Discurso de SEXA PR por ocasião da Sessão de Abertura do V Congresso Português de Sociologia

Braga
12 de Maio de 2004


Minhas Senhoras e Meus Senhores:

Faço questão de iniciar a minha intervenção neste 5º Congresso Português de Sociologia, exprimindo a convicção de que ele constitui um momento digno de figurar, em plano de destaque, no Ciclo de Comemorações dos 30 anos do 25 de Abril.

Não quero com isto significar que a sociologia portuguesa tenha emergido, a partir do zero, após a reconquista da democracia; com efeito, todos aprendemos a reconhecer, em alguns estudos pioneiros realizados antes dessa data, o sinal evidente de que, mesmo em ditadura, não foi possível reprimir em absoluto o desenvolvimento de um pensamento sistemático e crítico sobre a estrutura social portuguesa e algumas dinâmicas de transformação então em curso.

Aceite este ponto - que entendo constituir homenagem inteiramente justa aos fundadores da sociologia portuguesa, em especial ao mais influente de todos, o Professor Adérito Sedas Nunes -, forçoso é, contudo, considerar que, só depois do restabelecimento das liberdades cívicas fundamentais, da construção da arquitectura essencial do Estado de Direito e da democratização das instituições de ensino e de investigação do País, foi possível aos estudiosos portugueses lançarem os alicerces de um processo de desenvolvimento sustentado das ciências sociais.

Felizmente, podemos hoje contar com um valiosíssimo acervo de estudos, realizados em múltiplos centros de ensino e investigação especializados nestas áreas do saber, que nos ajudam a perceber, com rigor e profundidade inéditos, as especificidades da sociedade portuguesa. Muitos desses pólos de produção científica actuam já, aliás, como estruturas respeitadas nos circuitos mais influentes da comunidade sociológica internacional, e não só europeia.

Insisto em que nenhum destes desenvolvimentos teria sido possível sem a conjugação de condições sociais e institucionais gerada pelo movimento de democratização do País posterior ao 25 de Abril de 1974. Por isso sugeria há pouco que aproveitássemos a realização deste Congresso para, uma vez mais, homenagearmos a Revolução dos Cravos: afinal, foi através dela que conquistámos o direito a construir em liberdade o conhecimento sobre as nossas condições colectivas de existência e portanto, também, sobre as perspectivas de emancipação ao nosso alcance. É um legado que, em nenhuma circunstância, podemos alienar!

Uma parte importante do impulso dado à difusão e promoção pública do saber sociológico e dos seus especialistas no Portugal Democrático fica a dever-se à acção da Associação Portuguesa de Sociologia, que tenho acompanhado com a atenção possível.

Com um número de associados invulgarmente elevado, em comparação com organizações congéneres, nacionais e estrangeiras, e com uma capacidade de mobilização igualmente surpreendente (essa bem expressa no volume de congressistas e autores de comunicações aqui presente), a APS tem contribuído muito positivamente para aproximar e pôr em diálogo escolas e centros de investigação regional e institucionalmente distanciados, bem como para estabelecer estimulantes pontes de entendimento, e também - porque não? - de saudável desentendimento, entre “académicos” e “profissionais” de várias gerações.

Não escondo o particular apreço que tenho por esta última vertente da intervenção da Associação Portuguesa de Sociologia.

Estou, na verdade, convencido de que a qualidade das políticas sociais, para não falar já da qualidade do debate de ideias acerca do presente e do futuro da sociedade portuguesa, tem muito a ganhar – tem tudo a ganhar – com um bom funcionamento dos circuitos de difusão de conhecimentos, envolvendo professores, investigadores e todo o tipo de profissionais que actuam no terreno, em contacto directo com os problemas sociais.

Dizendo estes respeito a pessoas de carne e osso que vivem, em condições desiguais, em confronto directo com constrangimentos e oportunidades que em grande parte não dominam, compreender-se-á que o político alimente a pretensão de intervir, de acordo com o seu quadro de valores, nesse sistema de limites e de possibilidades. Ora, nesta ânsia de aperfeiçoamento das lógicas de funcionamento social, só por desatenção ou obstinada recusa ideológica se justificará, hoje, ignorar o contributo das ciências sociais.

Perante, por um lado, a quantidade e qualidade de trabalhos realizados entre nós nestas áreas do conhecimento – facto reconhecido por instâncias internacionais credíveis -, e perante, por outro, a necessidade de intervir, com intenção reguladora e estratégica, sobre as condições de desenvolvimento de sociedades altamente diferenciadas e complexas, em que velhas e novas constelações de riscos, ameaçam equilíbrios existenciais e sociais fundamentais, não encontro, então, razão plausível para recuar ou adiar o apoio ao desenvolvimento das ciências sociais.

Sei que uma parte importante desse desenvolvimento só foi possível graças ao acesso a financiamentos comunitários e à participação de muitos investigadores portugueses em projectos e redes internacionais. E já dei indicação de que me congratulo com os resultados científicos alcançados na sequência desse esforço de internacionalização. Mas também não ignoro que uma dependência excessiva dos centros de pesquisa nacionais relativamente a fontes de financiamento e a modelos de gestão científica da base transnacional pode, neste domínio do conhecimento, conduzir a algumas limitações sérias, desde logo ao nível da selecção de objectos a investigar.

Têm sido precisamente os sociólogos a chamar a atenção para as particularidades da formação social portuguesa, invocando ora a espessura histórica sui generis do seu processo de desenvolvimento, ora as circunstâncias específicas do seu trajecto de democratização, ora as consequências de alguma dessincronização na modernização das instituições.

Nestas circunstâncias, parece inteiramente justificável que a sociologia portuguesa reivindique o direito à estabilização de uma agenda científica com alguma independência face a critérios e timings definidos em instâncias internacionais. Não se trata, obviamente, de recuar em termos de presença nos circuitos mais avançados da produção científica. Trata-se tão somente de criar condições para a exploração de domínios científicos considerados incontornáveis face às especificidades da sociedade portuguesa.

Escusado será acrescentar que se pede aos responsáveis e instituições do sistema científico nacional a necessária atenção a esta dimensão dos problemas da pesquisa científica.

Prevejo que a Associação Portuguesa de Sociologia vá continuar a ter um papel determinante no desenvolvimento e promoção do saber sociológico, bem como na defesa do direito dos seus associados a disporem de condições para ampliarem e aplicarem conhecimentos neste domínio. A presença tão significativa de estudantes e jovens investigadores neste Congresso leva-me, aliás, a acreditar que a APS queira ter uma palavra cada vez mais audível na reivindicação de condições mínimas e minimamente sustentadas de apoio às novas gerações de sociólogos. Com as portas das Universidades virtualmente fechadas, há muito, a novos recrutamentos, compreende-se que esses jovens vivam com frustração a impossibilidade de participarem plenamente no processo de produção científica de excelência. É preciso não deixar perder este potencial de inteligência, empenhamento e criatividade.

Deixado este apelo, vou terminar, agradecendo a vossa atenção e fazendo votos para que este Congresso, tal como os anteriores, ajude a desvendar muitos dos processos sociais que fazem deste País um inesgotável gerador de preocupações, mas também, seguramente, um objecto de estudo muito aliciante. E coloco-me, desde já, entre os que ficam a aguardar, com curiosidade genuína, os resultados dos trabalhos. Muito obrigado.