliz por estar de novo em Cabo Verde, e honrado pela oportunidade de dirigir a palavra a esta Assembleia, que é a expressão viva da democracia cabo verdeana. Cabo Verde foi o primeiro país que visitei como Chefe de Estado e é, até agora, o único a que me desloco oficialmente uma segunda vez. A minha presença entre vós é sinal de amizade e prova da elevada consideração que Cabo Verde e as suas gentes me merecem.

No universo dos países da língua portuguesa, Cabo Verde ocupa um lugar muito especial, pela singularidade e irradiação da sua cultura, pelo notável progresso material que alcançou em três décadas de independência e pela grande maturidade política que tem revelado.

Cabo Verde é um caso exemplar, em primeiro lugar, pela forma como soube — sem drama, sem violência e sem demagogia — efectuar uma transição bem sucedida para a democracia. O regime democrático implantou-se e consolidou-se com naturalidade, tendo conseguido mobilizar vontades e energias e governar de forma eficaz.

A alternância democrática, único mecanismo capaz de permitir a necessária renovação política e de insuflar novas ideias e novo dinamismo na governação, foi aqui aceite com serenidade.

A eleição directa para o poder local, também ela expressão decisiva da democracia, em especial num país disperso por dez ilhas, foi outro inegável sucesso, permitindo aproximar eleitores e eleitos e acudir de forma mais eficaz às grandes carências dos locais mais pobres e distantes do poder central.

A maturidade da democracia cabo verdeana revela-se, também, na capacidade evidenciada para gerar consensos acerca do rumo que o país deve tomar — demonstrando assim que democracia não tem de ser sinónimo de permanentes dissensões acerca de tudo e nada — e para consolidar uma verdadeira cultura de solidariedade institucional entre os diversos poderes do Estado, no respeito pelas competências e prerrogativas de cada um.

Existe também em Cabo Verde uma cultura de parcimónia e de rigor nos gastos públicos e de gestão criteriosa das ajudas internacionais, que permite às populações beneficiarem de forma efectiva dos parcos recursos ao dispor do Estado.

Em três décadas de independência, Cabo Verde pode orgulhar-se de ter logrado um verdadeiro desenvolvimento económico e social que, por comparação com tantos outros casos, é hoje visto pela Comunidade Internacional com respeito e admiração. Todos os números o atestam: em 1975, o índice de analfabetismo era de 70%. Actualmente está abaixo dos 25%. Todas as ilhas dispõem actualmente de escolas de ensino secundário. O índice de escolarização é de 96% Na saúde, ergueram-se novos hospitais e formaram-se novos médicos, permitindo um aumento da esperança de vida para os 70 anos. Construíram-se infra-estruturas, muitas aldeias foram electrificadas, foi assegurado o abastecimento de água, desenvolveram-se as telecomunicações.

Mas não vale a pena recorrer a números para provar algo que está à vista de todos. Basta, com efeito, percorrermos o país para vermos, mesmo nas mais remotas localidades, a acção do governo — seja central ou local — que se traduz em estradas, escolas, hospitais e ordem pública.

Qual é então o segredo que permitiu a Cabo Verde — um arquipélago destituído de recursos naturais, periodicamente assolado por terríveis secas, isolado no Atlântico — atingir dos mais elevados índices de desenvolvimento humano em toda a África? Só há uma resposta possível: o segredo está nos próprios cabo verdeanos, na sua inteligência, integridade, capacidade empreendedora e vontade de bem fazer. Cabo Verde é a ilustração acabada de que a riqueza de um país é feita pelas pessoas não pelos recursos naturais, por mais abundantes que sejam. Esta é uma lição que vale a pena ter bem presente, em especial nos países mais bafejados pela sorte em matéria de dádivas da natureza.


Senhor Presidente da Assembleia Nacional
Senhoras e Senhores Deputados
Minhas Senhoras e meus Senhores

É por estas razões que, nós portugueses, acreditamos e apostamos no futuro de Cabo Verde. Cabo Verde representa hoje para Portugal um parceiro político e económico muito importante. As nossas relações já não passam apenas pela política de cooperação. Num país que conta menos de meio milhão de habitantes, as empresas portuguesas encontram aqui um mercado mais importante do que o de vários dos nossos
parceiros na União Europeia e o terceiro no universo da CPLP.

Concentram-se em Cabo Verde um grande número de investimentos portugueses, surgindo aqui as primeiras experiências de deslocalização da actividade produtiva de Portugal para Cabo Verde.

Considero que este desenvolvimento é benéfico para os dois países e oferece perspectivas interessantes para o futuro, com o desenvolvimento das novas infra-estruturas de transportes e comunicações que o vosso país está a empreender.

Espero, igualmente, que com a assinatura de um novo acordo aéreo, que vai permitir aumentar o número de voos e baixar o custo das passagens aéreas entre Cabo Verde e Portugal, possamos dar um novo impulso à colaboração entre os nossos dois países no domínio do turismo, eliminando um estrangulamento neste sector de importância vital para o desenvolvimento do vosso país.

No âmbito da política de cooperação portuguesa, da qual Cabo Verde é o principal beneficiário per capita, continuaremos a apoiar os vossos esforços em quatro eixos prioritários: o reforço da estabilidade macro-económica, no quadro do Acordo de Cooperação Cambial; o apoio à consolidação das instituições; a valorização dos recursos humanos, da cultura e do património histórico; o desenvolvimento de infra-estruturas e a melhoria do sector empresarial.

Não minimizo, bem entendido, os enormes desafios que Cabo Verde ainda enfrenta para consolidar o seu processo de desenvolvimento. Temos consciência de quanto falta fazer para combater a pobreza, melhorar as infra-estruturas e criar emprego para os jovens.

Sabemos, também, que o processo de graduação de Cabo Verde da lista dos Países Menos Avançados para a lista dos Países de Desenvolvimento Médio irá representar um enorme desafio. Por isso temo-nos empenhado, em todas as instâncias internacionais, para que o vosso país possa beneficiar de um processo de transição alargado. Considero, todavia, que essa graduação, embora tenha custos significativos, constituirá para Cabo Verde um factor de prestígio internacional que deve ser valorizado, podendo igualmente abrir-lhes novas oportunidades.

No espírito de solidariedade que deve unir todos os países que falam português, Portugal não poupará esforços para vos acompanhar neste percurso. No âmbito da União Europeia, procuraremos agir, junto dos nossos parceiros de forma a que seja possível satisfazer, em alguma medida, as pretensões de Cabo Verde no sentido de criar uma relação mais estreita com a União Europeia.

Sempre contámos com Cabo Verde para aprofundar esse grande projecto lusófono que é a CPLP, que tanto eco encontra junto das sociedades civis dos nossos países. Com a nomeação, que vos compete, do próximo Secretário Executivo, o papel de Cabo Verde assumirá ainda maior relevo. Saudamos a participação cada vez mais activa do Brasil na organização e as provas de empenho no reforço das suas relações com os países africanos de expressão portuguesa que tem dado. Espero que a próxima cimeira da CPLP, que terá lugar em São Tomé e Príncipe, dê um novo impulso à actividade da organização, em áreas como a cooperação empresarial, a luta contra a epidemia do HIV-SIDA, e a difusão da língua portuguesa.

O português, renovado e enriquecido pelos falares de cada um dos países da nossa Comunidade, é um património comum que nos cumpre valorizar e afirmar no mundo. Partindo de uma matriz comum, a lusofonia declina-se em várias culturas nacionais que, por sua vez se fertilizam mutuamente.

Nesta época de globalização, é importante garantir a diversidade linguística e a pluralidade cultural. Pela sua importância histórica, cultural e em número de falantes, a língua portuguesa é uma das grandes línguas do mundo e deve ser assumida, valorizada e projectada como tal.

Como sucedeu a tantas outras nações, foi a literatura que começou a fixar a identidade nacional de Cabo Verde. A essa identidade, forjada pela insularidade e por uma história de adversidade e isolamento, foi dada expressão pelos grandes escritores da revista Claridade, homens como Baltazar Lopes, Corsino de Azevedo ou Jorge Barbosa, que cantaram a saga destas “ilhas perdidas / no meio do mar / esquecidas / num canto do mundo”. Depois foram os seus intelectuais e homens de Estado — com destaque para Amílcar Cabral — que deram a essa identidade um cunho político, o do nacionalismo cabo verdeano, que resolveu tomar em mãos o destino deste arquipélago, transformando essa “terra mártir” num país capaz de sustentar os seus filhos. Hoje, Cabo Verde é uma nação com uma identidade distinta e afirma-se como um país portador de uma cultura própria que se exprime com grande vivacidade na literatura e também na música, através dos seus ritmos e das tradicionais mornas e coladeiras que, pela voz ímpar de Cesária Évora, se afirmaram no palco internacional.

Um laço de grande importância nas nossas relações é constituído pela presença de uma importante comunidade de origem cabo verdeana em Portugal. É uma comunidade que estimamos e acarinhamos e que se integrou perfeitamente na sociedade portuguesa, mau grado alguns problemas que afectam essencialmente jovens da segunda geração.

Convidei ilustres representantes dessa comunidade para me acompanharem nesta visita, como forma de reconhecimento simbólico da grande contribuição dada pelos cabo verdeanos para o desenvolvimento de Portugal.


Senhores Deputados
Minhas Senhoras e meus Senhores

Portugal celebra este ano o trigésimo aniversário do 25 de Abril. Foi a revolução dos cravos que abriu caminho para a vossa independência e para a nossa liberdade. Não se romperam os laços que nos unem, mas mudaram de natureza. Hoje encaramo-nos com respeito mútuo, como dois povos livres e soberanos, que comungam dos mesmos valores e partilham um legado histórico que nos torna verdadeiramente irmãos.

Temos boas razões para nos orgulharmos do percurso que fizemos ao longo destas três décadas e para encararmos com esperança e optimismo o futuro. Com o acelerar da globalização, que encurta distâncias, permite a comunicação instantânea e coloca a informação ao alcance de uma tecla, circunstâncias geográficas que tradicionalmente foram desfavoráveis podem adquirir novas virtualidades. Cabo Verde, isolado da turbulência que afecta a África Ocidental, a quatro horas de voo de Lisboa, seis do Rio de Janeiro e sete de Nova Iorque, está bem situado nas rotas da globalização. Dotado das infra-estruturas adequadas, Cabo Verde pode tirar partido da sua qualificada mão de obra e da sua diáspora para encontrar áreas de especialização no mercado internacional que abram novas perspectivas para o seu desenvolvimento económico.

É certo que o momento internacional está toldado de nuvens e carregado de tensões, provocando o retraimento dos agentes económicos. Passou a euforia dos anos 90. O início do novo século ficou marcado pelo 11 de Setembro e as suas sequelas continuam a atormentar o nosso quotidiano, como se vê pelo 11 de Março em Madrid.

O combate ao terrorismo internacional é agora a palavra de ordem que deve mobilizar toda a comunidade internacional. Esse combate deve ser conduzido com firmeza, mas no respeito pela lei, com determinação mas também com paciência e exige uma cooperação internacional intensa entre todos os países, designadamente ao nível dos serviços de informações. A luta contra o terrorismo não pode todavia ser confundida com qualquer conflito entre civilizações ou culturas. O terrorismo não deve ser associado a nenhuma fé pois ele é, em si mesmo, a negação de valores básicos da moral partilhados por todas as religiões.

Na África o panorama também não é animador. Grassam as epidemias, os Estados têm cada vez maiores dificuldades em assegurar as suas funções básicas, o desenvolvimento tarda, milhões de pessoas vivem numa miséria indigna da condição humana. A Comunidade Internacional não se pode alhear dos problemas africanos, não apenas por razões da mais elementar solidariedade. É da maior importância para a estabilidade internacional que a África encontre um novo rumo que lhe traga paz e desenvolvimento.

Na CPLP, não estamos infelizmente isentos de todos estes males. Podemos todavia dizer que desde o fim da guerra em Angola estamos todos em paz, o que já não é pouco. Depois, com maiores ou menores dificuldades e imperfeições, a democracia vai fazendo o seu caminho em todos os países lusófonos. A Guiné Bissau está a realizar eleições gerais. É um passo decisivo para a sua reabilitação internacional. Passado o sufrágio, é importante que todas as forças políticas naquele país se comportem de forma responsável e moderada.

O ambiente internacional nem sempre ajuda, mas não nos podemos resignar perante a adversidade. Está ao nosso alcance superar as dificuldades presentes, continuando a trilhar o difícil e exigente caminho do desenvolvimento. Mais importante que as circunstâncias internacionais é o nosso esforço individual e colectivo e o acerto das nossas opções. É isso que prova a história recente de Cabo Verde.

É pois o vosso exemplo que quero realçar. Na vida dos povos, nada há de mais decisivo que o bom Governo. Sem querer distinguir nenhuma das forças políticas presentes nesta Assembleia — pois todas foram, a diferentes níveis e em diferentes períodos, responsáveis pelos sucessos obtidos — posso, em consciência afirmar que Cabo Verde tem dado à comunidade internacional um exemplo de boa governação, desafiando circunstâncias à partida muito adversas e provando que é possível superá-las com esforço, inteligência e determinação.

Bem hajam pelo vosso exemplo!
Viva Cabo Verde!
Viva Portugal!