Discurso de SEXA o PR por ocasião do início da Semana da Educação

Falagueira
04 de Maio de 2004


Nos tempos actuais, não há tarefa mais urgente do que a educação. Ninguém duvida que a sociedade do século XXI terá como elementos essenciais o conhecimento, a criatividade e a inteligência. São estas as matérias-primas que definirão a riqueza dos povos e das nações. O que conta são as pessoas e a sua cultura.

Minhas Senhoras e Meus Senhores,

Foi com estas palavras que iniciei a Semana da Educação, realizada em Janeiro de 1998. Na altura, chamei a atenção para o facto de não proporcionarmos a todas as crianças um ensino básico de qualidade, manifestei a minha preocupação com os estudos internacionais que mostravam o fraco desempenho dos alunos portugueses e, sobretudo, alertei os responsáveis para as taxas elevadíssimas de insucesso e de abandono escolar.

Seis anos depois, é com estas mesmas palavras que inicio uma nova Semana dedicada à educação. Quer isto dizer que nada se alterou entretanto? Não. Mas é preciso manter o rumo, ser perseverante.

Decidi proferir este “discurso de abertura” numa escola pública do 1º ciclo do ensino básico. Porque quero valorizar o ensino público, um ensino que deve distinguir-se por níveis elevados de qualidade, um ensino que não sirva apenas para acolher os mais pobres ou os mais desfavorecidos. Porque acredito que é nos primeiros anos de escolaridade que se define a capacidade de aprender, que se define muito do que cada um irá ser ao longo da sua vida.

Portugal não tem estudantes a mais, não tem diplomados a mais. Portugal tem, bem pelo contrário, índices baixíssimos de qualificação escolar da sua população. Portugal não investe de mais na educação. Bem pelo contrário, necessita de investir nesta área (e muito), não apenas durante um, dois ou três anos, mas de forma continuada e persistente. O nosso país tem uma longa história de desinvestimento na área da Educação. Nada mudará sem uma maior determinação da nossa parte.

Eu não quero um país remediado, complacente com um destino escolar medíocre. Eu não quero um país acomodado, resignado a uma “escola sofrível”. Não aceito a fatalidade de uma população com poucas qualificações escolares, não só nos adultos mais idosos, mas também nas camadas mais jovens. Desejo um país ambicioso, um país com a coragem de se destacar pela cultura e pelo conhecimento. Não é uma missão fácil. Mas é uma missão necessária, vital. E, por isso, tem de ser possível.

Minhas Senhoras e Meus Senhores, renovo a minha convicção de que nada será alterado se a educação não for considerada uma responsabilidade colectiva e não for sentida como a preocupação primeira dos portugueses.

Mas esta responsabilidade não pode ser uma mera afirmação retórica. Durante esta Semana pretendo conhecer melhor a realidade, mostrando ao país os problemas que ainda temos, mas sobretudo as soluções que já existem em muitas escolas.

Falo-vos da responsabilidade política, social e profissional.

- A responsabilidade política exige-nos um reforço dos investimentos em educação. Portugal e a Grécia são os dois países da União Europeia com menor despesa total, por aluno. E Portugal é o país no qual as despesas privadas em educação são menos significativas. Não basta, pois, uma desejável eficácia na gestão dos meios e dos recursos. É necessário mais investimento. E seria um erro histórico dar livre curso às ideologias do mercado que tendem a diminuir o compromisso do Estado com uma escola pública de qualidade para todos.

- A responsabilidade social leva-nos a valorizar todos os contributos. Ninguém é dispensável. Os problemas da escola resolvem-se dentro e fora da escola. Não podemos aceitar a indiferença em relação ao insucesso e ao abandono escolar. Como se fossem situações “normais” e socialmente toleráveis. Não são. A escola deve estar ao serviço da sociedade. Mas a sociedade também deve estar ao serviço da escola. São necessárias mais presenças à volta da escola: das famílias, das instituições, das empresas, dos poderes locais. O reforço das redes sociais e dos contextos culturais é uma condição essencial para a melhoria do espaço público da educação.

- A responsabilidade profissional permite-nos sublinhar o papel dos professores. Eles são os pilares essenciais do trabalho escolar. Não devemos tolerar o desinteresse ou a incompetência profissional. Mas não podemos ter um discurso dúbio sobre os professores: ora lhes exigimos tudo, ora consideramos que, no fundo, se trata de uma actividade relativamente simples. Nada mais incoerente. Ser professor é de uma enorme complexidade. É para esta profissão que devemos atrair os melhores alunos, os mais motivados, dando-lhes uma formação de grande qualidade. Os bons professores são caros? Talvez. Mas é incomparavelmente maior o custo social dos maus professores.


Minhas Senhoras e Meus Senhores,

Ao longo desta Semana quero partilhar convosco o trabalho realizado na periferia urbana de Lisboa e no Porto, mas também em zonas como Idanha-a-Nova, Castelo Branco, Paços de Brandão e São João da Madeira.

Fá-lo-ei a partir de apelos à participação, à democratização e à mudança.

Um apelo à participação... porque devemos recusar as tendências autoritaristas ou saudosistas, ainda tão presentes na sociedade portuguesa. As soluções do passado não resolvem os problemas do presente. Os 30 anos da Revolução mostraram, apesar de todas as imperfeições, as virtualidades da democracia. É assim na sociedade. É assim na escola. Importa, por isso, estimular a partilha, o debate, o trabalho cooperativo. Nunca há participação a mais. E não é a participação que impede a emergência de formas de autoridade, de tolerância e de respeito que são condição necessária da relação pedagógica.

Um apelo à democratização... porque a abertura da escola e a capacidade de resposta às questões colocadas por novos públicos (por exemplo, os filhos dos imigrantes) são elementos centrais de uma sociedade que se enriquece e que se torna mais digna com a integração de todos. Devemos, no entanto, recusar os desvios falsamente democratizantes, que nos levariam a opor a “formação das elites” à “democratização do ensino”. Portugal precisa de investir na formação das suas elites, na formação de elites sociais e empresariais comprometidas com a democratização da escola, com a melhoria da qualificação escolar e profissional de todos os portugueses.

Um apelo à mudança... porque a educação é sempre um projecto de transformação, no plano pessoal e social. Devemos recusar as práticas pretensamente igualitaristas, incapazes de reconhecer o esforço ou de distinguir o mérito. A pior forma de discriminação é aquela que encerra os mais pobres, os mais frágeis, nos seus universos socioculturais de origem, não os desafiando para um outro destino. Era corrente, antes de Abril, dizer que certas crianças não tinham “cabeça” para a escola, não tinham “queda” para os estudos. São frases que, infelizmente, ainda se vão ouvindo. É fundamental rompermos com o “círculo vicioso” desta resignação que consagra as desigualdades, impedindo que a escola seja um factor de mudança e de mobilidade social.

Minhas Senhoras e Meus Senhores,

A partir destes três apelos, estarei particularmente atento, durante as minhas visitas, a tudo o que se relaciona com o sentido da escola para os jovens, com a organização do trabalho na escola e com os processos de formação que estão para além da escola.

Começo por me referir ao sentido da escola para os jovens. São graves os fenómenos do insucesso e do abandono escolar. Disse-o em 1998. Repito-o agora. Não temos alunos a mais dentro da escola. Temos alunos a mais que não aprendem o que deviam aprender na escola. Temos alunos a mais fora da escola.

Tenho consciência da complexidade deste fenómeno. O abandono escolar resolve-se, em grande parte, a montante e a jusante da escola. Mas é preciso reconhecer também as responsabilidades da própria escola que, hoje, não tem sentido para muitos alunos. No meio de uma certa indiferença, estes alunos vão permanecendo nas escolas, em situações-limite de insucesso, sem um projecto claro de formação.

É intolerável a nossa tolerância perante este fenómeno, que conduz muitos alunos a nada aprenderem após vários anos de ensino. O mais fácil é ceder, renunciando ao esforço quotidiano que o trabalho escolar exige. Mas a escola não é apenas um lugar para viver ou para conviver. É sobretudo um lugar para aprender.

Há uma dimensão de orientação, de aconselhamento, de acompanhamento que faz parte integrante da profissão docente. Os melhores professores são aqueles que conseguem alimentar as expectativas escolares dos seus alunos, que conseguem despertar interesses profundos nos seus espíritos e indicar-lhes, como escrevia António Sérgio há quase um século, “os meios de satisfazer esses interesses com esforço próprio e a maior liberdade que for possível” (“Acentuamos a palavra esforço, para que se não confunda a nossa afirmação com a ideia, que julgamos errónea, de tornar o estudo interessante, tornando-o fácil, divertido, sem esforço. Toda a educação deve ser esforçada; porém de esforço natural e voluntário, exigido por um interesse do discípulo e não do professor”).

Pretendo ouvir os alunos sobre os seus percursos escolares, mas também procurarei conhecer melhor a organização do trabalho na escola. Tenho observado – observação que contradiz muitos discursos autoritaristas – que é nas escolas onde há regras de participação e de colegialidade, é nas escolas onde se vive um clima de colaboração, que as aprendizagens escolares têm mais sucesso.

Os professores competentes e dedicados sabem que a formação escolar implica um esforço continuado, rigoroso, sistemático. E são capazes de enquadrar e estimular os alunos, através de estratégias de apoio individual, de práticas de tutoria ou de estudo acompanhado, de métodos cooperativos de trabalho.

A integração de todos e a diferenciação dos percursos escolares são duas faces de uma mesma moeda. Estamos colocados perante uma dupla necessidade: reafirmar a importância da escola como um “bem comum”, recusando a sua transformação num mero “serviço” ou “mercadoria”; e, ao mesmo tempo, construir modelos de organização que rompam com a homogeneidade e a rigidez que, tantas vezes, caracteriza a escola pública.

É preciso dar vida à escola. Apoiar, no plano local, iniciativas que não sejam meras “experiências”, mas que tenham solidez e continuidade no tempo. Iniciativas de professores, de pais ou de associações que, em colaboração com equipas pedagógicas, ponham em prática formas inovadoras de organização da escola e do currículo. A escola pública não deve ter um figurino único e uniforme.

Chego, assim, ao último ponto, aos processos de formação que estão para além da escola. Hoje, impõe-se a valorização de experiências e de aprendizagens que não foram feitas através do ensino formal. As estratégias de reconhecimento, validação e certificação de competências são essenciais para a renovação das práticas de educação dos adultos.

Ao mesmo tempo, tendem também a esbater-se as fronteiras rígidas entre os sistemas da educação e da formação. Nas últimas décadas, Portugal investiu (e muito), sobretudo através das ajudas comunitárias, no sector da formação e dos recursos humanos. Infelizmente, foi muito reduzido o impacto destas verbas na qualificação dos portugueses e na qualidade do emprego.

Importa, por isso, ligar a formação escolar à formação profissional, desenvolvendo uma “cultura do trabalho” na escola e uma “cultura da formação” no trabalho.

A qualificação dos portugueses não passa apenas pelo espaço escolar. É no “mundo do trabalho” que se podem resolver muitos dos problemas que estão no “mundo da escola”. Será que está a ser cumprida a legislação em vigor e que estamos a proporcionar aos menores de 18 anos as oportunidades de formação a que têm direito? Será que temos sido capazes de organizar ambientes de trabalho ricos e estimulantes, que possibilitem uma formação ao longo da vida?

Minhas Senhoras e Meus Senhores,

Aqui ficam algumas das questões que procurarei colocar ao longo desta Semana. Eu sei que não há respostas fáceis para os problemas da educação. Mas sei, também, que em muitas escolas há experiências de sucesso e práticas coerentes e rigorosas.

Em educação não podemos cair na tentação de um permanente experimentalismo, pautado pelo ritmo de reformas legislativas que se contradizem ou se anulam umas às outras. Não podemos estar sempre a recomeçar. Devemos, sim, realizar um esforço diário de inovação, de procura das melhores condições para a formação das nossas crianças. E isso exige estudo, investigação e análise.

É absolutamente essencial a existência de entidades e estruturas que nos permitam avaliar e conhecer melhor a realidade escolar. Sempre defendi a existência de práticas rigorosas de avaliação dos alunos, dos professores, das escolas e do sistema educativo. Ao realizar esta Semana desejo contribuir para uma discussão mais informada, para um debate mais esclarecido.

A escola não pode tudo. Mas pode alguma coisa. Trinta anos depois de Abril é pela educação, pelo conhecimento e pela cultura, que se continua a liberdade. O regime democrático cumpriu algumas das suas promessas. Mas temos ainda um longo caminho a percorrer.

Portugal tem vencido desafios conjunturais difíceis. Quando muitos diziam que não seríamos capazes, mostrámos o contrário. Mas o nosso futuro como país depende de um desafio maior – a aposta num modelo de desenvolvimento baseado na qualificação escolar e profissional dos portugueses.

Temos diante de nós a responsabilidade colectiva de ultrapassar atitudes atávicas que nos amarram à imagem de um país pouco escolarizado, conformado com um mínimo de instrução e de cultura. Eu quero um país moderno, ambicioso, capaz de momentos de energia e de mobilização, mas capaz também de um investimento regular, sistemático, constante na formação dos seus cidadãos.

O nosso futuro como país depende desta rotina institucional, deste trabalho diário, quase sempre invisível, na educação de todos os portugueses.