Discurso do Presidente da República por ocasião da Sessão Solene Comemorativa do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas

Bragança
10 de Junho de 2004


Excelências
Excelência Reverendíssima


Neste dia em que celebramos Portugal, o poeta que o simboliza e a comunidade nacional que lhe dá continuidade e afirmação, as minhas primeiras palavras, as mais veementes, são para saudar todas as portuguesas e todos os portugueses, onde quer que vivam. Saúdo-vos, incitando-vos a que assumamos, com lucidez e orgulho, o novo patriotismo de que vos tenho falado, um patriotismo moderno e democrático. Tal patriotismo sabe que o passado só vale quando se transforma em futuro, que em vez de peso ou inércia deve ser impulso, estímulo e energia, que em lugar de isolamento, receio ou defesa deve ser abertura ao mundo, confiança e acção.


Luís de Camões, poeta português, europeu e universal, resume na sua obra esta bela lição de sempre e que mais se torna actual neste tempo de globalização - a de que é no universal que nos realizamos como povo, como cultura e como vocação. Não para nos distrairmos de nós e das nossas responsabilidades, como aconteceu algumas vezes no passado, mas para, a partir da nossa inteireza, nos encontrarmos e enriquecermos no encontro com os outros. Para Camões, como para Fernando Pessoa, não é contra a Europa e os seus valores que tal vocação se cumpre. É na Europa e com a Europa.

A democracia portuguesa acaba de perder duas figuras ímpares que foram exemplos de civismo, de dedicação à causa pública, de defesa intransigente dos valores em que acreditavam. A República deve a ambos uma sincera homenagem. Peço-vos, pois, que me acompanhem num minuto de silêncio em memória do Professor Sousa Franco e do Vice-Presidente da Assembleia da República, Lino de Carvalho.


Portugueses,


Celebramos Portugal nas vésperas das eleições para o Parlamento Europeu. À cidadania portuguesa junta-se, graças ao 25 Abril, o dever de cidadania europeia, em boa hora conquistada. Durante pesados anos, enquanto a Europa Democrática apagava as cicatrizes de guerra e consolidava os rumos de prosperidade, vivemos um isolamento contrário às nossas melhores tradições históricas e funesto para o desenvolvimento do País. Esse foi um tempo de sucessivas gerações bloqueadas e de expectativas longamente frustradas e adiadas. Devemos recordá-lo, mesmo nos momentos de celebração, para melhor medirmos o caminho entretanto percorrido e tomarmos consciência das diferentes responsabilidades assumidas no novo quadro de relacionamentos internacionais que a Democracia tornou possível. Desde logo, no feliz reencontro com a Europa, de cuja cultura havíamos sido tantas vezes os primeiros mensageiros pelas várias partidas do mundo. Por isso, raras terão sido as grandes opções nacionais que lograram recolher tão extensamente a adesão dos cidadãos, numa percepção colectiva de que este era o caminho certo para se consolidar a democracia e garantir o progresso.

Ao entrarmos na então Comunidade Económica Europeia, levámos connosco aspirações e expectativas. E também o rico património das experiências e encontros sedimentados ao longo da vida de uma Nação, habituada, desde cedo, a romper limites e a fazer da descoberta do Outro a melhor revelação de si-mesma. Foi este um desafio assumido e laboriosamente ganho, desmentindo o pessimismo e a descrença de alguns. Para tanto, soubemos afastar desconfianças e participar activamente no projecto europeu, de igual para igual com os restantes parceiros, cumprindo objectivos, colhendo benefícios e partilhando ambições.

Como sabemos, tinha sido dolorosa a agonia do ciclo histórico do Império. Mas com o retorno à velha - nova Casa europeia, obtivemos um espaço privilegiado para a afirmação e renovação da nossa forte identidade nacional. Mudámos a imagem que tínhamos de nós. Elevámos os nossos modelos e padrões de exigência e competição. Assegurámos o direito de participarmos em programas indispensáveis para a modernização e o desenvolvimento do país; garantimos o acesso prioritário a um quadro fundamental de relacionamentos políticos, culturais, económicos e financeiros; fortalecemos a nossa posição no plano externo, nomeadamente em áreas de relacionamento diplomático em que a história nos favorece caminhos; pudemos colher para as nossas vastas comunidades emigrantes, na Europa e mesmo fora dela, um privilegiado estatuto, consubstanciado numa cidadania europeia que garante direitos e protecções.

Tudo isto é conhecido, mas vale a pena relembrá-lo, sobretudo às gerações para quem, felizmente e ao contrário da minha, a Europa é a realidade do seu viver quotidiano e já não, como num passado ainda recente, uma aspiração longínqua, no tempo e no espaço, porque só começava a partir do Pirinéus. Esta é assim uma conquista vital que devemos consolidar e aprofundar, através de uma melhor e mais constante informação, de um regular debate de problemas e decisões, de um maior envolvimento dos cidadãos. Tanto mais que vivemos um tempo novo do projecto europeu com a adesão de dez novos países, os quais compreenderam, como nós, ser a Europa a boa via para dar resposta aos seus problemas e aos problemas do tão complexo mundo actual. Aliás, essa opção que livremente fizeram, tal como já ocorrera antes com os países nórdicos e a Áustria, reflecte bem o poder indutor do processo de construção europeia e o grave custo que adviria para Portugal se, no tempo certo, não tivesse sido decidida com firmeza a estratégia que nos permite fazer parte neste momento dos núcleos avançados da União, de que a moeda única é exemplo paradigmático.

Ultrapassadas as linhas de fractura que dividiram a Europa, podemos agora iniciar, juntos com os recém chegados parceiros e desejavelmente com o novo tratado constitucional, uma mais exigente idade da integração europeia. Reclama-a a extrema complexidade da presente conjuntura internacional, bem patente na violência das notícias e imagens que diariamente nos interpelam. Requere-a o tempo que atravessamos, em que são inéditas as ameaças à segurança dos Estados e dos cidadãos. Mais inesperados ainda são, a par das oportunidades, os problemas decorrentes de uma desordenada globalização da economia; mais imprevisíveis as questões suscitadas por um mundo de crescentes interdependências, mas de frágeis disciplinas éticas e políticas. Este é um momento que nos pede uma União Europeia ambiciosa nos seus objectivos e meios, credível nas suas posições de defesa da paz e do desenvolvimento humano, vigorosa nas suas políticas de solidariedade. Na verdade, poucas vezes terá sido tão clara a percepção dos limites da capacidade dos Estados fazerem face, isoladamente, aos desafios que defrontam. Por isso, tenho defendido convictamente a vantagem de aproveitarmos a recomposição trazida pelo alargamento para, com equilíbrio mas com firmeza política, debatermos a eficácia das políticas e estratégias, ou a razão dos bloqueios que as prejudicam. Ou seja, há toda a urgência em nos concentrarmos no essencial.

E o essencial é que precisamos de uma Europa que se assuma resolutamente como um dos pólos estruturantes da estabilidade internacional, contribuindo para ajudar a estabelecer disciplinas que tornem o processo de globalização mais equilibrado e equitativo; uma Europa que seja capaz de renovar o relacionamento Euro-Atlântico para melhor defesa conjunta dos valores morais e jurídicos que devem balizar a ordem Internacional e o progresso humano; uma Europa cada vez mais comunidade de destino, espaço de livre partilha de soberanias nacionais, que nela encontram afinal a sua moderna expressão e a própria garantia da sua concreta sobrevivência.

É, neste contexto de repto e mudança, que o Parlamento Europeu adquire uma importância fulcral, pois vem ganhando, com as sucessivas revisões dos tratados, acrescidas competências de natureza legislativa, orçamental e política. Assembleia eleita directamente pelos cidadãos, o que representa caso único na história das organizações internacionais, o Parlamento de Estrasburgo, para além de configurar um dos pilares da legitimidade democrática da União, constitui hoje um dos seus actores determinantes na escolha de opções que modelarão o futuro rosto da Europa. O nosso futuro, afinal.

Sabemos que lhe pertence o poder – juntamente com o Conselho - de formular as leis que influem na nossa vida quotidiana. Também conhecemos o seu labor no debate político, seja quanto a temas internos, seja no domínio das relações externas (e Portugal não esquece o apoio que dele obteve para a salvaguarda dos direitos de Timor-Leste). Bastaria este simples motivo – a projecção na vida diária dos portugueses da legislação decidida pelo Parlamento Europeu – para não se compreender, e ainda menos aceitar, o alheamento face às eleições europeias. A isto acresce que os próximos anos anunciam já problemas novos para a Europa, que seguramente se repercutirão em Portugal: na definição de políticas e meios; na partilha de programas de solidariedade; na determinação de estratégias para com terceiros países.

Conscientes desta realidade, perceber-se-á que o voto é um dever cívico, uma expressão de cidadania, mas também seguramente um instrumento individual de intervenção a favor de Portugal. Ninguém deve escolher por nós, pelo que o alheamento representa um erro, um absurdo gesto de desistência e demissão na defesa de interesses essenciais do país. Por isso mesmo, votar nas eleições europeias é também votar em Portugal e por Portugal.


Portugueses,

A hora que vivemos, pelos riscos, pelas incertezas e pelos desafios, não é um tempo de facilidade. Não podemos deixar de ter consciência de que, para muitos portugueses, a vida se tornou ainda mais dura e exigente. Quero que saibam que não os esqueço. Quaisquer que sejam as dificuldades a vencer não podemos perder a coesão social e o sentido nacional de comunidade. Como já um dia disse, temos de pertencer mais e partilhar melhor. O primeiro dever dos que são depositários da representação popular que lhes foi conferida pelo voto é serem capazes de mobilizar os cidadãos, fazendo que a iniciativa e a participação substituam a indiferença, que a ambição de fazer mais e melhor tome o lugar da resignação e do deixa-andar, que a confiança se afirme contra o negativismo, que a solidariedade tome a vez do salve-se quem puder.

Na mensagem que, na Assembleia da República e por ocasião do 30º aniversário do 25 de Abril, dirigi ao país, falei com pormenor dos nossos males e das grandes metas para os superar. Torno presente hoje aqui, de novo, essas preocupações, extraindo delas a síntese essencial. Temos de qualificar melhor os portugueses, investindo na educação, na ciência e na cultura, tornando-nos competentes a participar em pleno na sociedade de informação e conhecimento. Precisamos de uma economia mais inovadora, apta a gerar maior competitividade e produtividade. Carecemos de uma Administração Pública mais eficaz e amiga do cidadão e de uma sociedade mais auto-confiante, dinâmica e moderna. Necessitamos de políticas sociais mais capazes de integrar e de responder a questões que põem em causa a coesão social, como são o aumento do desemprego e da pobreza. Devemos assumir as grandes causas do nosso tempo, o desenvolvimento sustentável e o equilíbrio ecológico. Precisamos de uma política do território mais exigente, que combata as assimetrias e promova efectivamente a descentralização, o ordenamento e o desenvolvimento regionais. Necessitamos de uma vida colectiva mais transparente nas relações entre poderes e grupos, e na qual existam menos bloqueios às reformas indispensáveis. É fundamental o aprofundamento de uma cultura de mérito e avaliação que combata o clientelismo e a mediocridade. Temos de contribuir para uma ordem internacional que respeite o Direito e os Direitos Humanos, construindo a Paz.

Falo-vos de problemas e desafios, a partir de Bragança, terra que está habituada a vencer uns e a enfrentar outros. Esta região de Trás-os-Montes conhece bem o peso da interioridade e da periferização, do esquecimento e do atraso. Conhece também o esforço e o trabalho que são precisos para conseguir superar as dificuldades. É este exemplo que quero apontar ao país, pois ele encerra uma dupla mensagem fundamental: a de que não podemos esquecer a solidariedade e, ao mesmo tempo, a de que nenhuma ajuda nos pode dispensar de fazer o que são a nossa responsabilidade e o nosso dever. Desta terra de trabalho e coragem, de integridade e valor, renovo a minha mensagem de confiança em Portugal, saudando fraternalmente todos os portugueses e incentivando cada cidadão a que assuma os seus deveres perante a comunidade a que pertence e que é portadora da identidade que nos deu passado e nos dará futuro.

Viva Portugal!